'Todas as mortes de indígenas têm de ficar na conta dos ruralistas e do Estado brasileiro'
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- Raphael Sanz, da Redação
- 20/10/2015
A questão indígena se mostra cada vez mais urgente e perpassa todos os setores do debate político, social, econômico e ambiental da atualidade brasileira. Uma série de conflitos envolvendo o direito à terra dos povos indígenas e a necessidade de expansão dos barões do agronegócio tem resultado em uma constante episódios de extrema violência, com captura, tortura, estupro e assassinato de líderes indígenas como “resposta” às lutas pela retomada das terras.
Atualmente, os conflitos no Mato Grosso do Sul têm mais destaque nas páginas da imprensa do Sul e Sudeste do país, mas as contradições estão presentes em todo o território. Para fazer uma análise e oferecer uma contextualização a respeito desse debate, entrevistamos Sônia Guajajara, importante liderança indígena no Maranhão. “Todos esses conflitos, ameaças e mortes têm de ficar na conta dos ruralistas e também do Estado brasileiro, que não cumpre o direito, que não pratica a sua Constituição”, afirmou.
Quanto ao lado institucional, Sônia se coloca de maneira ponderada, comemora os avanços e critica os pontos incertos. Por exemplo, em relação à aprovação da PEC 71, que prevê o pagamento de indenização aos ocupantes das terras indígenas para sua posterior demarcação, considera um avanço como legislação, mas é crítica quanto a sua execução, levando em conta a conjuntura de crise econômica.
“Quando se libera a terra com pagamento de indenização parece um avanço, uma conquista, e poderia ser. Mas acontece que com essa crise financeira que vivemos aqui no país, de onde o Estado vai tirar dinheiro para pagar indenizações?”, indagou.
Sônia ainda avaliou o novo processo de luta dos povos indígenas pela retomada das suas terras. Para ela, é importante o protagonismo dos povos indígenas no processo. “Muitas terras que tiveram suas portarias declaratórias também conseguiram por conta da mobilização dos povos. Sabemos que isso não está de acordo com a lei, nem que é a atitude mais correta, mas no momento a própria necessidade exige que os povos se mobilizem”, declarou.
Confira a entrevista completa.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como enxerga o ano político brasileiro, marcado por um forte ajuste econômico, retirada de direitos trabalhistas e desemprego crescente? Como isso se reflete em relação às políticas indigenistas?
Sônia Guajajara: De fato, estamos em um ano muito difícil e complicado, de retirada de muitos direitos, não só dos povos indígenas, mas de toda a população brasileira. Temos um Congresso devorador, que só dá atenção àquilo que o interessa. Para nós é muito ruim que seja assim porque temos uma Constituição Federal que é a “lei máxima”, e essa Constituição garante direitos territoriais, como os dos povos indígenas. Antes mesmo de tais direitos estarem consolidados e garantidos, vivemos uma frequente ameaça de perdê-los. Ou melhor, retroceder.
Há também uma quantidade muito grande de terras a serem regularizadas e uma pressão muito forte do Congresso Nacional, aliada a todo o setor ruralista, de dentro e de fora do Congresso, para fazer com que essa pauta não avance. Assim, aumenta muito o conflito no campo, entre indígenas e fazendeiros, com muitas mortes e violência.
E todos esses conflitos, ameaças e mortes têm de ficar na conta dos ruralistas e também do Estado brasileiro, que não cumpre o direito, que não pratica a sua Constituição.
Correio da Cidadania: Em sua opinião, que papel os governos petistas reservam aos povos indígenas, dentro do contexto do desenvolvimento? Como vocês respondem a visão oficial?
Sônia Guajajara: Está muito difícil para o governo reagir a tudo que está aí, por conta da questão da governabilidade, que fez com que o PT perdesse força política. Agora, todas as decisões estão nas mãos das alianças. E a que está forte é a aliança com o agronegócio, que envolve a questão do poder econômico. Tudo isso influi na questão do PT com os indígenas.
