Correio da Cidadania

Glauber Braga: “Bolsonaro deve ser responsabilizado por sabotar políticas de combate à pandemia"

0
0
0
s2sdefault


O ano de 2021 vai se encaminhando para o final, e entre os votos de que 2022 seja o último em que teremos de aguentar um governo protofascista, ficam as preocupações quanto a suas bases sociais e as lembranças de mais um período em que tivemos de lidar com o desaforo coletivo diariamente. Felizmente tivemos uma convergência entre a CPI da Covid-19 no Senado e amplas manifestações populares antibolsonaristas que fortaleceram a pressão por vacinas, sem a qual estaríamos em condição ainda mais dramática. Apesar disso, o custo foi alto: mais de 600 mil mortes no agregado, com cerca de 450 mil só nesse ano, e uma série de escândalos dignos dos filmes sobre os horrores nazistas da Segunda Guerra Mundial, como foi o caso da Prevent Sênior, a partir do qual ficamos sabendo que “óbito também é alta”, frase que resume o abismo em que ainda estamos metidos. É sobre esta conjuntura que entrevistamos Glauber Braga, deputado federal pelo PSOL-RJ e pré-candidato à presidência da República pelo partido.

“Bolsonaro precisa ser responsabilizado. Ele organizou uma política de morte para aglutinar sua base de apoio de extrema direita e em nome disso tocou um processo de boicote a um conjunto de medidas que podia ter salvo as vidas de centenas de milhares de pessoas. E teve gente que para lucrar, agradar a presidência da república e se articular em conjunto com Bolsonaro ou deu respaldo, ou ajudou a tocar medidas de sabotagem ao combate à pandemia semelhantes às adotadas pelo governo Federal, como é o caso da Prevent Sênior”, afirmou.

Ao longo da conversa, Glauber refletiu sobretudo a respeito das bases de sustentação do bolsonarismo e do papel das esquerdas em seu combate e na construção de um projeto de país mais justo. Para ele, derrotar o rentismo e o neoliberalismo, a política de destruição ambiental e de concentração da terra e da riqueza, fortalecer o serviço público e realizar um monumental trabalho de formação e educação política da população são tarefas que as esquerdas deveriam priorizar independentemente dos resultados eleitorais que teremos em 2022.

“É claro que a derrota, mesmo que simbólica, com o afastamento de Bolsonaro, é uma necessidade e não podemos abrir mão desse enfrentamento de maneira alguma. Mas também não podemos ter a ilusão de que derrotado Bolsonaro nas urnas, estará derrotado o bolsonarismo na sociedade. Essa é uma luta que continuará pra além do ano de 2022”.

Leia a seguir a entrevista na íntegra.

Correio da Cidadania: Como analisa os trabalhos da CPI da Covid e seu relatório final com 72 indiciamentos?

Glauber Braga: Tem de haver responsabilização do Bolsonaro e de todos aqueles que sustentaram sua política de morte. Não há mediação ou ponderação com os fatos. Ele organizou uma política de morte para aglutinar sua base de apoio de extrema direita e em nome disso tocou um processo de boicote a um conjunto de medidas que podia ter salvo as vidas de centenas de milhares de pessoas. E teve gente que para lucrar, agradar a presidência da república e se articular em conjunto com Bolsonaro, ou deu respaldo, ou ajudou a tocar medidas de sabotagem ao combate à pandemia semelhantes às adotadas pelo governo Federal, como é o caso da Prevent Sênior.

A responsabilização é necessária mas é evidente que, com mais de 70 indiciados, agora é tarefa de cada um dar todas as informações em um processo com ampla defesa, contraditório, onde as pessoas possam ter a capacidade de se manifestar sobre essa política de morte de Bolsonaro – ou não, no caso dos que considerem não ter participado disso.

Na nossa avaliação, no caso do presidente e das pessoas que estruturaram essa política com ele, fica bem evidente que devem ser responsabilizados.

Correio da Cidadania: Quais devem ser, em sua visão, os desdobramentos dessas investigações e depoimentos e quais os efeitos dos acontecimentos na sociedade brasileira?

Glauber Braga: A maioria da população vê todos esses acontecimentos, como os escândalos da Prevent Senior, da negociação paralela de vacinas e assim por diante, como um horror. Tanto é que a rejeição ao Bolsonaro, hoje, e segundo diversos institutos de pesquisa, passa dos 60%. Na minha avaliação é um efeito direto também daquilo que foi a forma de administração da pandemia com a implementação dessa política de morte. Considero que a maioria da população assistiu e passou por isso completamente horrorizada.

