Correio da Cidadania

2023-2024: os “bons tempos” não voltam mais?

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A história de todas as sociedades é a história da luta de classes - Vermelho
As lutas proletárias – greves e protestos – foram enormes em 2023 no mundo todo, dos EUA (1) à China (2), passando pela África (3). Houve uma multiplicidade de confrontos sociais movidos pelos explorados e oprimidos, incluindo paralisações feministas na Espanha e Islândia e a resistência palestina armada contra o racismo e o colonialismo sionistas. Não há motivos para supor que as movimentações das classes populares no planeta irão parar em 2024.

De costas para este quadro, a ex-esquerda – na internet mas também no mundo “analógico” – segue acompanhando privilegiadamente as disputas entre Estados burgueses e as classes dominantes que os dirigem, mais ou menos liberais, mais ou menos autoritárias ou progressistas. Nessa toada, quando das entranhas da sociedade outras jornadas de junho emergirem, certamente denunciarão “guerras híbridas”, “revoluções coloridas” e outras bobagens conspiratórias.

Enquanto se apavoram com a Argentina (como se fosse possível vencer uma eleição com um candidato peronista que vinha a ser o ministro da economia com inflação mensal de mais de 100%!), não percebem a nova derrota judicial da extrema-direita israelense sob o genocida Netanyahu, em sua tentativa de impor o repertório autocrático copiado de Chávez na Venezuela, Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil. Também esquecem que na Espanha e Polônia houve derrotas eleitorais da direita e extrema-direita.

Aqui no Brasil o campo progressista permanece nostalgicamente esperando a volta improvável aos “bons tempos” da década retrasada, sob Lula 1 e 2. Por isso o público lulista (e neolulista da ex-esquerda – especificamente o PSOL, que à época se opunha ao PT) segue bovinamente apoiando Lula 3 na repetição de todas as ações capitalistas neodesenvolvimentistas que nos levaram a Temer e a Bolsonaro: apoio ao agronegócio e ao extrativismo, que contribuem para a exploração dos trabalhadores, o extermínio das populações tradicionais e a crise climática.

A novidade do início deste ano foi o ministro da fazenda Haddad trollar o próprio PT em entrevista (4), por – fingir – criticar seu arcabouço fiscal que arrocha os trabalhadores, mas ao mesmo tempo comemorar a continuidade do crescimento econômico em 2023 sob a mesma política neoliberal. Nada do que o lulismo não tenha sempre feito em todos seus governos.

Em tempos de polarização artificial entre progressistas moderados e conservadores fanatizados, cai bem um pouco de marxismo revolucionário (nada a ver com o marxismo acadêmico ou neoliberal de Haddad e dos psolistas de hoje em dia) para a gente entender o século 21. Por isso, voltemos rapidamente a Marx e Engels, com todos seus acertos (muitos) e erros (poucos): como eles procederam com o tipo de populismo reformista que hoje é corporificado pelo lulismo?

Em Glosas marginais ao programa do partido operário alemão, Marx empreende uma forte crítica aos seguidores do líder carismático – supostamente de esquerda – Lassalle. Sobre a substituição da classe, conceito marxista, pelo povo, categoria nacionalista, o autor maior do materialismo histórico e dialético critica os lassallianos por conceberem “o movimento operário do ponto de vista estritamente nacional”. E explica: “a classe operária deve antes de tudo organizar-se no seu próprio meio como classe e (...) o seu próprio país é o teatro imediato dessa luta” (itálico de Marx); porém, “sua luta de classe é nacional, não no conteúdo mas na forma” (negrito meu). “E a que reduz o partido operário alemão o seu internacionalismo? À consciência de que o resultado dos seus esforços ‘será a fraternidade internacional dos povos’” (5) (negrito também meu). A troca da “classe” pelo “povo” operada por todos os nacionalismos políticos e teórico-metodológicos – a maioria deles oriundos da esquerda, deixando de lado a condição socialista, portanto – é apontada por vários autores marxistas brasileiros, desde ao menos Roberto Schwarz (6). A substituição do revolucionarismo proletário pelo reformismo burguês se dá exatamente por meio do nacionalismo e do culto (pequeno-burguês (7)) ao Estado.

