Correio da Cidadania

Rio Madeira é alvo do 'vale-tudo’ dos grandes negócios

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Se não problematizarmos o perfil da demanda e o modelo de desenvolvimento vigente no país, estaremos sempre à beira de um próximo apagão, e dispostos a sacrificar novamente o que for necessário. Mas necessário para quem?

 

 

O objetivo do projeto Complexo Madeira é muito simples: o aproveitamento total do maior afluente do Amazonas seja para fins hidroelétricos seja para fins hidroviários. O Complexo Madeira só se realiza, portanto, como um não-Rio Madeira,  com a negação igualmente total de todas suas formas de vida e de cultura que,  no rio e por causa do rio, proliferaram e interagiram.  Uma grande artéria da bacia amazônica está sendo pinçada pelos grandes grupos econômicos nacionais e transnacionais. Esse impressionante sistema de bombeamento de água, sedimentos e vida - que é o rio Madeira correndo para o Amazonas - corre o risco de ser interrompido caso se construam as duas usinas que dão início ao Projeto Complexo Madeira, composto por mais duas hidroelétricas e uma hidrovia em direção ao Oceano Pacífico.

 

Os antecedentes e determinantes do Complexo Madeira

 

O início dessa história é agosto de 2000, em Brasília, em um encontro de cúpula dos 12 países sul-americanos convocado pelo BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, pela CAF – Corporação Andina de Fomento, e pelo FONPLATA - Fundo de Desenvolvimento da Bacia do Prata. Essas Instituições Financeiras Multilaterais, com maioria de capital norte-americano, resolveram priorizar programas de expansão/interconexão de infra-estrutura dedicados a aumentar a eficiência dos fluxos internacionais de comércio, ou seja, das corporações transnacionais. Os serviços de infra-estrutura (energia, telecomunicações e transportes) servem para facilitar a expansão das redes econômicas transnacionais. A estratégias de deslocalização dos capitais e de formação de cadeias globais de suprimentos na periferia são definidas cada vez mais pelo perfil e amplitude da infra-estrutura oferecida pelos países periféricos que disputam a condição de destinatários preferenciais de investimentos estrangeiros.

 

Depois de uma década de desmonte neoliberal, nossos países estariam preparados para “reformas mais profundas” envolvendo marcos regulatórios privatizantes e grandes obras de infra-estrutura, oferecendo aos mercados internacionais livre disposição sobre o território, especialmente sobre seus recursos naturais. É o que pretende ser a IIRSA, Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana.

 

Essa iniciativa recorta o continente sul-americano em dez faixas prioritárias para investimentos em infra-estrutura tendo em vista o potencial exportador de cada uma delas. Estas faixas multinacionais são chamadas de “eixos de integração. Um desses eixos, chamado de “Peru- Bolívia-Brasil”, pretende converter a região do sudoeste da Amazônia e a bacia do rio Madeira em um escoadouro de energia para o centro sul e de matérias-primas e de recursos naturais para o Oceano Pacífico. Esse eixo apresenta os seguintes grupos de projeto:

 

a) dois grupos de interligação rodoviária, incluindo a Rodovia Interoceânica que sai de Assis Brasil no Acre chegando até Juliaca e demais portos do sul do Peru;

 

b) um grupo de interconexão hidroviária e energética, o Complexo Madeira, composto por 4 hidroelétricas, Santo Antonio, Jirau, Ribeirão e Cachuela Esperanza, uma hidrovia rio acima e uma linha de transmissão.

 

O projeto Complexo Madeira, seguindo a lógica da IIRSA, não se limita a criar infra-estrutura física. Junto com as obras vêm as reformas nas regulamentações setoriais que terceirizam o controle sobre o território. É o sacrifício de políticas públicas e dos direitos da população se tornando condição para a viabilização econômico-financeira dos negócios das grandes empresas na região.  

 

O Projeto das Usinas no Madeira é também uma peça-chave do PAC, programa de crescimento do que aí está, da desigualdade, da concentração do capital, da desindustrialização. O PAC reproduz a lógica da IIRSA no plano interno, uma demonstração de subordinação ativa da economia nacional aos mercados internacionais. Que soberania resta a um país convertido em uma incubadora de plataformas de exportação? A trajetória do BNDES é exemplar nesse sentido: evoluiu de financiador das privatizações a parceiro estratégico dos setores privatizados e transnacionalizados com atuação no país e na América do Sul. No caso do Madeira, o BNDES, antes mesmo da emissão da Licença Prévia,  anunciou a disponibilidade de financiamento de cerca de 85%  do empreendimento, e depois da emissão da Licença já se apresentou como  potencial sócio do consórcio vencedor do leilão.