Correio da Cidadania: Por que, diante de todos os assombros causados pela CPI, o movimento pelo impeachment de Bolsonaro estancou? Você ainda o consideraria necessário?

Glauber Braga: Considero necessário o impeachment de Bolsonaro. Cada dia que ele permanece na cadeira de presidente da república é um perigo a mais em relação as ameaças permanentes que ele faz de fechamento de regime e para a implementação dessa política com a qual já demonstrou não ter limites para alcançar os objetivos do seu projeto de poder. Há uma necessidade permanente de continuar essa batalha.

Mas por que arrefeceu? Acredito que por motivos diversos, uma questão multifatorial. Dentre essas questões eu destacaria na minha avaliação que há uma expectativa que terceiriza aquilo que pode ser o desfecho da derrota de Bolsonaro ao quadrado institucional. Seja a partir de uma ação que venha a partir do enquadramento de Bolsonaro pelos poderes instituídos de imediato, o que acho que é um grave equívoco, ou a partir das eleições de 2022, como se uma vez que Bolsonaro seja derrotado eleitoralmente, os nossos problemas estariam resolvidos. E isso é uma linha de orientação que está em parte da oposição.

Fora isso, os setores - principalmente da direita - que fazem discursos públicos contra o Bolsonaro, no final das contas consideram a presença dele na presidência da república algo eficaz para a implementação da sua agenda, mais especificamente a agenda ultraliberal de desmonte. Até fazem alguns discursos críticos, mas dão sustentação como pudemos acompanhar nesse ano de 2021 com a independência do Banco Central, privatização da Eletrobrás, as tentativas de aprovação da Reforma Administrativa, da privatização dos Correios, e por aí vai.

Ter um governo que não tem força suficiente para fechar o regime, mas que tem força para fazer essas medidas de desmonte caminharem é algo útil para importantes parcelas das classes dominantes brasileiras, particularmente aquelas que fazem articulações de acordo com os interesses de corporações internacionais e não por uma via que seja de garantia da soberania do Brasil.

Com esses dois componentes podemos explicar parte desse arrefecimento: estruturas que ainda dão sustentação a ele que fazem um discurso defendendo que não há espaço para interromper a política e parte da oposição, da centro-esquerda, que ainda está com cacoete de imaginar que as decisões virão do quadrado institucional, terceirizando as expectativas quase que completamente para as eleições de 2022.

Correio da Cidadania: E como lidar com setores que dão sustentação a Bolsonaro como as milícias no Rio de Janeiro ou aqueles que parecem poupados das críticas de todos os setores oposicionistas, os militares? Qual seria o caminho ideal dessa luta pelo fim do bolsonarismo?

Glauber Braga: O objetivo final tem de ser derrotar Bolsonaro e as estruturas que dão sustentação ao bolsonarismo. Elenco três delas: estrutura da agenda ultraliberal, estrutura da ampliação do estado policial punitivo e estrutura dos fundamentalismos diversos.

Agora, evidentemente, até a derrota definitiva dessas estruturas, tem passos que podem ser dados para que elas venham a se enfraquecer e é claro que a derrota, mesmo que simbólica, com o afastamento de Bolsonaro, é uma necessidade e não podemos abrir mão desse enfrentamento de maneira alguma. Mas também não podemos ter a ilusão de que derrotado Bolsonaro nas urnas, estará derrotado o bolsonarismo e essas estruturas na sociedade como um todo. Essa é uma luta que continuará pra além do ano de 2022.

Correio da Cidadania: O país parece viver um sentimento de que a pandemia, se não acabou, não assusta mais. Como você percebe isso?

Glauber Braga: É muito sério tudo o que estamos enfrentando. Enquanto tiver uma pessoa, que seja, morrendo pelos efeitos pandêmicos é porque vivemos uma situação de gravidade que não pode ser desprezada. Apesar de todo o boicote do Governo Federal o que ficou demonstrado é que o processo de vacinação foi o que de fato diminuiu o número de óbitos e mortes das pessoas e, o que precisamos fazer é dar continuidade a esse trabalho de sustentação e de garantia de estruturação da saúde pública.

