Correio da Cidadania

O privilégio da dor: vidas negras realmente importam?

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290823 privilegio da dor
Quanto vale uma lágrima negra, quanto vale uma lágrima branca? Faço esta pergunta olhando para o quadro sistemático de genocídio da população negra. Recorrentemente, nas favelas cariocas, são os nossos corpos atingidos por balas “perdidas”, certeiras ou acidentais. Não há idade para sermos vítimas das balas do Estado, das milícias ou do tráfico. Acompanhamos pelas redes sociais (Instagram, Facebook) e por poucas mídias televisivas o massacre histórico que nos acomete. Primeiro fomos retirados(as) de nossa terra ancestral, sequestrados(as), vilipendiados(as) de todas as formas possíveis, depois nos condicionaram a um modelo republicano de sociedade em que as pautas das políticas estatais raciais pretendiam nos eliminar em um século. Na atualidade, continuamos vivendo sob a égide do legado da escravização e das teorias e políticas estatais racistas.

Nossa experiência de vida está condicionada a saber quais territórios podemos circular, quais gestos podemos livremente realizar, quais documentos não podemos esquecer, quais atitudes podemos tomar mediante a injustiças, em outras palavras, “aparentar ser o bom/boa negro/negra”. Em suma, nossa existência está baseada em mostrar a todo momento que somos pessoas que querem viver com dignidade, alegria, o mínimo de respeito e que busca a tal cidadania que sempre nos foi negada.

Cidadania também é privilégio no Estado democrático de direitos. Para nós não é uma novidade sermos os corpos caídos nas vielas após confrontos entre o Estado e os grupos armados do narcotráfico. Contudo, tem sido uma rotina secular e estafante de dor, uma dor que nunca é interrompida, pois é impossível saber quem de nós será o próximo corpo estendido no chão e no qual a mãe, outra familiar ou uma mulher negra mais próxima terá que defender a honra, o direito à vida, a boa conduta no bairro, na família, enfim, porque aquela pessoa deveria seguir viva na sociedade.

Enquanto mulher negra e sobrevivente na periferia do Rio de Janeiro (RJ), passei a minha adolescência, no início dos anos 2000, acompanhado sem compreender a morte de jovens negros com quem estudei, brinquei e até cuidei. Mas não acompanhei apenas a morte de jovens de outras famílias, perdi a conta de quantos corpos de jovens negros da minha família da linhagem materna e paterna foram tombados no chão. Uma lista que não se encerra apenas nos membros e membras com que tenho parentesco biológico; ora, na comunidade negra a ideia de família não é baseada apenas no vínculo sanguíneo. Sabemos que o vínculo afetivo se sobressai quase sempre e temos muitos primos e primas de “consideração”.

Posso dizer que perdi muitos primos de primeiro, segundo e terceiro grau, familiares distantes que nem sabia que eram familiares e os parentes afetivos que a jornada da vida me presenteou. Uma tragédia, um holocausto, isto é, um tremendo desespero instalado. Tal fenômeno recorrente não me trouxe uma carapaça, uma dureza ou uma naturalização de nossas mortes. Cada vez que vejo nas redes sociais, na TV ou ouço no famoso boca a boca que uma pessoa negra morreu assassinada, isto me dói e essa dor conforme vejo as recorrentes mortes das crianças negras no estado do Rio de Janeiro. Ver as lágrimas das mães de Agatha, Maria Eduarda, João me corrói por dentro. Inevitavelmente, penso como mãe em minha filha, Camilly, que nos seus doze anos de idade tem como maior diversão desenhar mangás e acompanhar animes pelos Streams.

Mas, como mãe negra, eu sei e como sei que preciso prepará-la para uma sociedade que nos odeia, que não respeita o nosso choro e que naturaliza nossas mortes. Neste contexto, de violência física e simbólica que é viver na sociedade brasileira (estruturalmente racista) eu tenho medo, tenho aflição constante, afinal se eu levar um tiro ou qualquer ente querido meu, será mais uma pessoa preta, parda, pobre e sem direito a vida e devo lembrar que o direito à vida está estabelecido como artigo e direito fundamental da Carta Magna dos Direitos Humanos. Portanto, a violação do meu, dos nossos corpos não importará, não causará comoção coletiva, afinal é só mais um/uma negro/negra que tombou ali na esquina, na viela, na favela, na periferia.

O pacto narcísico (BENTO, 2022) estabelece qual dor deve ser privilegiada, performada, exibida, teatralizada nas novelas e no audiovisual, notificada pela grande mídia, repudiada pela sociedade e pelo sistema de justiça. Quem tem direito ao choro, ao sofrimento e ao reconhecimento deste estado de emoção humana não é o/a negro/negra, não é o/a indígena, não são os grupos racializados!

