Correio da Cidadania

“Mesmo difícil, impeachment de Bolsonaro é a saída democrática e civilizatória da crise que desagrega o país”

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A demissão do ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, seguida da saída voluntária dos três comandantes das Forças Armadas, deflagrou mais uma das incontáveis crises sobre as quais o governo Bolsonaro opera. No meio disso, o Brasil atinge a marca de 4000 óbitos por dia de coronavírus, líder mundial disparado. Entre a pequena política do governo e o colapso sanitário e humanitário, uma situação socioeconômica cada vez mais desesperadora. Para analisar este quadro brutal o Correio da Cidadania entrevistou o cientista político José Correia Leite, que considera a vacina um, e não o único, aliado no combate à pandemia.

Sobre a crise de governo, o entrevistado considera que Bolsonaro vai se reduzindo a seu núcleo duro neofascista e alucinado, cujo isolamento deve torná-lo ainda mais perigoso. “Os novos comandantes escolhidos representaram, ao que tudo indica, um compromisso: não eliminam o apoio dos militares ao governo Bolsonaro, mas evidenciam seus limites. É, para os militares, cada vez mais uma escolha entre alternativas que lhes parecem ruins. Não querem se desgastar com sua gestão da pandemia, mas a opção seria seu impeachment e a posse do vice Hamilton Mourão, com as forças de segurança tendo de se confrontar com os bolsonaristas radicais incrustados principalmente entre polícias e milicianos”.

No entanto, não há política possível enquanto o vírus seguir devastando o país e sua população, o que desloca o eixo de debates, na visão de José Correia Leite, para a necessidade extrema de se defender a reorganização do estado de bem estar social, amplamente destruído pelo ultraliberalismo que nem diante de tantas mortes se comove em alterar sua “doutrina de choque”.

“Grande parte da sociedade continua se pautando pelo desejo e pelo ‘otimismo’ das vacinas promovido pela imprensa e não pelo entendimento científico de que estamos frente não somente ao vírus, mas também à sua interação com as estruturas sociais que favorecem ou dificultam a difusão da pandemia. A vacina não será uma panaceia contra a pandemia; é, sim, um componente importante do combate à doença. Toda pandemia é uma ‘sindemia’ - uma interação entre elementos biológicos e sociais. Para além do número de mortes contabilizado diariamente pelos jornais, a pandemia está produzindo um estresse brutal sobre a vida social (relações de gênero, saúde mental, educação, destruição de ramos econômicos estabelecidos, acirramento das desigualdades...) e sobre os serviços de saúde que procuram contê-la”.

Correa Leite elenca as prioridades emergenciais, tanto na contenção do número de mortes como a respeito da reinserção brasileira nas relações internacionais, uma vez que o país se encontra “em quarentena” diante de seu descalabro sanitário e, como faz questão de destacar, ecológico.

“De imediato, nas condições de agravamento da pandemia, continuam em destaque a defesa da renda emergencial (condição para a manutenção do isolamento social e medida humanitária de solidariedade social), a defesa das medidas de distanciamento social, verbas e apoio para a saúde pública e acesso a vacinas. Mas a luta dos povos originários e a luta ambiental colocam também na agenda a defesa da Amazônia, que enfrenta uma devastação sem precedentes. Isto afeta toda a humanidade, sendo um flanco de grande vulnerabilidade internacional do atual governo. Naturalmente, o que organiza a luta política de conjunto, mesmo sendo institucionalmente difícil, é a proposta do impeachment de Bolsonaro, hoje a saída democrática e civilizatória possível para a crise que desagrega o país”.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como analisa as trocas ministeriais dessa última semana no governo Bolsonaro, em especial a respeito dos comandantes das Forças Armadas?

José Correa Leite: As trocas têm de ser inseridas na conjuntura que vivemos desde 2019, onde localizamos seu sentido político, mostrando um governo Bolsonaro mais frágil, ainda que tentando se radicalizar para preservar parcelas de sua base de apoio. O governo Bolsonaro tem um núcleo duro neofascista, mas foi montado em cima de uma coalizão ampla, porém instável, de interesses, viabilizada pelos marcos internacionais estabelecidos em 2016 pela eleição de Trump a presidente nos EUA.

