Correio da Cidadania

A luta feminista na Saúde, segundo oito mulheres

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Arte: Uprise, de Danielle Siegelbaum-Shouting.

Neste 8 de março, o Outra Saúde perguntou para oito mulheres de diferentes áreas o que esperam de avanços para o setor da saúde e, por extensão, o conjunto de seus direitos. Afinal, num mundo em crise permanente, desigualdade, violência e uma política sequestrada por oligarquias, são as mulheres quem paga o maior preço. Elas trabalham mais, ganham menos e, em diversas dimensões, sofrem mais.

Elas querem direito ao aborto e, portanto, sobre o próprio corpo e sexualidade. Mas também querem direito a uma maternidade saudável, com divisão justa de tarefas; programas de renda, emprego, creche, apoio a mães de crianças autistas, apoio a cuidadoras; querem salário digno para a enfermagem e a força de trabalho da saúde, majoritariamente feminina; acesso a itens básicos, como absorventes; igualdade racial, combate à cultura de violência machista, acesso a uma política integral de saúde.

A seguir, o leitor pode conferir os depoimentos de Ana Maria Costa, Andrea Werner, Camila Bruzzi, Cida Gonçalves, Lucia Souto, Nana Lima, Rosana Onocko-Campos e Solange Caetano. Talvez, a variedade das demandas surpreenda, mas no final das contas trazem uma fotografia realista da envergadura do desafio que a sociedade e seus sistemas políticos e econômicos têm pela frente na construção de uma democracia real.
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Ana Maria Costa, médica, sanitarista e membro do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

Nos anos 1980, além do movimento da reforma sanitária propor o direito universal à saúde, o movimento feminista incidiu sobre a saúde das mulheres para mudar o foco materno-infantilista que restringe a atenção aos aspectos da maternidade. O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) surge nesse contexto em 1983, uma política de vanguarda, porque propõe autonomia decisória, abordagem ampla dos problemas e demandas femininas e mudança nas relações de poder entre mulheres e profissionais de saúde. Sua estratégia maior é a prática educativa que fornece ferramentas para a intervenção crítica das mulheres no processo do cuidado. O movimento feminista celebrou a conquista e passou a ser respeitado pelo movimento sanitário.

Entretanto a implementação real das mudanças tem sido dificultada tanto pelos fundamentalistas e religiosos quanto por um conceito focalizado e verticalizado sobre organização da atenção em saúde. Fragmentaram em diversos programas a atenção que se propunha integral em uma concepção de que as mulheres tem múltiplas e distintas demandas e necessidades de saúde de acordo com idade, classe social, raça, etnia, orientação sexual e cultura. Os serviços e redes de saúde devem estar prontos e organizados para atendê-las, integral e integradamente. Urge retomar esse desafio que a meu ver rompe com o paradigma da fragmentação, instituído na saúde.

Outra questão importante é o enfrentamento do aborto, inquestionável problema de saúde pública. As mulheres têm direito negado ao aborto legalizado quando engravidam por ato de violência sexual. Não há serviços para cuidar dessas mulheres, meninas, jovens e a maioria negras. Nunca tivemos serviços suficientes nem em número e nem na distribuição territorial. Inadmissível. O SUS precisa garantir acesso e atenção oportuna a essas mulheres em condição de sofrimento e vulnerabilidade.

Enfrentar o tema dos direitos das mulheres ao aborto de forma geral é imprescindível. A América Latina tem avançado e o Brasil retrocedeu nos últimos tempos quando o Congresso se abarrota de parlamentares evangélicos, cujos mandatos estão ancorados na misoginia e contra o aborto. Estamos elegendo prefeitos nos próximos meses e com isso vai se desenhando o perfil da próxima legislatura.

Ampliar consciência do voto é tarefa urgente para o campo democrático nacional. Hoje o voto está sendo definido nas igrejas fundamentalistas. Nossa democracia vai sendo mutilada e minguam as possibilidades de ampliar direitos reprodutivos. Por isso fica aí um desafio para a sociedade e para o Estado brasileiro. Garantir a laicidade e ampliar o direito das mulheres ao aborto livre e seguro. Em nome da vida e da saúde das mulheres!
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Andrea Werner, deputada estadual (PSB-SP) e ativista dos direitos de crianças autistas

Um dos primeiros projetos de lei que eu protocolei foi para garantir uma renda para as mães atípicas, para as mães de pessoas com deficiência, porque normalmente o que acontece é que cerca de 80% dos pais abandonam o lar quando o filho é diagnosticado com uma doença rara ou deficiência. Essas mães não conseguem se manter no mercado de trabalho formal, às vezes ficam dependendo do benefício da prestação continuada, dado a filho com deficiência; às vezes se fizer uma faxina extra, qualquer atividade que renda um dinheiro a mais, o INSS corta o benefício – e esse salário não é delas, é do filho.

