Correio da Cidadania

Pandemia e classe social: “parece que chegamos a um acordo em que algumas vidas, de fato, valem menos”

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Casos suspeitos de covid-19 explodem em Paraisópolis | Notícias e análises  sobre os fatos mais relevantes do Brasil | DW | 16.04.2020
Foto: DW / G. Basso

Estudo do Instituto Pólis mostrou que, após meses de relativo sucesso da auto-organização comunitária, os índices de mortalidade em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, aumentaram 240%. Em entrevista ao Correio da Cidadania, o arquiteto e pesquisador Victor Nisida, que contribuiu para o referido estudo, explica como funcionou o sistema de organização popular, mas elenca os fatores que fizeram os números de contágios e óbitos subirem tanto.

“Paraisópolis estruturou um dos melhores controles da pandemia em São Paulo. É importante ponderar que são poucas as favelas com as mesmas condições e recursos para empreender ações articuladas e com tamanho alcance, mas, ainda que excepcional, trata-se de um exemplo que precisa ser valorizado”, contou.

De toda forma, a entrevista deixa claro que a inconsistência das políticas públicas de combate ao coronavírus e as pressões por reabertura terminam por falar mais alto, ainda mais em locais onde a necessidade de circular pela cidade e obter alguma renda é tão evidente. Nisida também destaca que o relaxamento é generalizado, mesmo em bairros de melhor condição socioeconômica. Os resultados é que variam de acordo com as condições básicas de cada lugar.

“É preciso repensar o modelo de reabertura. As aglomerações estão se proliferando pela cidade, incluindo bairros de médio e alto padrão (a culpa não é dos bailes funks). O resultado é uma exposição maior de todo mundo ao vírus. O grande problema é que as condições de resposta e de cuidado da saúde não são iguais para todo mundo e, por isso, vemos taxas de mortalidade tão desiguais.

Nisida ainda enumera políticas públicas tanto para o curto como o longo prazo, e reitera a importância do investimento na saúde básica e comunitária. “Os modelos de transporte público e mobilidade precisam ser revistos (...) As políticas de saneamento precisam enfrentar as desigualdades que a pandemia revela. Por fim, é preciso valorizar o SUS. São as UBS e a ações dos agentes comunitários”.

A entrevista completa com Vitor Nisida pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O que vocês comentam dos números levantados em estudo realizado pelo Instituto Pólis a respeito do aumento do número de mortes por coronavírus em Paraisópolis nos últimos dois meses?

Vitor Nisida: A organização da população e as diversas ações locais foram bem sucedidas a ponto de conseguiram conter a mortalidade até um dado momento. Apesar das condições de precariedade e vulnerabilidade, Paraisópolis demonstrava eficiência em conter a média de mortalidade pela pandemia no distrito de Vila Andrade, distrito em que a favela está inserida e se destacava por segurar os números que ficavam abaixo da média municipal ou mesmo do resto de Vila Andrade, distrito conhecido por seu alto padrão de vida. É isso que os dados apontam. Entretanto, a partir de um momento, o número de mortes fora de Paraisópolis caiu mais do que dentro na favela, fazendo com que as taxas acumuladas da favela expressassem uma mortalidade maior do que no restante do distrito ou do município.

Isso mostra que ausência de ações governamentais pode fazer diferença na contenção do número de mortes, mesmo em lugares organizados como Paraisópolis. Sem contar com o devido apoio público, as ações solidárias deixaram de obter os resultados buscados de proteção à vida dos moradores. Por outro lado, as mortes dentro de Paraisópolis podem também ser reflexo do que acontece no resto da cidade - fora da favela.

Reabertura econômica e flexibilização do isolamento social somadas à falta de políticas de proteção da população mais vulnerável aumentaram a circulação de pessoas pela cidade, assim como também intensificaram a exposição ao vírus. O resultado é sempre mais impactante para a população mais pobre e de menor escolaridade, o que atinge de forma mais evidente a população negra, majoritária em Paraisópolis.

A ineficiência de conter o vírus e proteger a população, geralmente, gera efeitos mais sensíveis e mais devastadores onde há maior vulnerabilidade pelas condições de renda, pela baixa escolaridade e pela precariedade no acesso à saúde. Por mais que Paraisópolis estivesse preparada, isso também a afetou. Mas uma coisa é certa: se não fosse pelas ações comunitárias de Paraisópolis, teríamos um quadro ainda mais terrível quando olhamos para as taxas de mortalidade daquela favela.

Correio da Cidadania: Anteriormente, os números estavam equivalentes ao todo da cidade de São Paulo ou sempre houve uma diferença de acordo com o nível socioeconômico?

Vitor Nisida: Os números variam de forma desigual ao longo do tempo e do território da cidade. Não existe uma pandemia, existem várias, e o que vemos é que a Covid-19 para a população negra é mais mortal. Estudos como este de Paraisópolis mostram que, apesar da ausência do Estado brasileiro, a ação comunitária em alguns territórios consegue algum efeito para diminuir ou conter a mortalidade.

Correio da Cidadania: Como você já expressou, o estudo atribui ações de sucesso no combate à pandemia por mérito da auto-organização comunitária. Como foi isso?

