Correio da Cidadania

Apagão sem fim em São Paulo: “síntese da privatização. Vale o lucro, o resto é resto”

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São Paulo (SP) 22/03/2024 - Uma série de apagões continuam a afligir a cidade de SP. Hoje, unidades do SESC 24 de Maio e 14 Bis avisaram seus clientes e frequentadores que não vão abrir por causa da falta de energia. Lojas fechadas na Rua Barao de Itapetininga e bares funcionando a luz de velas.Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
São inacreditáveis dez dias de apagão em diversas partes da cidade de São Paulo, em especial no centro, coração das atividades produtivas e da própria administração pública. Apesar da blindagem midiática aos bolsonaristas Ricardo Nunes e Tarcísio Gomes, prefeito e governador, o vexame do modelo privado de gestão deste serviço essencial entra para a história. Nesta entrevista, o Correio da Cidadania rompe o cerco informativo e publica as explicações de Eduardo Annunciato, técnico de sistema elétrico e presidente do Sindicato dos Eletricitários do Estado de São Paulo.

Se em novembro uma chuva e vendaval que deixaram milhões de paulistanos sem luz tiveram a excepcionalidade como desculpa – ainda que já estejamos na era em que tal contexto está previsto -, desta vez não houve nenhum fator atípico no corte de energia que atravessa duas semanas. Com detalhadas explicações técnicas, Annunciato explica que estamos diante de um retrato absolutamente fiel dos resultados da gestão de um serviço público essencial gerido com finalidades particularistas.

“A Enel não subcontrata, ela terceiriza. Ela, que deveria prestar o serviço, interpreta uma legislação que permite a terceirização da atividade fim da empresa e terceiriza sua própria mão de obra, em massa. O que acontece quando se terceiriza muito é que diminui o tempo de resposta, porque deve-se detectar os atos realizados em outra gestão e, se necessário, convocá-la para fazer o serviço de emergência ou mesmo de problemas do dia-a-dia. Isso não é algo que se mobiliza rápido. E como a quantidade de serviço de rotina é muito alta e os contratos são muito enxutos, dificilmente se consegue destacar grupos de pessoas para atender situações emergenciais como essa que vemos em São Paulo”, descreveu.

Na entrevista, Eduardo Annunciato conta detalhes do processo de precarização, que passa pelo drástico e irresponsável enxugamento da força de trabalho, a ponto de, como acima descrito, a empresa ser praticamente fantasma em termos de corpo efetivo de funcionários. Por sua vez, o poder público vive estado de choque, ocupado por figuras que mostram fidelidade canina à ideologia privatista e, como se nada estivesse acontecendo, continuam a agenciar privatizações.

“Não basta ficar jogando a responsabilidade para a Enel, é assumir a responsabilidade. Por que não tomar de volta a empresa e tomar o controle novamente para o estado de São Paulo, como sempre foi? Por que não federalizar? Por que não ter uma secretaria municipal que cuide disso? Ou, no mínimo, um gabinete de emergência para tratar dessas questões? Era o mínimo que o poder público tinha de fazer”, criticou.

Ou seja, apesar do bloqueio ideológico que passou a demonizar toda e qualquer ação do Estado, a calamidade deste serviço público central no funcionamento cotidiano de todas as atividades deixa claro que reverter os processos de privatização são uma questão atual. Afinal, cabe ao Estado garantir o acesso e a qualidade dos serviços públicos. E, como mostram os bilionários lucros extraídos pela Enel em 2023 no Brasil, não há interesse em investir seriamente na garantia de tais direitos do cidadão brasileiro. Mas o caso paulista sugere um Estado corrompido pelo conluio, que praticamente se recusa a exercer seu papel regulatório.

“O modelo que está aplicado hoje está fracassado, é um modelo criado na década de 90 que não cumpriu suas promessas de eficiência, boa gestão, modernização. Aqui, a Eletropaulo foi privatizada em 1998, com um modelo frouxo, que finge algum tipo de controle, finge que tem algum tipo de meta, mas são metas burláveis, metas contornáveis, são fiscalizações frouxas, que de fato não existem, não tem fiscal para fiscalizar as empresas. Eles pegam os dados da própria empresa, é uma fiscalização administrativa... Pedem documentos da empresa e admitem como corretos os documentos entregues pela empresa”, resumiu.

Confira a entrevista completa com Eduardo Annunciato.


Correio da Cidadania: O que explica o apagão de vários dias em parte do centro? O que pensa das explicações da Enel?

Eduardo Annunciato: Não é só o centro, tanto a rede aérea como a subterrânea perdeu a confiabilidade e o setor elétrico não pode perder a confiabilidade do sistema. O sistema tem de estar com manutenção em dia, deve-se ter redundância para atendimento, tem de ter pessoal e material preparado para as emergências.

