Correio da Cidadania

Temporão: A virada pode vir da indústria

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Créditos: EBC

Concluído o primeiro ano do terceiro mandato de Lula, chega-se a um momento de avaliações a respeito de suas realizações. No âmbito da Saúde, foram muitas as iniciativas do Ministério comandado pelo socióloga Nísia Trindade Lima, que teve a árdua missão de reerguer a pasta de maior dotação orçamentária dos escombros do bolsonarismo. Nesta entrevista ao Outra Saúde, José Gomes Temporão, também ex-ministro da Saúde, faz uma análise deste primeiro ano no campo da saúde.

“Nísia trouxe de volta para dentro do Ministério a ciência, voltou a trabalhar com a sociedade, passou a ter um grau de comunicação melhor e já se percebem avanços. É evidente que há limites, óbvio, mas os limites são dados pela conjuntura, por esse presidencialismo tupiniquim, onde o congresso tem uma relevância cada vez maior e um congresso extremamente conservador, que impõe restrições orçamentárias e financeiras”, sintetizou.

Ao admitir limites impostos por um sistema político que segue a dar sinais de corrosão, inclusive em termos internacionais, Temporão parece agregar uma necessária dose de realismo em relação às expectativas de reconstrução nacional. Afinal, ainda vivemos sob forte controle político e oligárquico do Estado quanto às suas funções essenciais perante a população. Ainda assim, Nísia conseguiu colocar em marcha uma série de políticas públicas que voltam a garantir patamares mínimos de funcionamento do SUS e criam perspectivas de evolução na qualidade de nosso sistema público.

Membro da Comissão de Estudos Estratégicos do BNDES para Saúde, Temporão faz parte do setor do governo voltado à potencialização do chamado Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), e mostra empolgação a respeito das possibilidades que se colocam neste âmbito, que, em linhas gerais, passa a tratar a saúde como um vetor econômico de peso, para além de um direito e um serviço público em si mesmos.

“A nova política para o CEIS, a meu ver, é talvez a área onde melhor se expressa o novo momento da saúde brasileira. A visão estratégica da saúde como parte fundamental de um novo modelo de desenvolvimento sustentável, autossuficiente, baseado na ciência, na utilização do poder de compra do Estado, que é muito grande, no desenvolvimento tecnológico e na produção local, na ampliação da capacidade da produção local, é central. O Brasil tem todas as condições, por suas características singulares, grande mercado, sistema universal, experiência produtiva, a maior capacidade produtiva industrial da América Latina, a Anvisa, uma agência reguladora de muita qualidade, grande capacidade para estudos e pesquisas clínicas, universidades, centros de pesquisa, e pode utilizar do poder de compra do Estado através de parcerias entre laboratórios públicos e privados”.

Confira a entrevista completa.

2023 na política brasileira talvez possa ser considerado um ano mais longo que o normal, iniciado em novembro de 2022, no trabalho de transição de governo e luta por um orçamento considerado mínimo. Como você avalia este percurso no campo da Saúde?

No final de 2022, a equipe de transição, da qual Nísia Trindade era membro, enquanto presidente da Fundação Oswaldo Cruz, teve uma importância muito grande, porque foi possível fazer um diagnóstico da situação da saúde brasileira e um diagnóstico do ministério, institucional. Naquele momento, foram alavancadas e alinhadas algumas medidas emergenciais, que serviram como um mapa de aproximação da reconstrução do ministério. Nísia seguiu por esse mapa nos primeiros meses, depois houve a opção política da retomada de programas de sucesso das outras gestões do presidente Lula e da presidente Dilma, como o Mais Médicos, o Farmácia Popular e a inclusão de novas áreas, de novas ênfases na saúde digital, sendo criada uma secretaria especialmente para isso.

Também se criou uma secretaria para saúde mental, e aqui há uma contradição, porque as comunidades terapêuticas estão em outro ministério, o Ministério da Ação Social, com outro ministro. Enquanto a ministra Nísia reforça os princípios da reforma psiquiátrica, no outro ministério há um modelo de enfrentamento da drogadição, da dependência química, que não se baseia em evidências científicas, e sim em princípios religiosos e outros.