Eu quero que mulheres sejam reconhecidas pelo trabalho do cuidado, porque é um trabalho que infelizmente ainda é invisível e justamente por essa situação precarizada sua saúde mental fica muito prejudicada. Não é muito raro vermos suicídios no nosso meio. Esse projeto de lei garante uma renda para mãe que é exclusivamente cuidadora do filho ou se for uma avó, no caso, para que ela tenha o salário do seu trabalho do cuidado, para que esse trabalho do cuidado seja valorizado e sua situação fique menos precarizada e tenham mais renda no domicílio. Acredito que valorizar o trabalho do cuidado feito por tais mulheres de forma tão diligente, mas não remunerada, é uma política de melhoria de sua saúde mental.
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Camila Bruzzi, presidente da Coalizão Licença Paternidade (CoPai) e Leandro Crespo Ziotto, embaixador da CoPai e Fundador da 4daddy

Em mais este Dia Internacional da Mulher, torna-se crucial abordar as nuances que cercam a saúde feminina, com um foco particular na interseção entre maternidade e bem-estar mental. A realidade enfrentada por muitas mulheres é alarmante: uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2019 aponta que cerca de 30% das mulheres brasileiras relatam um aumento significativo no nível de estresse após a maternidade. Além disso, um estudo publicado no jornal “Lancet Psychiatry” sugere que mães trabalhadoras são 40% mais propensas a desenvolver depressão severa dentro de um ano após o parto, em comparação com aquelas que não estão empregadas. Uma investigação relevante, destacada pela Folha de S.Paulo em julho de 2019, ilumina o caminho para mitigar esses desafios, revelando que a extensão da licença-paternidade está diretamente ligada à redução no consumo de antidepressivos por novas mães, sublinhando a importância da presença paterna nos primeiros meses de vida da criança.

Diante desse cenário, a Coalizão pela Licença Paternidade (CoPai) enfatiza a necessidade urgente de reavaliar e ampliar a licença-paternidade, vislumbrando-a como uma ferramenta essencial para a saúde e o bem-estar das mulheres. Permitir que os pais assumam um papel mais ativo desde os primeiros dias de vida do bebê não apenas diminui a carga emocional e física sobre as mães, mas também pavimenta o caminho para uma sociedade mais igualitária. Países que adotaram essa política, atestam que pais que tiram licença-paternidade estendida para cuidar de seus bebês tendem a permanecer atuantes nos cuidados das crianças ao longo dos anos. Tal transformação não beneficia apenas as mulheres, oferecendo-lhes o apoio necessário para enfrentar os desafios da maternidade, mas também enriquece a experiência de parentalidade, consolidando os vínculos familiares e promovendo um ambiente mais propício ao desenvolvimento infantil.
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Cida Gonçalves, ministra da Mulher

O que nós, mulheres, esperamos é que possamos ter uma atenção integral à saúde para prevenção de doenças como câncer de mama e de colo de útero. Também queremos que todas as mulheres gestantes possam realizar o pré-natal, que é fundamental para a redução da mortalidade materna. E que todas possam menstruar com dignidade. Neste sentido, inclusive, lançamos o Programa Dignidade Menstrual, que oferta gratuitamente a mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade a quantidade de absorventes necessária para seus ciclos menstruais. Pesquisas mostram que 1 em cada 4 meninas falta à escola no Brasil durante a menstruação. E que, além disso, muitas mulheres utilizam materiais impróprios para absorver o sangue menstrual, como panos sujos e jornais – o que pode resultar em doenças e infecções.
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Lucia Souto, médica sanitarista e membro do Conselho Nacional de Saúde

A mulher brasileira tem demandas históricas que ainda estão longe de terem sido plenamente realizadas. A violência contra a mulher é algo absurdo. A cultura do estupro e o feminicídio têm aumentado e geraram até um grande movimento mundial. As mulheres são violentadas de uma maneira brutal. Essa violência é estrutural de uma sociedade patriarcal que realmente considera a mulher algo menosprezável. A conquista de plenos direitos, na minha percepção, está intimamente ligada à consolidação do desafio democrático. Não há democracia quando se tem uma esmagadora maioria da sociedade completamente sujeita a toda sorte de brutalidades e violências.

A grande esperança que todos nós trabalhamos diariamente há anos, gerações e gerações de mulheres aqui no Brasil e no mundo, é para a plena igualdade das mulheres. Claro que respeitando as diferenças, mas a igualdade no sentido do respeito aos seus plenos direitos. Também devemos lutar pela atualização da agenda dos direitos reprodutivos, que muitos já chamam de cidadania reprodutiva. Enfim, toda uma agenda que dê essa possibilidade das mulheres terem direitos reprodutivos consistentes, assegurados e também até essa bandeira tão sensível, que é a questão do aborto, uma agenda global. Também muitos países do mundo se mobilizam com relação a isso. Tivemos agora recentemente uma conquista histórica na França, o primeiro país no mundo a assegurar constitucionalmente, por uma votação absolutamente gigantesca, uma esmagadora maioria de votos, a liberdade e o direito do aborto na França, direito tornado constitucional.