Compreendo que toda negação da nossa dor esbarra em nosso cruel histórico de escravização, pós-abolição e das políticas racialistas/racistas que foram implementadas pelo Estado. Dificilmente, uma sociedade que até os dias atuais reflete práticas escravistas nas relações com as trabalhadoras domésticas negras e pobres construirá do dia para a noite uma percepção e autocrítica em relação à política de morte do Estado. Somos racistas, preconceituosos e apáticos à dor daqueles e daquelas vistos/vistas como “Outros e Outras”. Ainda tratamos a morte de pessoas negras como a morte de um animal doméstico, um número ou como fala no vocabulário popular “CPF cancelado”. Por isso, na semana de assassinato do Thiago Menezes, uma criança negra com seus 12 anos de idade, a sociedade carioca e brasileira seguiu como se nada tivesse ocorrido, pelo simples fato que mortes negras não importam, vidas negras nunca importam na colônia brasileira que se pensa Estado-Nação.

A morte de Thiago Menezes como a morte de outros adolescentes e crianças pretas, pardas não importa para uma sociedade que nasce do costume de esfolar, massacrar, humilhar e se vangloriar com a violência de nossos corpos. Um olhar para história nos mostra que as práticas de tortura e desumanização que acontecem na atualidade têm muita influência do nosso passado escravagista (GONÇALVES, SILVA, 2000). Conseguimos nos apavorar com a morte de pessoas negras em países que o racismo tem um sujeito da ação, ele não é um fenômeno reconhecido sem nenhum racista como no Brasil. Diferentemente daqui que há racismo, mas não existem racistas, em outros lugares do mundo, principalmente Estados Unidos, se sabe e há o combate do racismo e das discriminações raciais.

Em 2020, no Brasil por meio das redes sociais promoveu uma onda de postagens com a frase “Vidas Negras Importam!”, esse movimento ocasionado pela morte de George Floyd e da criança negra de cinco anos de idade, Miguel Otávio Santana, filho de Mirtes Santana, trouxe para o cenário brasileiro um reconhecimento de nosso racismo estrutural. Contudo, o que noto é o uso de nossas mortes para a promoção de alguns grupos empresariais, instituições, artistas e pessoas brancas com proeminência na sociedade. Na época das mortes, muitos artistas, algumas empresas e outras instituições criaram hashtags em seus perfis nas redes sociais, cederam suas páginas nas redes sociais para artistas e pessoas negras de destaque para falar do racismo estrutural.

Todavia, após o período de intenso debate as instituições, grupos empresariais e pessoas brancas conhecidas voltaram a silenciar, compactuar e a sequer pronunciar uma palavra, ter uma medida, uma ação para combater uma estrutura que segue nos matando. Pelo contrário, muitos desses antirracistas de momento retrocederam em suas posições políticas e voltaram a defender práticas de discriminação racista. Um exemplo é o caso de um certo comediante branco, carioca que saiu em defesa de outro comediante branco e racista. Na realidade, as vidas negras sempre importam e importaram quando possibilitam lucro, rentabilidade, autopromoção, mais seguidores nas redes sociais, mais espaço para quem se beneficia delas.

Em outras palavras, vidas negras e navio negreiro seguem sendo um grande comércio e onde quem chora e sofre são as pessoas negras. Mas a caída das lágrimas negras não importam e não comovem a sociedade, um tiro à queima roupa, um corpo arrastado como o de Cláudia Silva pelo carro da polícia, uma criança de cinco anos caindo de um prédio pela irresponsabilidade de uma mulher branca chamada Sara Corte-Real, uma menina de 13 anos de idade baleada na quadra da escola municipal na Maré, uma menina de oito anos de idade assassinada à queima roupa no Alemão e tantos outros episódios de extermínio são as lágrimas que caberão em nosso oceano de sofrimento e de onde estão entulhados nossos corpos desde o sequestro do território ancestral africano. Nosso choro é apenas legítimo entre os nossos, as nossas e para aqueles e aquelas que enxergam e respeitam nossa humanidade. Em outros espaços o nosso choro não carrega o privilégio da cor e de poder emitir dor.

Referências:

BENTO, Maria A. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022
GONÇALVES, Luiz Alberto; SILVA, Petronilha Gonçalves e. Movimento Negro e Educação.

Revista Brasileira de Educação, set./out./nov., n. 15, 2000 Leitura Complementar:
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. 5.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

Luane Bento é Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio, com mestrado em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET-RJ, e possui graduação em Ciências Sociais pela UERJ.

Publicado originalmente em Blogueiras Negras.

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