Coloco de maneira objetiva: estamos nesse momento votando orçamento, e eu estou na comissão mista de orçamento. O PSOL foi uma das únicas bancadas que obstruiu o relatório setorial de um deputado bolsonarista para a área de saúde. Então reflito com vocês sobre os dados, veja só: em custos destinados ao combate à pandemia na área da saúde tivemos em 2020 um orçamento de 42,1 bilhões de reais; em 2021 foram 47,7 bilhões; agora, a proposta do relatório setorial para o ano de 2022, é difícil até de acreditar, é de 7,1 bilhões.

Portanto, saímos de 47,7 para 7,1 bilhões. Tem muita luta pra ser feita porque aqueles que negam a existência da pandemia ou a necessidade dos cuidados que precisam ser adotados para enfrentar os efeitos da pandemia são os mesmos que vão lutar por reduções drásticas, como essa do orçamento, que pode ser vital para atender milhões de pessoas e diminuir o número de mortos. Estamos trabalhando agora, nesse exato momento, para reverter tais cortes que estão dimensionados para o orçamento do próximo ano, por exemplo na área de saúde.

Correio da Cidadania: Portanto, sequer conseguimos medir os traumas que decorrerão deste momento de pandemia e de governo Bolsonaro?

Glauber Braga: Exatamente.

Correio da Cidadania: A relação da população, em toda sua diversidade, com o vírus não reafirmou certos antagonismos e tensões que vêm marcando o Brasil nos últimos anos?

Glauber Braga: Considero que a pandemia foi tratada pelo governo Bolsonaro como mais uma oportunidade para aglutinar sua militância, sua base de extrema-direita, o que já demonstrou não ter limites para fazê-lo, inclusive a partir daquilo que é a representação da morte de milhares de pessoas para fortalecer seu projeto de poder. Fez isso com a pandemia, mas faz isso com qualquer outra possibilidade que veja de, a partir de um processo de negação do outro e da afirmação de uma posição que aglutine esse grupo de extrema-direita, gerar os inimigos que são necessários para dar manutenção ao seu projeto de poder.

Respondo desse jeito porque na minha avaliação não é a repetição ou o aprofundamento de uma polarização que precisa ser superada, não é isso. Vejo como o aprofundamento de uma situação dramática na qual as extremas-direitas brasileiras estão fazendo de tudo para aglutinar a sua base que, entre outras coisas, quer fechar o regime.

É preciso que o público possa separar bem e não dar ares de sinônimo entre a resistência a esse projeto e o projeto em si, que precisa ser superado.

Correio da Cidadania: Como lidar com o bolsonarismo daqui pra frente? Acredita na possibilidade de que Bolsonaro se recupere perante a opinião pública ou o diagnóstico de Gilberto Kassab, de que deve naufragar até ficar fora do segundo turno, te parece mais provável?

Glauber Braga: Sempre temos de nos preparar para o pior. Bolsonaro trabalhou durante um período grande para converter os 20 a 30% que consideram o governo ótimo e bom em militantes fascistas que pudessem defender o governo na rua.

Na minha avaliação, hoje, dos 60% que já rejeitam o governo Bolsonaro, temos que fazer um trabalho de transformá-los em militantes antifascistas com capacidade de defender um projeto de esquerda. Não trabalho com o menosprezo daquilo que eles são capazes de fazer, me preocupo com a preparação que temos que fazer do nosso lado, do lado de cá, e essa preparação tem que ser feita a partir de todos os instrumentos necessários para superá-los.

Correio da Cidadania: Quais seriam esses instrumentos?

Glauber Braga: Do lado de lá eles têm dinheiro, poder econômico, armas, mais espaço institucional nesse momento e nós, o que temos? Temos maioria social, a maioria do povo que rejeita o governo. Tem mais gente do lado de cá. É uma necessidade preparar essa organização popular para o enfrentamento a Bolsonaro e ao bolsonarismo com comitês de organização dos mais variados, que estão surgindo, se consolidando ou aprofundando seu trabalho, para fazer essa luta prioritariamente no espaço das ruas, sem terceirizar tudo ao aspecto institucional. E se pensarmos no enfrentamento às estruturas que dão sustentação a ele, a necessidade é ainda maior.