Por mais que seja um governo “de esquerda”, não é um governo para todos. É pautado pela direita conservadora e, assim, vemos os nossos direitos sendo minados o tempo todo. O governo não consegue mobilizar sua base no Congresso e para sair da situação se coloca conivente. Por exemplo: o governo sempre se declarou contrário à PEC 215, mas o que fez para mudar a situação dentro do Congresso, mesmo tendo uma forte base aliada? Não se fez muito para arquivar e engavetar o projeto de uma vez...
No ano passado, tivemos uma vitória muito importante, quando conseguimos o arquivamento da PEC 215. Contamos muito com o apoio dos poucos parlamentares que defendem a questão indígena, além das entidades sociais que estiveram junto conosco, da articulação do movimento indígena com os movimentos sociais e também de algumas pessoas dentro do Executivo, especialmente da Casa Civil, que se mexeram contra o presidente da Câmara. Mas ficou nos bastidores. Eu acho que eles deveriam ter se empenhado mais em acabar de vez com isso.
Na primeira reunião de 2015, das quatro prioridades tiradas na mesa diretora do Congresso, a questão indígena entrou como a primeira. E exatamente a primeira coisa que fizeram foi desarquivar a PEC 215, entrando em contradição com a própria diretriz. Hoje ela continua viva, nos ameaçando com o risco do retrocesso. Para nós, tudo representa uma fragilidade muito grande do governo a esse “tratoril” do Congresso Nacional.
Correio da Cidadania: Por outro lado, vimos o Senado aprovar a PEC 71, mais favorável à demarcação de terras. Vocês acreditam em avanços a partir dessa PEC, ela traz esperanças concretas?
Sônia Guajajara: Principalmente nas regiões Sul e Nordeste, há muitas terras que estão esperando uma decisão do governo de indenizar os fazendeiros para devolvê-las aos indígenas. Em muitos casos discordamos da indenização, pois há gente de má fé que entra em terras indígenas, que já ocupou, invadiu, entrou lá... Não deveriam ser indenizados para sair, porque é morador de invasão – e de má fé mesmo!
E quando se libera a terra com pagamento de indenização parece um avanço, uma conquista, e poderia ser. Mas acontece que com a crise financeira que vivemos aqui no país, de onde o Estado vai tirar dinheiro para pagar tais indenizações? Daí fica tudo parado: os ocupantes não saem da terra e também não podem trabalhar nela, os indígenas ficam sem terra e assim por diante.
A PEC 71 pode ser uma vitória caso o Estado brasileiro tenha uma articulação preparada para o pagamento das indenizações – que chamo de doações.
Correio da Cidadania: Visto que o Estado não faria muitos esforços no sentido da demarcação das terras, houve uma grande mobilização dos diversos povos indígenas que se lançaram em luta de retomada. Como você avalia esse processo de retomada? Quais tem sido seus principais desafios e resultados?
Sônia Guajajara: Já tivemos muitas conquistas a partir das retomadas. No Mato Grosso do Sul, por mais que tenha violência e conflitos, dentre as terras que estão com a portaria declaratória assinada, quase todas conseguiram por meio da mobilização de retomada. No Nordeste, há a mesma situação: muitas terras que receberam suas portarias declaratórias também conseguiram, por conta da mobilização dos povos.
Sabemos que as retomadas não estão de acordo com a lei, nem que seriam a atitude mais correta, mas no momento a própria necessidade exige. Exige que os povos se mobilizem, se mexam, gritem e mostrem que é preciso ter sua terra e garantir seu território. Somente com a espera do cumprimento da legislação, denúncias e audiências públicas não está se resolvendo nada.