Se, em um primeiro momento, a relação entre estes vários setores parecia apresentar sinergia, eles foram, com o passar do tempo, mostrando horizontes estratégicos até certo ponto contraditórios. Por exemplo, como se compatibiliza o “olavismo” com os interesses do grande agronegócio dependentes da China ou as alianças com o Centrão com a preservação institucional dos militares da ativa? Esta aliança começou a se esgarçar ao longo do último ano, na medida em que Bolsonaro foi mostrando sua estreiteza e se revelando incapaz de mediar a relação entre estes setores - dificuldade amplificada, desde março de 2020, pelo quadro gerado pela pandemia.

O primeiro setor a abandonar o barco foi o “partido do judiciário”: Sergio Moro saiu do governo em 24 de abril de 2020. Rodrigo Maia exerceu, desde então, uma tutela sobre os arroubos de Bolsonaro mais prejudiciais aos grandes negócios - o grande capital financeiro e o agronegócio exportador. Mas ao longo de 2020 a crise pandêmica continuou fazendo seu trabalho de sapa e Bolsonaro operou contra estes interesses na medida em que não promovia uma ação eficaz na luta contra a covid-19 e nas relações internacionais. A eleição de Biden, afinal consolidada com sua posse em 20 de janeiro deste ano, eliminou Trump como a principal âncora estratégica de sustentação de Bolsonaro.

Ele já então operava para escapar de seu cabresto do Legislativo, entregando partes significativas do cotidiano da gestão do Estado para o Centrão. Com a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara dos Deputados, no final de janeiro de 2021, o Central se adonou definitivamente do governo, mas Bolsonaro se mostrava novamente arredio à nova tutela - da qual depende para evitar um impeachment.

Em março, antes das mudanças ministeriais, temos dois episódios que mostram o enfraquecimento de Bolsonaro. Dia 8 o ministro Edson Fachin, do STF, reabilita Lula como candidato para 2022 e, na sequência, o STF coloca Moro sob suspeição. E, dia 22, mais de 200 economistas, banqueiros e empresários divulgam uma carta criticando a política de Bolsonaro frente à pandemia, cobrando vacinas e distanciamento social. As duas iniciativas se reforçam mutuamente. O governo Bolsonaro subsiste agora com um dictatum: ou você faz o que lhe dizemos no combate à pandemia ou apoiaremos Lula.

As mudanças ministeriais promovidas por Jair Bolsonaro em 29 de março de 2021 eram uma tentativa do presidente e sua família buscarem se cercar de aliados incondicionais na área militar e jurídica. Mas evidenciaram um importante desconforto de lideranças das Forças Armadas com o governo. A demissão do General Fernando Azevedo como ministro da Defesa e sua substituição pelo general Braga Netto fez com que os comandantes das três armas - Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) - apresentassem sua renúncia.

Os novos comandantes escolhidos representaram, ao que tudo indica, um compromisso: não eliminam o apoio dos militares ao governo Bolsonaro, mas evidenciam seus limites. É, para os militares, cada vez mais uma escolha entre alternativas que lhes parecem ruins. Não querem se desgastar com sua gestão da pandemia, mas a opção seria seu impeachment e a posse do vice Hamilton Mourão, com as forças de segurança tendo de se confrontar com os bolsonaristas radicais incrustados principalmente entre polícias e milicianos.

Saída dos chefes das Forças Armadas deixa clara tentativa de golpe, diz  oposição
Ilques Barbosa, da Marinha; Edson Pujol, do Exército; Antonio Carlos Bermudez, da Aeronáutica.

Correio da Cidadania: No início da pandemia o vice-presidente Mourão alertara que uma gestão ruim deste evento histórico recairia sobre as Forças Armadas. O que esse movimento dos militares, que continuam ocupando cargos em massa no governo, pode indicar?

