Correio da Cidadania

“Há dados suficientes para concluir que não é hora de relaxar as medidas de combate à pandemia”

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Governo de SP anuncia novas restrições para conter pandemia | Governo do  Estado de São Paulo
Apesar do adiamento dos carnavais de rua e dos tradicionais desfiles, os governos de todas as esferas começam a relaxar restrições sanitárias de contenção ao coronavírus. Após o surto virótico de dezembro/janeiro, os testes praticamente desapareceram, o país voltou a superar os 1000 óbitos diários em fevereiro e no momento estaciona acima das 500 mortes diárias. Diante deste conjunto de fatores, o Correio entrevistou o virologista e professor Paulo Eduardo Brandão para analisar o atual estágio do coronavírus no Brasil e as principais decisões políticas frente à pandemia.

“Houve uma certa percepção de que só a vacina era suficiente e quem a tomasse estava livre (...) O fato é que continuaremos tendo uma sucessão de variantes. Tivemos a gama no Brasil, a imunidade das pessoas aumentou e a ômicron tomou seu lugar. Porém, não temos vigilância suficiente para saber se há perspectiva de novas variantes, não estamos pesquisando”.

Além de enfatizar a urgência da vacinação infantil, sobre a qual não há motivo algum para fazer objeções, o médico e professor da USP se posiciona favoravelmente ao passaporte sanitário para as atividades cotidianas gerais.

“É a mesma coisa que pagar imposto. Não gosto de pagar, mas é uma colaboração com a sociedade. Tem de ser obrigatória. É uma pandemia muito nova, não sabemos como será no longo prazo, se haverá mais variantes. Nem é nada de novo. Outras vacinas são obrigatórias. Não podemos matricular crianças nas escolas sem mostrar uma carteira de vacinação. Essa é só mais uma entre tantas vacinas”.

No plano mais geral, Brandão lamenta a onda de desinvestimentos públicos em todas as áreas, que no campo científico nos deixarão vulneráveis para futuros surtos, inclusive de patógenos ainda desconhecidos, e destaca a necessidade de se vacinar toda a humanidade para que de fato possamos superar o vírus e sua ainda enorme mortalidade.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Os meses de dezembro e janeiro foram marcados por uma onda de contaminações de coronavírus, potencializado pela variante ômicron e também o vírus da influenza. Agora voltamos a bater a marca de 1000 óbitos diários, quando a vacinação se encontra num estágio relativamente avançado na população. O que levou a esta alta?

Paulo Eduardo Brandão: O primeiro a esclarecer é que só a vacina não funciona, o que já era sabido desde antes desta pandemia. A vacina serve pra combater sintomas e diminuir transmissibilidade, mas sozinha não vai zerar a carga viral. Por isso são necessárias as medidas não farmacológicas, como distanciamento social, assepsia das mãos, uso de máscaras. Houve uma certa percepção de que só a vacina era suficiente e quem a tomasse estava livre.

Possivelmente, tal conjunto de fatores recarregou nossa mortalidade, que voltou a patamares de 1000 mortes diárias, um nível medieval. Situação similar à dos EUA, que manteve uma média de cerca de 3000 mortes por dia no início de 2022.

A ômicron aumentou imensamente o número de infectados, o número absoluto de casos e consequentemente de mortes, ainda que a taxa de mortalidade não tenha aumentado.

Uma demonstração da importância das medidas não farmacológicas foi a volta da influenza, numa época inesperada, porque tudo que fizemos contra a covid manteve a influenza longe. Quando baixamos a guarda, ela voltou. A reemergência da influenza teve tudo a ver com o relaxamento frente à covid-19.

Correio da Cidadania: Qual o potencial desta variante e também das chamadas subvariantes? Como as relaciona com as novas medidas de relaxamento anunciadas pelos governos após um carnaval que não existiu nas ruas, mas existiu em espaços particulares?

Paulo Eduardo Brandão: Em termos comparativos, ela não é mais mortífera ou mais agressiva. Mas se não tivermos o esquema vacinal completo – pelo menos as duas doses – ela pode fugir um pouco da proteção e conseguir se espalhar mais. Há indícios de que se transmita mais facilmente porque se multiplica na parte mais superior do nosso aparelho respiratório enquanto as outras ficam mais presas no fundo dos pulmões. O caminho é mais curto para a contaminação, basicamente.

Mas o fato é que continuaremos tendo uma sucessão de variantes. Tivemos a gama no Brasil, a imunidade das pessoas aumentou e a ômicron tomou seu lugar. Porém, não temos vigilância suficiente para saber se há perspectiva de novas variantes, não estamos pesquisando.

De toda forma, há dados suficientes para concluir que não é hora de relaxar as medidas não farmacológicas de controle.

Correio da Cidadania: Que importância devemos atribuir à vacinação das crianças? É a chave para a possibilidade de um ano mais “normalizado”, por assim dizer?