Inclusive, há dois anos o Ministério da Justiça começou a instalar aquelas famosas “mesas de diálogo” no Mato Grosso do Sul, que tampouco tiveram êxito. Uma das razões é que o povo entendeu que aquela mesa estava ali mais como uma mesa de enrolação do que de negociação. Acabou que as conversas não avançaram, o povo desacreditou das propostas apresentadas pelo governo e tomou a decisão de partir para a retomada e manter a frente de resistência.
Acredito que as retomadas são o caminho certo para mostrar externamente que os povos estão mobilizados e atentos à inoperância do Estado. Tem de continuar retomando, pressionando, mobilizando, divulgando em nível nacional e internacional, para que a questão alcance todos os cantos e ganhe uma adesão maior de apoio e defesa dos territórios indígenas.
Correio da Cidadania: Como avalia a atuação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na relação com os povos indígenas e seus interesses?
Sônia Guajajara: O tempo inteiro, ele não se mostrou claramente um inimigo, mas, também, em nenhum momento se mostrou um tomador de atitudes. Ele sempre ficou muito em cima do muro sem saber para que lado pular. E com isso manteve os povos indígenas na expectativa.
Em 2013, apresentou uma minuta de alteração de procedimento de demarcação de terra. Não satisfez nem os indígenas e nem os ruralistas. Todos questionaram, ninguém estava de acordo. Houve uma vez em que ele veio nos perguntar o que estava de errado com a minuta que ninguém tinha gostado. E nós respondemos que o problema era a própria minuta em si, que era só ele acabar com a minuta e nos deixar fazer as coisas do nosso jeito.
Portanto, acho que é assim: o ministro fica protelando muita coisa e não se decide. Ou seja, penso que o próprio governo tomou a decisão de “não decidir” e criou falsas expectativas para algo que nunca acontece. Assim, Cardozo se desgastou muito, não tinha mais condições de exercer a função e deveria ser o primeiro ministro demitido.
Correio da Cidadania: Qual avaliação geral você faz dos governos petistas e suas práticas em relação aos povos indígenas desde 2003 e até o final da atual gestão?
Sônia Guajajara: Houve uma grande tentativa de diálogo. No início do governo Lula, houve um pouco de aproximação e participação dos indígenas nos fóruns de discussões. Houve tal tentativa, mas como a pressão também aumentou muito do outro lado, por conta da questão política e econômica, foi se perdendo. Chegamos ao governo Dilma e, tanto no primeiro como neste mandato, o diálogo não acontece. Os povos indígenas estão muito insatisfeitos com a política que temos visto hoje do Estado brasileiro.
Estamos organizando a Conferência Nacional de Políticas Indigenistas e seu tema central é discutir a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas sob o paradigma da Constituição Federal de 1988. Entendemos que essa relação não está boa, está distante, que o Estado não está preparado para lidar com a diversidade de povos. O governo tem de entender e estar preparado para lidar com as diferenças, as necessidades, a diversidade e se dar conta, por exemplo, de que nós somos “povos indígenas”, e não “índios”.
Começamos a conversa lá no início para garantir participação, porque estávamos naquela tentativa de reafirmar os direitos garantidos e propor novas diretrizes. Mas também vamos nos organizar e tentar estratégias de enfrentamento para tudo que está posto. Não nos interessa o partido que está no governo, nos interessam a nossa pauta, nossa causa e nossas terras, e vamos continuar lutando por elas independentemente do partido que estiver no poder.
Correio da Cidadania: Qual sua opinião sobre a criação do Tribunal Popular Indígena? O que ele diz a respeito do atual nível de articulação entre os diferentes povos?
Sônia Guajajara: Precisamos considerar os 305 povos indígenas existentes no país, com suas 274 diferentes línguas faladas, e criar um espaço de articulação que consiga juntar essas diversas vozes. Não acho que atualmente consigamos alcançar todas as vozes, de modo que é preciso uma articulação que as aglutine, onde cada um possa chegar e falar diretamente. Isso só fortalece a luta.
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Raphael Sanz é jornalista.