José Correa Leite: A permanência de Bolsonaro no governo - apesar das concessões formais, como o uso de máscara em eventos públicos - continua significando uma gestão temerária, alucinada mesmo, da pandemia. Ele fez todas as escolhas erradas e parece constitutivamente incapaz de compreender o que deveria ser seu papel como chefe de Estado. Concebe a pandemia como uma fatalidade perante a qual nada se pode fazer, quando quase toda a classe dominante e os setores formadores de opinião demandam políticas ativas para impedir a difusão da covid. Há aqui uma brecha epistemológica, um abismo de compreensão do mundo, na qual apenas os evangélicos e setores social-darwinistas da sociedade podem se alinhar com Bolsonaro.

Já ultrapassamos os 340 mil mortos, com a previsão de chegarmos a 500 ou 600 mil em julho. Essas cifras são resultado dos erros cometidos pelo governo federal e não uma fatalidade. Cedo ou tarde ele será judicialmente responsabilizado por estes crimes. Nenhum governante ou instituição passa incólume por este processo e Bolsonaro procurou vincular, cada vez mais, a imagem das Forças Armadas ao governo. Este é o risco apontado por Mourão, que os militares da ativa querem reduzir. Porém, ainda mais decisiva, a forma como Bolsonaro trata a pandemia é incompatível com a gestão racional da crise demandada por boa parte do grande capital do país. A pandemia é terrível para os negócios e a forma como Bolsonaro trata ela só é aceitável para a lumpenburguesia.

Bolsonaro está desesperado porque vê seu projeto de reeleição em 2022 seriamente ameaçado. Lula candidato se movimenta para atrair setores empresariais, prometendo-lhes muito mais estabilidade na gestão do país. Seu horizonte é o de uma nova “Carta ao Povo Brasileiro”, semelhante àquela pela qual que ele pactuou, em 2002, uma política econômica conservadora para seu governo com o empresariado nacional e internacional. Ciro, que é a terceira candidatura consolidada, busca apresentar-se como alternativa competindo no mesmo terreno.

Enquanto isso, o Centrão sangra o governo, cobrando cada vez mais cargos e parcelas do orçamento, o que ajuda a corroer a base eleitoral de ultradireita. Bolsonaro vê seu apoio reduzir-se à sua base social mais fiel (igrejas neopentecostais, parcelas das forças de segurança punitivista e milicianos, uma lumpenburguesia predadora - um núcleo duro das políticas da Bíblia, da bala e do boi...), enfraquecendo seus vínculos com as classes dominantes mais globalizadas e ampliando seu isolamento internacional.

Nada disso significa que Bolsonaro está derrotado. Teremos, sim, enormes instabilidades no próximo período, frutos de contradições crescentes, que tendem a abrir espaços de ação política. Quanto mais avançar a crise no país e o projeto de Bolsonaro for ameaçado, mais provocações haverá e não é possível descartar tentativas golpistas. Este setor não vai aceitar sua derrota pacificamente, como já vimos pela reação do trumpismo nos EUA numa situação muito menos comprometedora em relação à crise econômica. Não devemos baixar a guarda, porque cada vez mais Bolsonaro vai apostar no caos e na polarização para sobreviver e manter-se viável para 2022.

Correio da Cidadania: O que a liberação da aquisição de vacinas pela iniciativa privada significa, em sua visão?

José Correa Leite: Na medida em que a pandemia foge do controle e situações como a que vimos em Manaus passam a ocorrer em outras capitais, o medo e mesmo o desespero se amplia em setores das elites. Vamos ver mais episódios como os da vacinação clandestina na garagem de ônibus de Belo Horizonte. Aumentam as pressões pelo acesso à vacina que são diferenciadas: os juízes em trabalho remoto querem ter prioridade!; os empresários querem comprar para si e para seus funcionários!

Mas não creio que no quadro atual isso seja formalizado em lei, mesmo com a aprovação do PL que visa facilitar compras pela iniciativa privada. Haverá, antes, uma grande batalha jurídica. E há o problema da disponibilidade para compra: as empresas não estão colocando suas vacinas no mercado; a exceção parece ser a Sputnik V desenvolvida pelo Instituto Gamaleya para o governo russo. Não há cenário realista de certos empresários brasileiros imunizarem “seus funcionários” com o resto da economia sendo golpeada pela pandemia.