 

 O discurso oficial, também público-privado, alega que o aumento da potência instalada do país pela via hidroelétrica, e pelo Madeira em especial, é a alternativa mais barata e mais limpa à disposição. É mais barato produzir energia em grande escala na Amazônia para depois construir e manter dispendiosas linhas de transmissão com de mais de 2.500 km de extensão? Pode ser considerada limpa uma energia que compromete o fluxo do rio, a qualidade da água, a cadeia alimentar dos peixes, que favorece a proliferação da malária e a contaminação por mercúrio, que produz o deslocamento de milhares de pessoas, que desfecha um golpe fatal sobre as culturas tradicionais e que chega inclusive a desorganizar as cidades próximas?

 

A democratização do acesso a energia no Brasil não pode ficar a reboque da expansão de cinturões primário-exportadores. Se não problematizarmos o perfil da demanda e o modelo de desenvolvimento vigente no país, estaremos sempre à beira de um próximo apagão, e dispostos a sacrificar novamente o que for necessário. Mas necessário para quem? A alternativa que não se permite conceber é a adoção de um planejamento público do setor energético nacional  voltado a um outro padrão de desenvolvimento, com múltiplas pequenas escalas até agora desconsideradas.

 

O rio Madeira e sua antítese

 

O Rio Madeira, além de ser o maior afluente do rio Amazonas, é sua principal fonte de sedimentos. Sua grande concentração de partículas sólidas em suspensão é resultado da intensa erosão que se verifica na descida dos Andes. Esses sedimentos cumprem um papel crucial na vitalização e fertilização de toda a bacia amazônica.

 

O rio Madeira está, portanto, em constante formação. Seu alto e médio curso é composto por dezenas de corredeiras, tombos e cachoeiras que sustentam um regime hidrológico complexo e delicado. Os propositores do projeto disfarçam e tentam fazer crer que os “impactos” serão localizados, apenas no trecho de 250 km entre Abuna e Porto Velho. A alteração da dinâmica do rio e da bacia com a construção de barragens pode acarretar níveis imprevisíveis de assoreamento e de alagamento acima das represas (ou seja, a montante) e  de erosão após as represas (ou seja, a  jusante).

 

O comprometimento dos ecossistemas e da biodiversidade regional, especialmente a relativa aos peixes, ameaça a atividade pesqueira em toda a bacia do Madeira, que é fonte de renda de mais de 15 mil famílias. A dinâmica migratória das principais espécies de peixes Madeira acima (para procriação) e Madeira abaixo (na descida de ovos e alevinos) será afetada gravemente, mesmo com o sistema de transposição de peixes que for criado, mesmo com a abertura periódica dos vertedouros que for programada nas estações cheias.

 

O alagamento permanente dos igarapés e tributários do alto e médio Madeira levará a uma multiplicação dos vetores de malária e dos fatores contaminantes por mercúrio. E isso sem que se antecipem medidas preventivas e de aparelhamento dos órgãos públicos responsáveis pelo seu controle na região.

 

Uma ainda mais desordenada expansão urbana e demográfica na região no entorno das construções já está ocorrendo sem a garantia de uma correspondente ampliação da oferta de serviços públicos. O município de Porto Velho será convertido transitoriamente em “canteiro de obras”, o que lhe custará cicatrizes permanentes. Enquanto servir ao Projeto, a cidade será um apêndice das usinas, servindo como base física das obras, e como estoque de mão-de-obra barata no pico das construções. Não existem instrumentos para o enraizamento dos investimentos na região e o surto de crescimento previsto servirá apenas para gerar recessão e desemprego em escala ampliada depois de 2012 com o término das obras.

 

A construção das Usinas é o primeiro passo para a instalação de um corredor inter-oceânico no rio Madeira e bastou seu anúncio para que se acelerassem os ciclos de destruição e a incorporação de florestas e mananciais, incluindo unidades de conservação, reservas extrativistas e terras indígenas, pela pecuária, pela mineração e pelas monoculturas de exportação.

 

Não passarão sobre o povo do Madeira!

 

 Desde fevereiro de 2007, movimentos sociais integrantes da Via Campesina no Brasil e Bolívia,  representantes de movimentos camponeses e mineiros do Peru, comunidades ribeirinhas e camponesas ameaçadas pelo projeto do Complexo do Madeira e redes e organizações convidadas vêm construindo uma articulação regional chamada MOVIMENTO SOCIAL EM DEFESA DA BACIA DO RIO MADEIRA E DA REGIÃO AMAZÔNICA (MSDBRM). Os encontros internacionais do movimento (Cobija, Porto Velho, Guajará-Mirim e Riberalta) serviram para planejar medidas de autodefesa e de auto-organização do território comum do Madeira. Está sendo construída uma agenda conjunta envolvendo formação, lutas e difusão de informações em que se tracem estratégias comuns de resistência à construção de um complexo hidroelétrico e hidroviário no Rio Madeira.