A respeito desse culto estatista, Marx prossegue: “Em vez de decorrer do processo de transformação revolucionária da sociedade, a ‘organização socialista de todas as atividades’ ‘tem origem’ no ‘auxílio do Estado’ (...). Eis o que é digno da imaginação de Lassalle, que acreditava que se podia edificar uma sociedade nova por meio de empréstimos do Estado” (8) (negrito meu). Diante disto, o que dizer do lulismo e de todos os populismos progressistas de hoje em dia, que creem que políticas públicas – e não os movimentos dos trabalhadores – são capazes de mudar estruturalmente a sociedade? Com Marx, pode-se responder a tal questão colocando os movimentos sociais em oposição ao Estado: “No que se refere às sociedades cooperativas atuais, estas só têm valor na medida em que constituem criações autônomas dos trabalhadores e não são protegidas nem pelo governo nem pelos burgueses” (9) (ambos os negritos são meus).

Para ficar ainda mais nítido: “A liberdade consiste em transformar o Estado, órgão que se eleva acima da sociedade, num órgão inteiramente subordinado à sociedade, e mesmo hoje as formas do Estado são mais ou menos livres na medida em que limitam a ‘liberdade do Estado’”; “(...) em vez de considerar a sociedade atual (e isto vale para toda a sociedade do futuro) como o fundamento do Estado existente (...), trata, pelo contrário, o Estado como uma entidade independente (...)” (10). (itálico de Marx).

Em Carta a A. Bebel, Engels denuncia o caráter ético-moral dos reformistas lassallianos, por serem desonestos e mais astutos politicamente que os revolucionários. Impossível não lembrar aqui das más práticas, maquiavelianas e “realistas”, que pelegos lulistas e psolistas querem nos impor como naturais na militância. Além disso, ele é irredutivelmente contrário à bandeira política central do reformismo, o auxílio que demandavam para a instauração do socialismo (11).

Trata-se do “auxílio lassalliano do Estado” – nada a ver, obviamente, com as necessárias políticas públicas de assistência à miséria que governos de “esquerda” e direita no mundo praticam há décadas. Por conta dessa concessão à Lassalle, explicando que o referido auxílio era defendido pelos lassalianos e republicanos burgueses em oposição às propostas revolucionárias de expropriação dos capitalistas, Engels denuncia: “O nosso partido não podia ter caído mais baixo na humilhação” (12). Neste ponto, inevitável nos remetermos à distância que separa o PSOL das origens do de hoje em dia – ou de como o PSOL foi aderindo à narrativa lulista pós-impeachment que se voltava à destruição da própria razão de ser do partido.

Para escândalo dos estatistas seguidores dos modismos losurdista e duginista contemporâneos, que se imaginam de esquerda, continuemos: “(...) embora o proletariado tenha ainda necessidade do Estado, não é de modo algum por causa da liberdade, mas para reprimir os adversários. (...) Assim, proporíamos usar por todo o lado em vez da palavra Estado, a palavra ‘comunidade’ (...), uma excelente palavra antiga alemã que corresponde à palavra francesa ‘comuna’” (13). (itálico de Engels). Voltando ao caso brasileiro, por esta passagem apura-se a diferença fulcral entre os nacionalistas, que defendem toda a CLT varguista, e os socialistas e revolucionários (bem como o PT das origens), que eram contrários ao controle estatal sobre os sindicatos imposto pela mesma CLT. E Engels conclui: “(...) no caso de ser aceita [a adoção do programa lassalliano pelo partido operário alemão], nem Marx nem eu poderíamos jamais aderir ao novo partido, fundado com tal base”, visto que desta forma “todo o proletariado socialdemocrata [ficaria] de joelhos diante dos lassallianos” (14). (Não por acaso, tantos militantes honestos e valorosos saíram do PSOL ainda em 2022, por ocasião da submissão ao lulismo (15)).