Em alguns meses isso pode mudar, mas, por enquanto, se quiserem se imunizar os empresários e suas famílias terão de viajar para Dubai ou outras partes dos Emirados Árabes Unidos ou ainda para o Paquistão, gastando muito dinheiro em “férias de vacinas” ou correr os riscos de uma vacinação clandestina.

Correio da Cidadania: O cientista Miguel Nicolelis alerta sobre o perigo de um ponto de não retorno de caos sanitário, isto é, mortes em quantidade não administrável pelo serviço funerário, entre outros entes públicos. Como evitar isso?

José Correa Leite: Acho que é necessário colocar a discussão da pandemia de outra maneira. A imprensa e os governantes sensatos rapidamente se afastaram das concepções social-darwinistas de imunidade de rebanho que Bolsonaro ainda abraça e que causa tantas mortes em nosso país - concepções que Trump e Johnson também abraçaram no início da pandemia! Na visão hoje amplamente estabelecida, a pandemia será vencida pela vacina. E o rápido desenvolvimento das vacinas parece confirmar isso.

Foi um feito das tecnologias médicas, impulsionada tanto pelo dinheiro e pelo poder quanto pelo desejo de pesquisadores de vencerem a doença. Mas, na medida em que as mutações foram surgindo, elas tiveram de ser incorporadas como um novo elemento da narrativa dominante. A imprensa vem apresentando a pandemia como uma corrida entre as mutações e a vacinação. Mais tempo a doença corre sem controle, mais mutações ocorrem e parte delas tende a favorecer a difusão do vírus. Há, pois, a corrida pela vacina!

Mas a equação mutação versus vacina é teórica: se as variantes espalham-se por cada vez mais partes, a vacina flui muito mais lentamente. Na prática, os problemas da propriedade intelectual, acessibilidade das tecnologias de ponta na área, escala de produção, estruturas de saúde pública e políticas de vacinação - para pegarmos somente questões sanitárias - limitam a efetivação da promessa de que a vacinação promoveria a “volta ao normal”. E com as variantes, não haverá volta ao "normal" mesmo com a vacina - é o que sistematiza o recém-lançado relatório “The Lancet COVID-19 Commission: Task Force on Public Health Measures to Suppress the Pandemic”. O “normal” terá que ser bem qualificado. Teremos que nos vacinar todo ano, como fazemos com a gripe? Embora isso pareça provável, ninguém pode afirmar com certeza!

Além disso, os benefícios da vacina vêm sendo fortemente concentrados por componentes geopolíticos - dos quais não só os EUA e a Inglaterra, mas também a China, a Rússia e a Índia vêm se beneficiando. Mas mesmo os países da União Europeia ainda não conseguiram decolar campanhas massivas de vacinação e têm que recorrer a semi-lockdowns - como o que foi decretado na semana passada por Macron na França, bem menos rígido do que o recomendado pelos especialistas. A pandemia escala onde o distanciamento social foi afrouxado.

Grande parte da sociedade continua se pautando pelo desejo e pelo “otimismo” das vacinas promovido pela imprensa e não pelo entendimento científico de que estamos frente não somente ao vírus, mas também à sua interação com as estruturas sociais que favorecem ou dificultam a difusão da pandemia. A vacina não será uma panaceia contra a pandemia; é, sim, um componente importante do combate à doença. Toda pandemia é uma “sindemia” - uma interação entre elementos biológicos e sociais. Para além do número contabilizado diariamente pelos jornais de mortes, a pandemia está produzindo um estresse brutal sobre a vida social (relações de gênero, saúde mental, educação, destruição de ramos econômicos estabelecidos, acirramento das desigualdades...) e sobre os serviços de saúde que procuram contê-la.