 

O MSDBRM denuncia em seus documentos o intento de governos nacionais e subnacionais, do setor privado e de organizações internacionais de estabelecerem conjuntamente um “território empresarial” na Amazônia, uma espécie de Estado paralelo e auto-regulado, com soberania privada, à margem das leis nacionais.

 

Na opinião dos movimentos componentes, os estudos apresentados por Furnas/Odebrecht procuraram mascarar os inevitáveis danos e conseqüências para a população e o meio ambiente. Eles alertam que, com a redução da velocidade da água, serão criadas condições favoráveis ao incremento da malária, à contaminação por mercúrio, saturando os já precários serviços de saúde e saneamento. Representantes de comunidades ribeirinhas brasileiras e bolivianas, que têm na pesca sua principal fonte de renda, denunciam o descaso dos empreendedores com relação ao comprometimento dos ciclos reprodutivos e migratórios das espécies de peixe de grande importância para sua cultura  e subsistência. A inviabilização da pesca, somada à perda das áreas de cultivo, das matas e das áreas com grande potencial ecoturístico, expulsaria milhares dessas famílias para a periferia das cidades, nas quais ficarão sujeitas ao subemprego, à criminalidade e à prostituição.

 

Na Bolívia destaca-se a mobilização das comunidades camponesas dos departamentos de Beni e Pando, com apoio do FOBOMADE (Foro Boliviano de Medio Ambiente e Desarrollo), no sentido de que o governo Evo Morales continue recusando qualquer acordo com o governo brasileiro que comprometa a soberania do país e a segurança da população boliviana. As organizações bolivianas se comprometeram a acompanhar as negociações do Grupo de Trabalho binacional criado para avaliar os impactos transfronteiriços do Projeto, para cobrar transparência, rigor das análises e participação das comunidades ameaçadas no processo. Em Rondônia, houve indicação para se intensificar o processo de organização independente das comunidades ribeirinhas, com apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens-MAB e seus aliados, para se contrapor à cooptação de associações e lideranças comunitárias por Furnas e por projetos paralelos do governo Federal.  

 

Os movimentos da Bacia do Madeira exigem respeito ao princípio da autodeterminação das populações tradicionais, consagrado na convenção 169 da OIT, regulamentado no Brasil pelo decreto 6.040/2007. Um território que define a identidade de populações e comunidades não pode ser reformulado sem o consentimento e participação destas.

 

Licença para o vale-tudo dos grandes negócios

 

A perda das proteções da população diante dos grandes projetos de infra-estrutura tornou-se condição prévia para que os mesmos sejam viabilizados do ponto de vista financeiro. Os estudos ambientais do Projeto Madeira inovam para pior à medida que apresentam comprovações técnicas de viabilidade com grau de suficiência condizente com os estudos disponíveis. Como não existem informações acumuladas sobre a Bacia do Madeira por falta de estudos integrados, a aprovação técnica do Projeto se deu com base em estimativas positivas de consultores contratados pelos próprios interessados.

 

Em nota técnica conjunta, os consultores José G. Tundisi, Newton O. Carvalho e Sultan Alam advogam a não necessidade de levantamento de dados ou estudos de diagnóstico fora do território nacional. Isso porque a estação fluviométrica de Abunâ permitiria avaliar a carga de sedimentos de toda a bacia do Madeira. Assim concluem que: “Não é imprescindível um conhecimento detalhado da origem dos sedimentos do rio Madeira nessa fase de licenciamento prévio”.

 

Os consultores procuram eliminar a necessidade de estudos de bacia, no que toca à dinâmica dos sedimentos, apenas para a fase prévia de licenciamento. Então somente no momento de instalação e operação das Usinas é que esses estudos seriam imprescindíveis? O enfoque destravador dos consultores contratados coloca a segurança do empreendimento acima da segurança da população e do meio ambiente.

 

Mais à frente, nessa mesma nota, a equipe de consultores considera superestimadas as previsões que constam no EIA sobre o provável assoreamento acima dos reservatórios. Segundo eles, a precisão do resultado dependeria “de dados geométricos e da granulometria do leito em cada seção transversal e da caracterização de todos os controles hidráulicos existentes entre Abunã e Santo Antonio. A aferição do modelo depende desses dados, alguns com variação temporal que não existem no momento, pois sua obtenção exige uma série de observações e medições” (grifos nossos).