Ao longo dos anos foi se perdendo a lógica do processo de qualidade e confiabilidade do serviço, e assim chegamos a este caos. O que a Enel está falando é verdade. Houve um problema de intercalação com uma atividade da Sabesp, que acabou atingindo o subterrâneo. O sistema, por falta de confiabilidade, não suportou, se sobrecarregou. Ao desligar um transformador e a carga ser transferida para os outros, gerou-se uma sobrecarga e o sistema não aguentou. Mas não tem justificativa para tantos dias sem energia regular.

Demorar 12 horas, 16 horas para achar um defeito, tudo bem. É um defeito, deve-se localizar nos subterrâneos, é demorado mesmo. No entanto, o tempo de demora para voltar a energia para todo mundo está fora de qualquer padrão de qualidade de uma rede subterrânea. A Enel está devendo nesse caso e não há mais o que se falar. Tem de tomar as providências para atender a população e tem de ser multada de forma exemplar. Multinhas, como as que vemos, não resolvem nada, tem de ser mais pesado.

Correio da Cidadania: Qual a responsabilidade do poder público neste processo? Não deveria, no mínimo, ter um gabinete de emergência?

Eduardo Annunciato: Os governos têm responsabilidade nessas discussões. O prefeito Ricardo Nunes tem de se interessar em atender a população bem, o governador Tarcísio Gomes de Freitas tem de se interessar em atender bem. Não é só querer privatizar, como eles fazem, estão querendo privatizar a Sabesp, estão querendo privatizar agora a EMAE, geradora que cuida dos reservatórios de água da cidade de São Paulo...

A população não pensa nisso, mas São Paulo equivale a um Uruguai e Paraguai juntos. São 12 milhões de habitantes aqui na cidade de São Paulo, enquanto o Uruguai e o Paraguai têm 11 milhões de habitantes juntos. É algo significativo, é um PIB maior do que de muitos países nesta discussão. E a falta de energia destrói os resultados do comércio, da indústria, tira a qualidade de vida da população, é algo terrível. É óbvio que a prefeitura tinha de estar antenada e buscando uma solução.

Não basta ficar jogando a responsabilidade para a Enel, é assumir a responsabilidade. Por que não tomar de volta a empresa e tomar o controle novamente para o estado de São Paulo, como sempre foi? Por que não federalizar? Por que não ter uma secretaria municipal que cuide disso? Ou, no mínimo, um gabinete de emergência para tratar dessas questões, como colocado na pergunta? Era o mínimo que o poder público tinha de fazer.

Mas, na verdade, estão catatônicos com a realidade dos fatos, gerados por erro de gestão, a partir de uma ideia que não aceita mais a posse pública dos serviços essenciais, pois querem sempre ficar privatizando. Essa é a lógica. Eles não têm resposta quando acontece uma catástrofe dessa, por sinal um desastre anunciado. Todo mundo sabia que poderia acontecer a qualquer momento.

Correio da Cidadania: Por que a Enel não consegue oferecer soluções mais rápidas? O que isso teria a ver com o quadro de terceirização de seus funcionários?

Eduardo Annunciato: A empresa não consegue responder mais rápido porque negligencia uma grande quantidade de trabalhadores para exercer as atividades, tanto o próprio como o terceiro. Encerram contratos antes de repor mão de obra qualificada no lugar dos contratos terceirizados e não tem o número suficiente de quadro próprio. Se isso não bastasse, faltam materiais e equipamentos para o pessoal trabalhar. Isso gera problema de imediato.

Está faltando gestão, está faltando controle, está faltando uma atuação mais profissional das empresas e fiscalização efetiva dos poderes públicos, porque tais problemas já deveriam ter sido identificados pelo poder público. A prefeitura e o governo do Estado já deveriam ter multado ou tomado uma posição severa sobre o que está acontecendo.

Correio da Cidadania: A Enel subcontrata outras empresas para fazer parte do serviço? Há uma quarteirização?

Eduardo Annunciato: A Enel não subcontrata, ela terceiriza. Ela, que deveria prestar o serviço, interpreta uma legislação que permite a terceirização da atividade fim da empresa e terceiriza sua própria mão de obra, em massa. O que acontece quando se terceiriza muito é que diminui o tempo de resposta, porque deve-se detectar os atos realizados em outra gestão e, se necessário, convocá-la para fazer o serviço de emergência ou mesmo de problemas do dia-a-dia.

Isso não é algo que se mobiliza rápido. E como a quantidade de serviço de rotina é muito alta e os contratos são muito enxutos, dificilmente se consegue destacar grupos de pessoas para atender situações emergenciais como essa que vemos em São Paulo. Estamos vivendo um caos, uma gestão totalmente temerária. Eu não sei onde que eles querem parar.

Correio da Cidadania: Depois da crise gerada pela tempestade com vendaval em 3 de novembro, a empresa tomou providências para melhorar sua rede?