Só para temos um contraponto: isso é o oposto do que se passa com a poluição. Todos os anos morrem no mundo um número estimado de 5 a 9 milhões de pessoas de poluição do ar (dependendo do que contabilizamos como causas de óbito), mas a sociedade não se detém para enfrentar este problema, tratando-o em grande medida como uma fatalidade inevitável, um preço a pagar pela modernidade. Mas estas mortes são perfeitamente evitáveis com mudanças sociais!

Já a pandemia da covid-19 produz uma reação diferente. As pessoas a veem, corretamente, como uma doença a ser vencida. E o esforço de contê-la desorganiza a dinâmica antes estabelecida na sociedade de conjunto - para o horror de Bolsonaro, que gostaria de naturalizar as mortes pela doença. Ela obriga a mudanças profundas: mesmo passado o pior da pandemia, a dinâmica social não voltará a ser o que era - justamente porque a pandemia é expressão de uma crise sistêmica prolongada, que tende a se acirrar e não a arrefecer.

A humanidade terá de aprender a conviver a longo prazo com a covid-19 e, para isso, reforçar drasticamente seus esforços com saúde e educação públicas e, e caso queira efetivamente “vencer” a pandemia, reduzir as desigualdades e ampliar a estrutura de amparo social.

Mesmo nos EUA, país que mais apostou na vacinação, o vírus continua mordendo o calcanhar. A atuação enérgica do governo Biden reduziu as mortes de um patamar de quatro mil por dia para menos de mil mortos, mas ainda assim são mil mortos todos os dias! E, na última semana, o número médio de novos casos subiu 20%, em parte pelas variantes, em parte porque parcelas da população não tomam cuidado, em parte porque certos setores sociais não querem se vacinar. O país pode ingressar em uma quarta onda, enquanto vários governadores – republicanos, mas também alguns democratas - promovem a reabertura dos negócios e, no caso dos republicanos, inclusive proíbem prefeitos de obrigarem o uso de máscaras. A coesão social parece ser um fator decisivo para enfrentar a pandemia e nem os EUA nem o Brasil dispõem disso.

A desconfiança em se vacinar segue forte nos EUA, mas também em países como a França, o Japão e a Rússia. Isso significa que, por várias partes, os processos de vacinação serão associados a mecanismos de pressão institucional como atestados obrigatórios - e a oficialização destes certificados de vacinação está se tornando uma demanda crescente de setores econômicos que pressionam pela reabertura, como turismo, entretenimento e companhias aéreas. Mesmo Meca está agora aceitando apenas peregrinos imunizados! Tudo isso coloca diante de nós uma acirrada “guerra cultural” em torno da vacinação, na qual sempre restarão setores mais arredios que não são epidemiologicamente insignificantes.

Os próximos meses serão difíceis no Brasil. Mas a presença de Bolsonaro tornará tudo pior. Governadores e prefeitos estão, desde o início, fazendo esta administração entre gestão da pandemia e manutenção dos negócios abertos. É o Modelo Dória - fecha e abre, fecha e abre, fechando quando o número de mortes parece fugir do controle e abrindo quando caem um pouco. A vacinação vai se dar muito lentamente, reduzindo o número de mortes inicialmente entre a parcela mais velha da população, a primeira a ser vacinada (além de profissionais da saúde e povos indígenas...). Entram também os lobbies e a luta política por novos setores: policiais, professores da rede fundamental, trabalhadores dos serviços funerários etc.

A doença continuará grassando no restante, o que já está produzindo o seu rejuvenescimento. Pessoas mais jovens tendem a lutar por mais tempo contra a doença, ocupando por mais tempo leitos de UTI, mesmo se ao final sucumbirem ao vírus. Sem um real lockdown, inseparável em nosso país da garantia de renda básica, cresce a fadiga do isolamento ou da propaganda do isolamento e mesmo setores que se precaviam podem terminar se descuidando.

Correio da Cidadania: O cenário visualizado pelo Nicolelis se concretizará?

José Correa Leite: De conjunto, creio que não. Mas podemos ter situações localizadas trágicas, nas quais governadores e prefeitos sucumbam às pressões do bolsonarismo e dos negócios predadores de vidas. Isto pode ou não se combinar com situações de fadiga da pandemia, em que as pessoas se descuidem completamente.

