Correio da Cidadania

Se outros países podem, por que nós não podemos?

0
0
0
s2sdefault

 

Será que é viável termos um padrão educacional melhor do que temos hoje ou isso é apenas um sonho irrealizável, que não cabe na nossa realidade? Em outras palavras, será que há barreiras objetivas (econômicas ou culturais, por exemplo), de difícil superação, que nos impedem de construir um melhor sistema educacional? Para responder a questões desse tipo, um bom caminho é comparar a educação em diversos países com equivalentes possibilidades materiais.

 

Para isso, a tabela a seguir mostra alguns indicadores educacionais de seis países cujas rendas per capita estão imediatamente abaixo da brasileira e outros seis imediatamente acima, segundo compilações da Unesco Institute for Statistics (1). São, portanto, países com possibilidades econômicas praticamente equivalentes às nossas. Vamos ver no que diferem no que diz respeito à educação.

 

Os dados relativos ao analfabetismo na faixa etária dos 15 a 24 anos ilustram a realidade de um passado recente da educação; o analfabetismo adulto reflete um passado mais remoto; e a taxa de matrícula no ensino superior mostra os esforços atuais em um setor mais sofisticado do sistema educacional. Portanto, os três indicadores refletem os compromissos dos diversos países com a educação em um período relativamente amplo.

 

Dos doze outros países com condições materiais equivalentes às nossas, apenas a Tunísia, o Peru e o Irã têm taxas de analfabetismo adulto superiores à nossa. Quanto ao analfabetismo de jovens entre 15 e 24 anos, dos doze países, apenas o Peru, a Tunísia e o Panamá apresentam piores desempenhos. E quanto às taxas de engajamento no ensino superior, apenas o Azerbaijão apresenta valor inferior ao nosso.

 

Existem possíveis explicações (evidentemente, explicações não são justificativas) para alguns aspectos educacionais daqueles países com indicadores piores do que os nossos. No caso da Tunísia e do Irã, as questões culturais, em especial aquelas relacionadas à religião, podem estar entre as explicações: ambos os países têm religiões oficiais (o islamismo), cujas normas são leis da sociedade civil. No caso da Tunísia, ainda hoje encontramos indicadores educacionais bastante diferentes para homens e mulheres, revelando, possivelmente, um traço de sua tradição religiosa. Quanto ao Irã, devemos lembrar que as últimas décadas foram marcadas pelo processo de ruptura por ocasião da Revolução Islâmica (iniciada em 1978) e pela longa e desgastante guerra com o Iraque (1980-1988), fatores que podem ter tido influências negativas em seu sistema educacional.

 

Peru e Panamá são dois países que apresentam péssimas distribuições de renda. Embora não tão ruim como a brasileira, eles estão entre os 25 países (de um total de 133) com maiores concentrações de renda, fator que certamente tem reflexos na educação. O Peru tem alguma heterogeneidade lingüística e populações que habitam regiões bastante diferentes e que têm tradições culturais também diferentes, fatos que podem ajudar a explicar seu baixo desempenho educacional. Além disso, ambos os países têm apresentado grande instabilidade institucional em períodos mais recentes: o ex-presidente Alberto Fujimori foi condenado e preso por graves violações dos direitos humanos; um dos presidentes recentes do Panamá, Manuel Noriega, tem como pontos de destaque em sua carreira ligação com a CIA e com o narcotráfico, tendo sido seqüestrado pelo governo americano e condenado à prisão nos EUA.

 

A situação específica do ensino superior no Azerbaijão pode ser entendida, pelo menos parcialmente, pelo desmoronamento da União Soviética. Até final da década de 1980, aquele país apresentava uma taxa de inclusão no ensino superior de 25%, bastante alta para a época e cerca de duas vezes maior que a brasileira no mesmo período. Com o fim da União Soviética, a taxa de engajamento no ensino superior chegou a decrescer até 15% em 1998, voltando a crescer lentamente desde então. O fim da União Soviética, e a crise que se seguiu, pode ter sido um fator importante a afetar a educação superior naquele país. A guerra com a Armênia é outro fato que pode ter tido conseqüências na vida social do país.

 

E há países entre aqueles incluídos na tabela com indicadores significativamente melhores do que os nossos. Somos o décimo colocado no que diz respeito aos indicadores de analfabetismo, nas duas modalidades, e penúltimo colocado no que diz respeito ao ensino superior. E não temos muitas explicações para estarmos assim tão mal colocados quando comparados com países de iguais possibilidades. Se pelo menos tivéssemos indicadores iguais à média dos demais países com mesmas condições materiais que as nossas, vale dizer, com renda per capita equivalente, ainda estaríamos em situação bem melhor do que estamos, como mostra a linha média (exclusive Brasil) da tabela.

 

 

Renda per capita (US$, paridade de poder de compra)

Analfabetismo (%)

Taxa de matrícula, ensino

superior (%)1

 

Adulto

Juvenil

 

15 anos ou mais

15 a 24 anos

Bósnia e Herzegovina

8565

2,1

0,2

37

Peru

9164

10,4

2,2

43

Colômbia

9293

6,6

1,9

39

Tunísia

9390

22,4

3,2

34

Azerbaijão

9721

0,2

0,0

19

Cuba

9900

0,2

0,0

95

Brasil

10823

9,7

1,9

33

Sérvia

11169

2,1

0,6

50

Irã

11570

15,0

1,3

43

Cazaquistão

11853

0,3

0,2

46

Venezuela

12373

4,5

1,5

78

Montenegro

12958

1,6

0,7

48

Panamá

13345

5,9

2,4

45

Média (exclusive Brasil)

10775

5,9

1,2

48

1 A taxa bruta de matrícula no ensino superior é a razão entre o número de matrículas e a população em uma faixa etária de 5 anos após a idade normal de conclusão do ensino médio.

Fonte: Unesco Institute for Statistics, com exceção da renda per capita cubana, cuja fonte é CIA The World Factbook, https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/, consultada em maio/2012, e da taxa (bruta) brasileira de matrícula no ensino superior, calculada pelo autor com base no número de matrículas fornecido pelo INEP e nos dados referentes à população, fornecidos pelo IBGE

 

A pergunta óbvia é: por que não podemos ter um sistema educacional pelo menos igual à média dos demais países com mesmas oportunidades materiais? Por que comprometemos o futuro de nossas crianças e jovens e, por extensão, o futuro do país, mantendo um sistema educacional tão precário, se temos condições que nos permitem não fazer isso?

 

Leia os demais artigos da série:

O analfabetismo juvenil e o ensino superior

Quantidade versus qualidade no sistema educacional

Educação: dois grandes passos para trás

Sistema educacional é um importante instrumento a perpetuar a desigualdade

Privatização do Ensino Superior rebaixa, a cada ano, seu retorno social e cultural

Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil

Política educacional: mitos e mentiras

Como surgiu a bandeira dos 10% do PIB para a educação pública

Investimentos em educação pública computam despesas que nada têm a ver com educação

Sobre os parcos recursos públicos brasileiros

Mais recursos para a educação: nada a perder e muito a ganhar

Educação e crescimento da produção de bens e serviços

Muitos projetos, nenhuma solução

Ensino à distância não é uma solução, e sim outro problema a ser superado

 

Nota:

1) Todos os dados, inclusive da renda per capita, foram obtidos do site da Unesco http://www.uis.unesco.org/, consultado em maio/2012

 

Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

0
0
0
s2sdefault