A preparação tem que se dar em todos os campos, inclusive no campo físico. Não vamos buscar o enfrentamento físico com os bolsonaristas, não estamos indo atrás disso, mas não podemos nos submeter à intimidação física de quem quer fazer um fechamento de regime com uma minoria social de extrema-direita. Dessa forma, a organização comunitária de base, com colunas, com a participação e a presença na rua, com capacidade de mobilizar grandes mobilizações é fundamental para esse enfrentamento e uma consequente derrota do Bolsonaro.

Correio da Cidadania: Quais são os principais desafios para essa construção, especialmente no teu Estado, o Rio de Janeiro, onde na zona oeste e na Baixada Fluminense, entre outros lugares, praticamente nasceu o modelo de milícias que faz parte da política da família Bolsonaro e que aterroriza comunidades inteiras?

Glauber Braga: Se pegarmos o mapa das eleições de 2014 e compararmos com o das eleições de 2018, dois Estados viraram com o voto à direita, um foi Minas e o outro foi o Rio.

O Rio tem uma tendência, uma orientação histórica de voto na esquerda e essa virada se deu por um conjunto de fatores. Entre eles, aquilo que foi o resultado da política econômica de desmonte no Estado do Rio, por exemplo no setor de petróleo, que tem uma influência grande na vida das pessoas. E a esquerda saiu como responsável por essa crise econômica dramática que o Rio estava vivenciando.

Para que o Rio consiga dar uma nova virada e que a gente efetivamente tenha maioria em um projeto de esquerda que supere o bolsonarismo, precisamos ser fortes prioritariamente naquelas regiões onde se sofrem mais as consequências da aplicação da agenda ultraliberal de desmonte, que é justamente nesses lugares que vocês citaram, Baixada Fluminense, zonas norte e oeste do Rio, nas periferias.

E a partir daí priorizar o debate da aplicação da agenda ultraliberal, mostrar o que é isso e organizar a resistência, a fim de demonstrar que é exatamente por responsabilidade de Bolsonaro, Guedes e companhia que estamos hoje com 116 milhões de pessoas passando por algum tipo de insegurança alimentar. Precisamos organizar e passar essa mensagem para buscar força social para fazer o enfrentamento às estruturas que dão sustentação a Bolsonaro no Estado.

Na minha avaliação tem um quê em estruturação, de organização, mas tem também uma formulação de um conteúdo que precisa ser priorizado nesse embate. É trabalhar com aquilo que são as necessidades emergenciais da maioria do povo do Rio, e o povo sabe identificar seus inimigos, que são aqueles que fazem com que tal política venha a prevalecer.

Correio da Cidadania: Os grandes atores políticos nacionais parecem já mirar as eleições. O que você gostaria de ver pautado nos debates de 2022?

Glauber Braga: Quero ver pautados temas que consigam tocar as necessidades do conjunto do povo brasileiro, além de derrotar Bolsonaro e as estruturas que dão sustentação ao seu poder.

O PSOL passou por um congresso no qual 44% votou por uma candidatura própria no primeiro turno e indicaram o meu nome para essa candidatura. Com isso, começamos a constituir o que foi uma agenda de discussão programática com os eixos que consideramos ser prioritários. São quatro eixos traçados em um primeiro momento: o primeiro é derrotar o rentismo e o neoliberalismo; o segundo é derrotar a política de destruição ambiental e de concentração da terra e da riqueza; o terceiro é termos serviço público pra valer com um super-SUS e investimentos robustos na área de educação pública. Já o quarto eixo tem a ver com formação e educação política e veio do entendimento de que a luta de classes está acontecendo e que é atravessada no Brasil pelo racismo estrutural, pelo machismo, LGTBfobia e pelo capacitismo. Dessa forma, propomos a geração de planos decenais que possam ser trabalhados com organizações que têm uma história de luta em relação a cada uma dessas questões.

Acreditamos que esses quatro eixos são importantes guarda-chuvas em matérias que têm de ser trabalhadas também do ponto de vista eleitoral em 2022, mas sobretudo como uma formação, como uma organização de formação militante para fazer esse enfrentamento ao bolsonarismo. Essa é a nossa expectativa, que esses temas possam estar sendo pautados e sendo formadores de uma consciência coletiva que queira derrotar não só o ‘CPF-Bolsonaro’ mas principalmente os ‘CNPJs’ que dão estruturação a esse projeto de morte.

 

Gabriel Brito e Raphael Sanz são jornalistas e editores do Correio da Cidadania.

0
0
0
s2sdefault