 

Os dados não existem “no momento”, mas, quando chegar a hora da instalação, poderão ser coletados e “o modelo poderá ser calibrado para dar uma resposta mais precisa e válida”. Comprova-se que o Projeto em si mesmo é um grande piloto, e o rio e a população circundante, suas cobaias. É o que também deixa claro a nota anexa sobre peixes, assinada pelo pesquisador do INPA, Jansen A.S. Zuanon, datada de 09 de abril de 2007. O pesquisador considera que é “de praxe” a dimensão temporal reduzida dos estudos incluídos no EIA do Madeira, como se o maior afluente do Amazonas e com a maior variação de espécies de peixes já registrada em todo mundo não merecesse algo mais que o “de praxe”. Segundo ele, como se trata de “um empreendimento sem similar na Amazônia Brasileira, é normal que os prognósticos ambientais contenham uma boa dose de incerteza, o que é explicitado no relatório técnico”.

 

A incerteza só pode ser “normal” em um projeto experimental. Mas para o pesquisador não há o que fazer senão absorver as lacunas de informação do Projeto: “Desafortunadamente, tal situação de desconhecimento se aplica a quase todos os rios da Amazônia brasileira, em função da carência de recursos e de pesquisadores para realizar esses estudos. Para resolver essa situação no rio Madeira (e nos demais rios amazônicos), seria necessário um longo período de tempo (10 anos ou mais), além de uma considerável soma de recursos financeiros e o envolvimento de grandes equipes de pesquisadores (dezenas e centenas de profissionais e estudantes). Assim, na falta de um programa de pesquisas de longo prazo instalado na região, não há como esperar que tais dificuldades sejam solucionadas em um curto intervalo de tempo” (grifos nossos). A ausência de conhecimento relevante acumulado sobre peixes e demais formas de vida no rio Madeira, e doravante qualquer rio, não pode inviabilizar o cronograma dos investidores privados, pois “não há como esperar”. É o princípio da precaução aplicado ao contrário: o futuro que devemos zelar é o futuro precificado com retorno financeiro. Compostos os custos do aproveitamento econômico e aferidas as potenciais taxas de rentabilidade, nivelam-se os custos sociais e ambientais a “patamares aceitáveis”.

 

As trinta e três condicionantes anexadas à Licença-Prévia procuram substituir o vazio de informação e diagnóstico com monitoramento, ou seja, os empreendedores terão autonomia para definir os próprios critérios da instalação. As últimas complementações oferecidas pelo consórcio Furnas/Odebrecht e pelo MME, a exemplo da Nota Técnica referida anteriormente, nada mais fizeram que  reiterar os resultados dos estudos apresentados, de forma que o país renuncie a suas políticas sócio-ambientais, de recursos hídricos, de desenvolvimento regional, em nome da expansão das atividades primário-exportadoras e eletrointensivas. A formação de grandes consórcios entre operadoras, construtoras, fornecedoras de equipamentos, financeiras e seguradoras na disputa do leilão do Madeira deixa claro que o planejamento territorial dos grandes grupos econômicos está se sobrepondo a qualquer parâmetro de bem ou serviço público.

 

 A Licença-Prévia deveria ser um atestado de viabilidade, atestado do que vale a pena em função de todos e do meio ambiente.  Um projeto com tantos furos e incertezas acerca de suas conseqüências para toda a região amazônica e o planeta, ser viabilizado pelo IBAMA, ser certificado pelo Ministério do Meio Ambiente e promovido pelos ministérios de Minas e Energia e Casa Civil, pelo Banco Mundial e pelo BID, demonstra que vale tudo em nome dos grandes negócios, inclusive decretar que a população não vale nada. A começar pelos ribeirinhos. Por isso somos todos ribeirinhos.

 

A aprovação do Projeto das Usinas no Rio Madeira emite uma senha para o “aproveitamento total” do potencial hidroelétrico da Amazônia. A tragédia dos comuns, daqueles que têm o rio em comum. Avançam os cercamentos que transformam água em mercadoria. Nessa enorme monocultura de energia, não há lugar para vida, memória, povo e nação.  Desses latifúndios hídricos que começam a ser encravados na Amazônia, seremos todos excluídos. Seremos todos atingidos.

 

Referências

 

- Nota Técnica “Sedimentos, Modelos e Níveis d’água”, José G. Tundisi, Newton O. Carvalho, e Sultan Alam, protocolada no IBAMA em 25 de abril de 2007. IBAMA/DILIQ, Brasília.

 

 - Nota Técnica “Ictiofauna: comentários gerais”, Jansen A.S. Zuanon, protocolada no IBAMA em 25 de abril de 2007. IBAMA/DILIQ, Brasília.

 

 

Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, professor da Universidade Federal de Rondônia e membro do Fórum Independente Popular.

 

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