Eduardo Annunciato: Sim, tomaram providências, não para resolver os problemas de manutenção. Estão contratando o pessoal, mas estão contratando a conta gota, de forma muito limitada, acanhada. A Enel deveria no mínimo dobrar o efetivo em campo. E a empresa fica nessa conversa de que vai contratar um número pequeno de pessoas, 1.000, 1.500, espaçados pelo tempo. Parece muito, mas é pouco para o tamanho da defasagem que foi gerada pela empresa ao longo do tempo. E tem de resolver rápido, o que deve ser cobrado pelos órgãos competentes.

Vão testando, mas isso aqui não é um laboratório, isso aqui é a maior metrópole do país. Não somos ratinhos de laboratório, não dá para ficar brincando, a gente não é cobaia, tem que tomar soluções efetivas. Ninguém tem de inventar roda, não, a empresa funcionava muito bem, eles desmontaram a empresa para oferecer lucro. É só voltar ao que era antes para que a empresa funcione muito bem.

Correio da Cidadania: Como você disse, foi feita uma opção clara por aumento de lucros e, de fato, chama atenção que mesmo diante de um quadro de descalabro a empresa registre lucros bilionários em 2023. Como você observa essa contradição?

Eduardo Annunciato: É a síntese da privatização. A essência da privatização é isso, garantir o lucro a todo custo, ampliar o lucro a todo custo, em detrimento da população, do trabalhador, dos profissionais, da qualidade do serviço e de qualquer coisa. O que importa é garantir o lucro, o resto é resto, essa é a síntese de uma privatização.

E nossos governantes apostam nesse diacho de privatização, querem privatizar o restante que existe. Na verdade, nosso país carece de reestatização e não de privatização, basta de privatizações, privatizações já demonstraram que não funcionam.

Correio da Cidadania: Portanto, você enfaticamente defende reestatizações, ainda que tenha se criado uma espécie de bloqueio mental na sociedade a esta opção?

Eduardo Annunciato: O modelo que está aplicado hoje está fracassado, é um modelo criado na década de 90 que não cumpriu suas promessas de eficiência, boa gestão, modernização. Aqui, a Eletropaulo foi privatizada em 1998, com um modelo frouxo, que finge algum tipo de controle, finge que tem algum tipo de meta, mas são metas burláveis, metas contornáveis, são fiscalizações frouxas, que de fato não existem, não tem fiscal para fiscalizar as empresas. Eles pegam os dados da própria empresa, é uma fiscalização administrativa... Pedem documentos da empresa e admitem como corretos os documentos entregues pela empresa.

É muito frágil esse sistema de fiscalização que aplicam, com um quadro muito reduzido tanto da Arcesp como da Enel. É para inglês ver a fiscalização dos órgãos reguladores, a revisão tarifária de 4 em 4 anos é um escárnio, gera mais problema. A revisão tarifária deveria ser anual, pois poderia trazer aumentos menores e ofereceria maior poder de cobrança dos órgãos fiscalizadores em cima do resultado da empresa, em vez de deixar acumular por 4 anos para tomar uma decisão referente ao andamento das coisas.

Quanto à fiscalização, tinha de ampliar, fazer parcerias com faculdades, com sindicatos, com ONGs, porque do jeito que está não se fiscaliza nada, as metas a serem cumpridas pela empresa deviam ser otimizadas. O DEC-FEC (Duração Equivalente de Interrupção e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora, medidas observadas por agentes reguladores) é para inglês ver, como já falei anteriormente, tínhamos que implantá-lo com multas automáticas, utilizando inteligência artificial. Por exemplo, faltou energia numa residência, comércio, indústria, aplica-se imediatamente uma multa, que seria revertida em favor do usuário do serviço.

Seria a melhor forma de fazer uma gestão proativa, para que as empresas não fizessem essas armações contábeis para auferir lucros bilionários e deixar a gente aqui em papos de aranha, como a população está vivendo hoje aqui em São Paulo.
Existe solução.

Agora, o ministro de Minas energia tem de ouvir a sociedade. Particularmente, tento falar com ele há meses. Da última vez marcamos uma reunião para o dia 27 de março, mas acabou novamente adiada. Parece que o ministro gosta mais de oba-oba do que de trabalho efetivo de buscar solução. Gosta de festejar muito os resultados favoráveis, as coisas que crescem, mas não gosta de tratar dos problemas. Não dá para esconder debaixo do tapete os problemas que estamos vivendo, temos de cobrar do ministro de Minas e Energia um posicionamento. Ou pode sair de lá e deixar alguém trabalhar.

É muito ruim o ministério de Minas e Energia fazer de conta que não é com ele. A ANEEL é o órgão fiscalizador, mas o ministério de Minas e Energia é quem tem que dar linha para essas coisas, para a política nacional e as cobranças em cima das empresas. Está devagar, está frouxo demais, esse é o fato. Temos de mudar o modelo e precisamos de ministério de Minas e Energia com um braço muito forte para voltar a fazer funcionar o sistema e botar o setor para impulsionar a indústria brasileira de fato.

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Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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