Há uma ênfase também nas especialidades médicas, que é um grande gargalo, uma retomada da construção do federalismo, já que houve uma fragilização muito grande do Ministério da Saúde, a retomada do diálogo com o Conass (Conselho Nacional das Secretarias de Saúde), com o Conasems (Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde), com os estados e os municípios. O próprio Programa Nacional de Imunizações foi reestruturado e já existem alguns resultados, a cobertura vacinal da população infantil voltou a crescer e vemos a retomada da trajetória de grande sucesso desse programa, que já funcionava muito bem há décadas e foi muito fragilizado pelo bolsonarismo.

Percebe-se também um movimento da ministra de uma maior proximidade com outras dimensões de política pública, com a questão ambiental, com a questão da alimentação, isto é, coisas que chamamos de determinação social da saúde. Isso através de várias iniciativas interministeriais, transversais, que me parece que marcam também um pouco essa retomada. Mas eu diria que ainda há uma limitação no sentido de que ainda não se percebe um projeto mais abrangente, mais consistente dos rumos que se quer dar à política de saúde e eu destacaria nessa fragilidade a completa ausência, até aqui, do setor privado. Toda a dimensão privada da atenção em saúde, as novas modalidades de atenção, a questão de planos e seguros, enfim, é uma dimensão que ainda não surgiu com força no atual contexto.

Como avalia Nísia Trindade na direção do ministério da Saúde? Quais foram seus pontos altos neste primeiro ano e quais seriam seus limites?

Depois de um tenebroso período, com péssimos ministros, a nomeação da professora Nísia Trindade foi um sopro, um sopro de credibilidade, de qualidade, de liderança, de firmeza e de sensibilidade social e política. Claro que ela encontrou um ministério em ruínas, teve de reconstruir o tecido técnico e político do ministério, remontar praticamente uma nova estrutura, inclusive criando uma nova secretaria, de Informação e de Saúde Digital, e uma série de outras medidas que o grupo de transição sugeriu e recomendou.

Nísia trouxe de volta para dentro do ministério a ciência, reabriu as portas da ciência, voltou a trabalhar com a sociedade, passou a ter um grau de comunicação melhor e já se percebem avanços.

É evidente que há limites, óbvio, mas os limites são dados pela conjuntura, por esse presidencialismo tupiniquim, onde o Congresso tem uma relevância cada vez maior e um Congresso extremamente conservador, que impõe restrições orçamentárias e financeiras.

A FUNASA, por exemplo, cuja extinção havia sido recomendada pelo grupo de transição, agora é reestruturada, inclusive ampliada em sua capacidade, por pressão e iniciativa do Legislativo. Esse é um exemplo dos limites, mas Nísia vem conduzindo o ministério com muita firmeza, muita sensibilidade, muita habilidade e muita maturidade.

Como membro do grupo de trabalho do Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), o que pode dizer dos potenciais econômicos da saúde, para além de sua promoção como direito e serviço em si? O que o país pode esperar dos investimentos na área projetados no Novo PAC?

A nova política para o CEIS, a meu ver, é talvez a área onde melhor se expressa o novo momento da saúde brasileira. A visão estratégica da saúde como parte fundamental de um novo modelo de desenvolvimento sustentável, autossuficiente, baseado na ciência, na utilização do poder de compra do Estado, que é muito grande, no desenvolvimento tecnológico e na produção local, na ampliação da capacidade da produção local, é central. Tal estratégia já fora esboçada no primeiro governo Lula, mas agora volta com muito mais potência, com 11 ministérios participando do grupo executivo do CEIS, com mais robustez do ponto de vista programático, do ponto de vista dos critérios de seleção de prioridade e de governança.

E o Brasil, inclusive agora com a sua liderança no G-20, nos BRICS, na própria América do Sul, pode e deve liderar uma discussão sobre ampliação da produção local, que ganhou muita relevância na conjuntura pós-covid. A covid deixou evidente as vulnerabilidades e fragilidades, a dependência de princípios ativos, de tecnologias, de equipamentos produzidos fora do país. O Brasil tem todas as condições, por suas características singulares, grande mercado, sistema universal, experiência produtiva, a maior capacidade produtiva industrial da América Latina, a Anvisa, uma agência reguladora de muita qualidade, grande capacidade para estudos e pesquisas clínicas, universidades, centros de pesquisa, e pode utilizar do poder de compra do Estado através de parcerias entre laboratórios públicos e privados.