Em linhas gerais, primeiro deve-se reconhecer essa violência brutal contra as mulheres, é fundamental enfrentar como uma grande epidemia, para superar essa situação. Acho que nesse ano de 2024 há muitas conquistas a celebrar, isso também é importante, o reconhecimento da importância das mulheres é hoje algo impensado de não ser tratado com essa dimensão. Vejamos, por exemplo, o número importante de mulheres que ocupam hoje, inclusive ministérios, inclusive o da Saúde, que pela primeira tem uma mulher na direção da pasta, num governo que tem um contingente enorme de profissionais mulheres em sua base e no SUS, construindo cotidianamente a saúde como direito de cidadania. A grande esperança para todas nós é o reconhecimento da plena cidadania e direitos das mulheres aqui no nosso país.
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Nana Lima, publicitária e diretora do Think Olga, ONG que promove inovação em equidade de gênero

São muitas as políticas públicas que podemos implementar ou melhorar e que vão afetar diretamente a saúde da mulher. Para dar alguns exemplos, a primeira questão, que apareceu nos resultados das pesquisas que culminaram no relatório Esgotadas é a a situação financeira. Endividamento é o principal fator que afeta a saúde mental das mulheres. Assim, eu diria que a principal política pública no momento seria a transferência de renda, isto é, a criação de programas de transferência de renda que priorizem as mulheres. No Brasil, 50% das mães são mães solo. Imaginem como essa mulher vai estar na esfera pública para buscar trabalho, para ampliar ou até ter uma renda. É muito difícil porque ela tem toda a sobrecarga do cuidado, isso vai afetar sua saúde e também dos filhos, com reflexo na comunidade. Outro dado: 70% das pessoas que vivem na linha da pobreza no mundo são mulheres. Temos um fenômeno que se chama feminização da pobreza.

Portanto, programas de transferência de renda que priorizem as mulheres não são somente positivo para elas; impactam positivamente toda a comunidade ao seu redor e, consequentemente, a sociedade. Uma outra política pública que sugerimos, muito relevante, é a oferta de serviços de saúde física, mental, sexual e reprodutiva de qualidade para essas mulheres, para que não tenham de chegar ao extremo do sofrimento para buscar ajuda. É essencial oferecer serviços para saúde física, mental, sexual e reprodutiva.

O último ponto é a educação pública de qualidade, no período integral, com uma alimentação e uma infraestrutura adequada, para que esta mulher possa trabalhar também fora de casa, porque ela já trabalha dentro de casa, na esfera privada. Oferecer uma educação de qualidade no período integral permite que as mulheres consigam estar na esfera pública, ampliem sua renda, de maneira que isso possa garantir saúde em todos os seus aspectos.
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Rosana Onocko, psicanalista e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva

Sonhar não custa nada, então vou falar de sonhos grandes. Eu gostaria de ver a legalização do aborto. Eu gostaria de ver boas campanhas de prevenção e combate à violência contra a mulher. Esses dias saiu uma pesquisa que mostra que somente 20% das mulheres sabem que existe a lei Maria da Penha e nem sabem por onde pedir ajuda. É uma coisa importante. E eu gostaria que as mulheres também pudessem ter melhor acesso a creches, a instituições onde possam compartilhar o cuidado dos filhos, porque a gente sabe que nas nossas classes populares, o que mais pega as mulheres e as atrapalha a trabalhar é que as instituições de educação, de assistência, não dão a cobertura, a segurança que deveriam dar para essas mães solos poderem tocar a vida.
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Solange Caetano, presidente do Fórum Nacional de Enfermagem e da Federação Nacional dos Enfermeiros

Enquanto enfermeira e presidenta Federação Nacional dos Enfermeiros, me preocupo muito com a valorização e o reconhecimento das mulheres que compõem a força vital da enfermagem em nosso país. Em especial, neste Dia Internacional da Mulher, que chamamos de Dia de Luta das Mulheres, é preciso enfatizar algumas questões que afetam diretamente as trabalhadoras da enfermagem, especialmente aquelas inseridas no Sistema Único de Saúde (SUS).

Primeiramente, é fundamental abordar a necessidade urgente de valorização da enfermagem por meio da garantia de um piso salarial justo e digno. O piso salarial não é apenas uma questão de justiça financeira à nossa categoria; é uma premissa de reconhecimento do trabalho árduo e dedicado que as enfermeiras realizam diariamente, muitas vezes em condições desafiadoras, insalubres e sobrecarregadas por jornadas extenuantes.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), ao favorecer a regionalização na implementação do piso salarial da enfermagem, representa um grande retrocesso. Essa regionalização não considera realidades específicas enfrentadas por enfermeiras em diferentes partes do país e dificulta ainda mais a busca por uma remuneração justa para todas.

Além disso, a vinculação do piso salarial à jornada de trabalho de 220 horas mensais é profundamente problemática. A maioria das enfermeiras trabalha com jornadas que não correspondem a esse padrão, o que resulta em uma desvalorização ainda maior de
seu trabalho.

É fundamental que as enfermeiras sejam respeitadas e valorizadas em seus locais de trabalho. Elas merecem condições dignas de trabalho, reconhecimento pelo seu papel essencial na promoção da saúde e apoio adequado para desempenhar suas funções da melhor forma possível. Lembramos que são profissionais, mães, esposas, irmãs, primas, enfim… São pessoas, que têm família também e precisam ter suas vidas preservadas.

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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