Correio da Cidadania: O que vislumbrar para o restante de 2021, social e economicamente? Pra completar, como ficaremos diante do mundo?

José Correa Leite: A segunda parte da pergunta é fácil de responder. Somos hoje elementos indesejáveis na comunidade internacional, uma gigantesca fábrica de novas variantes que tem de ser mantida sob quarentena até que a taxa de reprodução do vírus caia substancialmente no país. E somos indesejáveis também porque não somos capazes de preservar um bem comum essencial para toda a humanidade, que foi colocado sob nossa guarda: a Floresta Amazônica. É muito importante contarmos com a solidariedade internacional para tentarmos minimizar os danos que o atual governo está causando ao povo brasileiro e a toda a humanidade.

Sobre o restante de 2021, na verdade o que já vislumbramos na política é a abertura da disputa de 2022, com Bolsonaro, Lula e Ciro buscando se posicionar na contenda. Mas nada garante, no que diz respeito a Bolsonaro, que o pleito de 2022 se coloque como a normalidade do calendário eleitoral.

De imediato, nas condições de agravamento da pandemia, continuam em destaque a defesa da renda emergencial (condição para a manutenção do isolamento social e medida humanitária de solidariedade social), a defesa das medidas de distanciamento social, verbas e apoio para a saúde pública e acesso a vacinas. Mas a luta dos povos originários e a luta ambiental colocam também na agenda a defesa da Amazônia, que enfrenta uma devastação sem precedentes. Isto afeta toda a humanidade, sendo um flanco de grande vulnerabilidade internacional do atual governo. Naturalmente, o que organiza a luta política de conjunto na atual conjuntura, mesmo sendo institucionalmente difícil, é a proposta do impeachment de Bolsonaro, hoje a saída democrática e civilizatória possível para a crise que desagrega o país.

Mas tudo isso é óbvio, quase senso comum para uma parte da sociedade brasileira. A questão é que a conjuntura não se reduz à disputa política tática colocada, a fazer cumprir o calendário eleitoral, por mais central e decisivo que isto seja. Isso é o que o Gramsci chamava de “pequena política”. É a estratégia que condiciona a tática e a esquerda brasileira é, em grande medida, cega ao debate estratégico. Este é o resultado da sua acomodação ao Estado e à institucionalidade, três décadas de políticas de conciliação que incubaram o bolsonarismo. E vivemos há dez anos um processo de crise nacional cujas primeiras raízes localizo antes mesmo de 2013, nas eleições de 2010.

A crise nacional é a expressão da incapacidade de quaisquer dos atores em cena apresentarem uma alternativa para reverter a decadência do país e o profundo mal-estar que decorre disso. O Brasil foi capaz de transformar-se, na segunda metade do século 20, em um país eminentemente urbano-industrial, com a produção manufatureira (excluindo mineração e construção civil) atingindo, em 1985, 21,6% do PIB. A indústria brasileira era então uma das mais modernas do mundo. Quinto país com maior território e população do mundo, o Brasil parecia estar destinado a se transformar em um grande polo capitalista e reestruturou suas esquerdas a partir das lutas de sua classe operária industrial.

Mas o país avançou na globalização neoliberal, depois de 1990, mantendo uma forte dominação oligárquica. Desprovidas de um projeto nacional, estas priorizaram suas raízes fundiárias, primário-exportadoras e autoritárias. E estas políticas foram encaminhadas tanto pelos governos do PSDB como do PT por um quarto de século. A esquerda hegemônica é, pois, parte dos nossos problemas estruturais e não a solução para eles - ainda que naturalmente o central seja, neste momento, o Brasil se livrar de Bolsonaro.

Para enfrentarmos isso, equacionando a crise nacional, revertendo o processo de decadência do Brasil e superando o mal-estar que assola toda a sociedade, necessitamos intervir na conjuntura com os olhos voltados também para os debates de estratégia, reorganização programática e construção de sujeitos, voltarmos a atuar nos marcos da “Grande Política”. Mas creio que isso deve ficar para outra ocasião.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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