Há uma proposta ousada do governo, anunciada pela ministra Nísia, de que em 10 anos o Brasil passaria a produzir 70% das tecnologias estratégicas para o SUS. É uma proposta ousada, mas acima de tudo me parece um norte, um objetivo. Essa, a meu ver, é a grande novidade, a grande boa notícia, entre algumas outras, da nova política para o nosso país no campo da saúde, do desenvolvimento, da inovação e da ciência.

Como observa a questão do orçamento, que divide membros do próprio núcleo duro de apoio ao governo?

A questão da sustentabilidade financeira do Sistema Único de Saúde talvez seja o tema mais importante, delicado e complexo. Se analisarmos uma série de iniciativas das últimas décadas, é uma luta que vem desde a criação da CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira], passa pela emenda dos pisos para o governo federal, estados e municípios, e chega à emenda 95, do “teto de gastos”, que retirou dezenas de bilhões de reais do orçamento da saúde…

Eu destacaria a recomposição orçamentária do Ministério, de cerca de 21 bilhões de reais, que viabilizou seu funcionamento e os avanços na saúde neste ano. Mas por outro lado, um objetivo importante seria reverter a participação do gasto público no conjunto do gasto total. Hoje, o Estado entra com cerca de 44% dos gastos totais em saúde, os outros 56% são gastos das empresas e das famílias, através de desembolso direto, inclusive compra com medicamentos, procedimentos e outras despesas. Há um movimento político na área de saúde em defesa de uma grande reversão do gasto público, para que ele possa atingir no mínimo 60% do gasto total até 2030, mas para isso é fundamental que se estabeleçam uma estratégia e um cronograma que envolvam o Legislativo e o Executivo, introduzindo um vetor de crescimento anual, crescente, que permita fazer tal reversão.

Outro ponto que eu destacaria e não está na agenda, sumiu, diz respeito aos chamados gastos tributários, ou seja, de renúncia fiscal e subsídios ao mercado privado, onde as empresas e as famílias abatem do Imposto de Renda gastos com planos, seguros, despesas com seus funcionários, e esse tipo de subsídio é altamente regressivo, ou seja, favorece proporcionalmente as famílias de maior renda em detrimento do restante da população.

Por fim, há uma visão muito clara de que esse tipo de medida deveria ser urgentemente revisto, ou pela sua pura e simples eliminação ou pelo estabelecimento de teto como nós temos com as despesas, com educação, por exemplo. Estima-se que alguma coisa, algo em torno de 30, 40 bilhões de reais por ano, deixa de entrar no orçamento do SUS por conta desse tipo de subsídio e renúncia.

Quais devem ser, em sua visão, as prioridades ou políticas com maiores potenciais de avanço em 2024?

É claro que há a expectativa de que todo o processo aqui descrito, como a questão do financiamento, avance, de que toda a política sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde avance, que as políticas sejam aperfeiçoadas, mas minha grande expectativa é que para 2024 nós possamos ter uma nova política nacional de saúde, que mostre à sociedade o que a saúde brasileira pretende nas próximas décadas, do ponto de vista de resultados, de metas, de conquistas, e isso não é possível sem colocar a questão do setor privado.

Existem vários temas complexos e delicados, como modelos de gestão, relação público-privada, financiamento, comunicação, educação, informação de saúde, regulação das redes sociais, luta permanente contra a disseminação de notícias falsas, e evidentemente também o fortalecimento, isso é muito importante, de toda a transversalidade e intersetorialidade, que é o diálogo da saúde com as outras dimensões, como a ambiental, que já tem e terá um impacto muito forte sobre a saúde pública. Espero ver o país se preparar para futuras pandemias, fortalecer a vigilância e a inteligência epidemiológica, os laboratórios de saúde pública... São todas questões extremamente importantes, entre outras dimensões e desafios.

Para concluir, há a questão da transparência, da participação social, da participação da população, do fortalecimento das Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde como espaços importantes. Também devemos abordar a reconstrução do federalismo, a importância do fortalecimento das esferas tripartites, a rediscussão de um novo modelo de organização da saúde brasileira baseado não mais num municipalismo fragmentado, mas sim em regiões de saúde integradas, articuladas, com capacidade de gestão e de organização.

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do site Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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