Vitor Nisida: Paraisópolis estruturou um dos melhores controles da pandemia em São Paulo. É importante ponderar que são poucas as favelas com as mesmas condições e recursos para empreender ações articuladas e com tamanho alcance, mas, ainda que excepcional, trata-se de um exemplo que precisa ser valorizado.

Entre as estratégias de Paraisópolis, destaca-se o sistema de “presidentes de rua” em que voluntários ficam responsáveis por monitorar famílias para possíveis sintomas da covid-19, e dar encaminhamento correto àqueles que apresentaram sintomas. A comunidade contratou ambulâncias e médicos para atendimento dos sintomáticos. Também foram capacitados moradores como socorristas para apoiar bases de emergência criadas com a presença de bombeiros civis.

Além disso, foram utilizadas escolas públicas cedidas pelo governo estadual, após pedido da associação de moradores, para garantir o isolamento de pessoas infectadas, principalmente das que possuem famílias numerosas e/ou moram em casas pequenas. 

Correio da Cidadania: Qual o impacto do auxílio-emergencial na região?

Vitor Nisida: Não temos dados para este tipo de avaliação em Paraisópolis. Entretanto, é sabido que o auxílio emergencial, sobretudo para famílias de maior vulnerabilidade, que perderam trabalho ou viram sua renda despencar na pandemia, é fundamental para garantir a sobrevivência e possibilitar melhores condições de distanciamento e proteção pessoal.

Correio da Cidadania: Como vocês avaliam as ações do poder público frente à pandemia, tanto em Paraisópolis como de modo geral?

Vitor Nisida: Não foi possível observar um enfrentamento coerente e estruturado por parte dos governos, seja qual for a esfera de poder. E isso pesa (com mais mortes), sobretudo em cima da população mais vulnerável - destaque para negros e negras, de baixa renda e baixa escolaridade.

No âmbito da cidade, o debate sobre a mobilidade foi muito pobre e as políticas de transporte não enfrentaram a questão da segurança dos passageiros. Boa parte da população teve que sair de casa para trabalhar enquanto outra parte se isolava em casa. O ideal seria garantir condições de transporte e de circulação com distanciamento, higiene e segurança.

Assim, vimos ônibus lotados e redução na frequência das linhas de transporte público: uma inversão do que deveria ter sido feito! Este é só um exemplo de como as respostas das autoridades ficaram muito aquém da complexidade e gravidade do que estamos ainda enfrentando.

Correio da Cidadania: Quais seriam as políticas públicas mais urgentes para o combate à pandemia neste momento?

Vitor Nisida: É preciso repensar o modelo de reabertura. As aglomerações estão se proliferando pela cidade, incluindo bairros de médio e alto padrão (a culpa não é dos bailes funks). O resultado é uma exposição maior de todo mundo ao vírus. O grande problema é que as condições de resposta e de cuidado da saúde não são iguais para todo mundo e, por isso, vemos taxas de mortalidade tão desiguais. Todo mundo está se expondo mais, mas sempre tem os grupos que sofrem mais do que outros (seja precisando de internação, seja perdendo a batalha para o vírus e vindo a óbito).

Os modelos de transporte público e mobilidade precisam ser revistos para comportar melhor as demandas, atendendo medidas de segurança para proteger a saúde dos passageiros e passageiras. Não é razoável pensar que todo mundo vá comprar um automóvel para se isolar dentro de um carro. Isso é péssimo para o trânsito, para a cidade e para o ambiente.

As políticas de saneamento precisam também enfrentar as desigualdades que a pandemia revela (ainda que não fossem surpreendentes). A falta de acesso à água e esgoto ainda é uma realidade em muitas cidades brasileiras e afeta sobretudo à população que já tem menos condições de se proteger do vírus. Soluções de médio e longo prazo são necessárias, mas é fundamental pensar em alternativas de curto prazo que atendam a urgência de água encanada (com serviço regular!) em determinados territórios.

Por fim, é preciso valorizar o SUS. São as UBS e a ações dos agentes comunitários que podem fazer a diferença na prospecção, busca ativa e diagnóstico adequado, assim como acompanhamento de casos. A atenção básica tem sido negligenciada, mas é ela que tem potencial (como em poucos países) de chegar e atender a população mais vulnerável.

Correio da Cidadania: Vocês acreditam que a sociedade está abandonando as noções de prevenção, autopreservação e isolamento? O que os números levantados por vocês revelam a respeito da retomada de certa normalidade?

Vitor Nisida: O que mais preocupa é que as taxas de mortalidades ainda estão muito altas. O fato de elas já terem sido maiores no passado gerou um certo sentimento de alívio e relaxamento nas pessoas, o que se somou ao desgaste do isolamento social. O problema é que muitas mortes continuam ocorrendo. As mortes que esse tipo de comportamento (de flexibilização) normalizou são de pessoas mais pobres, pretas ou pardas e de baixa escolaridade. Parece que, socialmente, chegamos a um acordo tácito de que algumas vidas, de fato, valem menos do que outras. Isso diz muito sobre nós mesmos.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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