É bom contextualizar: Marx e Engels agiam e escreviam a partir do ângulo alemão, com a experiência da “via prussiana” e com a herança estatólatra hegeliana (que ambos combatiam), tão familiares a nós brasileiros familiarizados com o nacional-desenvolvimentismo varguista e com as políticas públicas lulistas. Como o “lugar de fala” dos fundadores do materialismo histórico e dialético era o movimento operário ao qual aderiram, ambos sofriam, digamos assim, as melhores determinações de classe possíveis. E nessa chave pode-se compreender a extinção de uma geração de militantes marxistas no Brasil do século 21. As piores determinações de classe passaram a dominar o PSOL: estudantes e servidores públicos que se tornam assessores parlamentares ou operadores de políticas públicas, sem nunca terem entrado no mercado de trabalho (ou dele estarem se afastando, ao menos). Esta, sem dúvida, é fórmula certeira para a débâcle ideológica e ético-moral de qualquer partido, bem como para o distanciamento dos setores populares que nunca viveram na democracia dos “incluídos” institucionalmente (que esta ex-esquerda prioriza defender, contra Bolsonaro). O mesmo poderíamos dizer do recente racha do PCB, entre professores e servidores públicos, de um lado, e jovens precarizados e conectados ao mundo virtual, de outro (no PCB-RR) – com todos os prós e contras dos dois lados neste caso.

Enquanto na cena política brasileira – e mundial – estiverem mais visíveis “intelectuais marxistas” de internet que movimentos sindicais e sociais, as ditas “classes médias” estarão encarnando a tese “substitucionista”: os trabalhadores são deslocados por estes setores da condição de agente principal da transformação revolucionária (16). O problema é que apenas a classe proletária possui agência – capacidade histórica e social – de empreendê-la. Por isso devemos seguir militando nos movimentos populares, pré-requisito para a reconstrução da esquerda no Brasil, que se constituirá enquanto tal, necessariamente sendo oposição ao lulismo (e não apenas ao bolsonarismo).

Notas:

1) https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/09/25/do-piquete-ao-palanque-onda-de-greves-nos-eua-chega-a-corrida-pela-casa-branca.ghtml 

2) https://anovademocracia.com.br/explosao-de-greve-operarias-atinge-a-china-em-2023/ 

3) https://www.prensalatina.com.br/2023/03/11/sindicato-sul-africano-em-greve-mantem-suas-demandas/ 

4) https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/01/02/pt-nao-pode-celebrar-resultado-e-achar-tudo-errado-diz-haddad.ghtml 

5) Marx, K. & Engels, F. Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt. Lisboa: Estampa, 1975, pg. 27.

6) A respeito, veja-se meu 10 anos de junho de 2013 – da crise do lulismo à derrota de Bolsonaro, Rio de Janeiro, Mauad X, 2023, pg. 98.

7) Segundo a teoria do populismo formulada por Francisco Weffort.

8) Marx, K. & Engels, F. Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt, Lisboa, Estampa, 1975, pg. 33.

9) Idem, pg. 34.

10) Ibidem, pg. 35. É bom que se diga: não estou fazendo nenhuma pegadinha aqui... um lacrador lulista, ou “marxista” defensor do Estado, desavisadamente, poderia ler estas passagens e imaginá-las saindo da boca não de Marx, mas de algum influenciador bolsonarista (“ultraliberal”) nas redes sociais. Mas poderíamos ir além na provocação devidamente fundamentada: “É absolutamente de rejeitar ‘uma educação do povo pelo Estado’. (...) é pelo contrário, o Estado que tem necessidade de uma educação bem dura administrada pelo povo.” Ibidem, pg. 39 - aqui o caráter educativo dos movimentos sociais (resgatado pela educação popular e pelas ciências sociais acadêmicas no séc. XX) é estabelecido com maestria pelo marxismo do século XIX.

11) Ibidem, pg. 43/44.

12) Ibidem, pg. 47.

13) Ibidem, pg. 49.

14) Ibidem, pg. 50.

15) A respeito, veja-se: https://rupturapsol.wordpress.com/ 

16) O “partido intelectual” registrado por Daniel Pécaut em Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação (São Paulo, Ática, 1990) foi superado justamente pela emergência do novo sindicalismo, com Lula à frente. Mas desde o fim do século passado, o movimento social em nosso país refluiu de tal maneira que o petismo das origens se converteu em lulismo, o PSOL fez o mesmo trajeto em muito menos tempo, de maneira que hoje os intelectuais progressistas ofuscam e dominam o campo popular, nos deixando num beco sem saída até o aparecimento de uma nova geração movimentista e esquerdista (talvez pré-anunciada por junho de 2013).

Marco Antonio Perruso é professor de Sociologia; pesquisador na área de movimentos populares, esquerda e teoria marxista; militante do do Andes-SN.

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