Paulo Eduardo Brandão: Absoluta urgência. Crianças morrem de covid, crianças transmitem covid. A vacina é segura para elas e é uma obrigação ética vaciná-las, no Brasil e no mundo. Não houve nada que provasse o contrário nos estudos vacinais. Não existem vacinas experimentais. Quando elas estão aprovadas é porque já passaram da fase de testes. Elas são seguras e eficientes. As reações são ínfimas e infinitamente inferiores aos problemas gerados pela covid.

Correio da Cidadania: Como avalia a conflitividade política em torno da política sanitária? O que comenta da atuação do governo federal e, em especial do Ministro da Saúde, nos últimos meses?

Paulo Eduardo Brandão: O governo federal assassinou a ciência. Torturou e assassinou a ciência no Brasil. O governo federal e seu Ministério da Saúde tomaram todas as medidas possíveis pra impedir o controle da doença. Atrasaram a aprovação da vacina, os registros de crianças, criaram todas as barreiras possíveis frente à campanha de vacinação de crianças... Foi completamente desastroso, uma vergonha internacional.

Fica pior ainda ao lembrarmos que quem inventou campanhas de vacinação de massa foi o Brasil. Desenvolvemos capacidade de logística e organização de tais campanhas e nos tornamos modelo para a OMS. Isso foi destruído por conta da ignorância anticientífica do governo federal.

Correio da Cidadania: Considera que os governos estaduais e municipais, a despeito da retórica, realmente diferem do governo federal na política sanitária de contenção ao vírus?

Paulo Eduardo Brandão: Existe uma heterogeneidade nos governos em relação a isso. Em São Paulo aceleraram a cobertura vacinal para crianças, por exemplo, antes de tais medidas de relaxamento, que careciam de dados para sustentá-las. A ausência de uma orientação central é que leva a este caos completo e quem paga são as pessoas comuns que se contaminam.

Correio da Cidadania: Quais políticas sanitárias você considera fundamentais para a preservação da saúde da população ao longo de 2022?

Paulo Eduardo Brandão: Acabar com “pandemia de subnutrição” precisa ser prioridade. Uma pessoa com fome tem um organismo que pode fazer de tudo, menos deixá-la imune. Não é só uma vacina que resolve. Precisamos de segurança alimentar. Simples biologia: se a pessoa não come, o organismo não responde. A primeira necessidade é, portanto, combater a fome.

Adiante, teremos de continuar a ter logística de prevenção, capacidade de vacinar as pessoas pelos próximos anos. A imunidade gerada pela vacina é inferior a um ano. E a vacina do ano que vem? Ninguém fala disso?

Correio da Cidadania: Como lidar com o negacionismo a esta altura? Você é a favor da exigência de passaporte sanitário para a reprodução da vida cotidiana?

Paulo Eduardo Brandão: Nem todo mundo precisa ser cientista profissional, mas todo mundo precisa ter um pouco de educação científica, que é uma barreira contra a desinformação. Investir em educação científica nas escolas é o que, a médio prazo, pode gerar prevenção social. Nos próximos anos não vai acontecer isso, não vamos recuperar décadas perdidas, mas é necessário.

Sobre passaporte sanitário, penso que faz sentido a vacinação ser obrigatória. É a mesma coisa que pagar imposto. Não gosto de pagar, mas é uma colaboração com a sociedade. Tem de ser obrigatória. É uma pandemia muito nova, não sabemos como será no longo prazo, se haverá mais variantes.

Nem é nada de novo. Outras vacinas são obrigatórias. Não podemos matricular crianças nas escolas sem mostrar uma carteira de vacinação. Essa é só mais uma entre tantas vacinas.

Correio da Cidadania: Pensando globalmente, qual o horizonte de longo prazo para o coronavírus? Continuaremos sob forte risco mortífero enquanto não se vacinar toda a humanidade?

Paulo Eduardo Brandão: Alguns países como os EUA compraram vacinas para vacinar 9 vezes sua população, enquanto na África a cobertura vacinal mal passa de 7%. Não faz sentido zerar um país enquanto outros têm a doença correndo solta. Só estaremos protegidos quando todos tiverem a vacina.

Em alguns anos ainda estaremos convivendo com a doença. Certamente a pandemia vai se retrair. A questão é como estaremos preparados para as próximas, seja de coronavírus, de influenza ou alguma hoje desconhecida. Precisamos nos antecipar. Precisamos estudar os vírus presentes no ambiente a fim de podermos prever qual pode ser o próximo surto pandêmico. Precisamos testar vacinas, medicamentos, mesmo que se perca parte do esforço, porque talvez não aconteça uma nova pandemia em 5, 10 anos. Mas o racional é isso: observar, prever e se preparar.

Temos capacidade para isso, mas não temos dinheiro. O CNPQ morreu, o Ministério da Ciência não existe, o Capes está nos estertores. Sobram agências estaduais, mas não dão conta... Falta investimento. Poderíamos nos colocar acima de muitos países no mundo, mas não há visão neste sentido.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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