PL do Veneno: projeto aprovado no Senado virou moeda de troca entre governo e ruralistas
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- André Borges, Repórter Brasil
- 06/12/2023
A aprovação pelo Senado do projeto de lei que afrouxa o controle dos agrotóxicos no país, na última terça-feira (28), está longe de ser uma vitória da bancada ruralista sobre o governo federal. O chamado “PL do Veneno” é, antes de qualquer enfrentamento, resultado de uma costura política alinhavada por membros do próprio governo Lula, em um acerto de contas que tinha prazo para vencer.
A “votação simbólica” do Projeto de Lei 1.459/22 realizada pelo plenário do Senado – o que só acontece quando há consenso sobre a pauta em votação – ilustra a tranquilidade com que foi decidido um tema que há cinco anos é alvo de pesadas críticas de médicos, ambientalistas e órgãos de controle do país.
O projeto original recebeu mais de 20 manifestações contrárias da comunidade científica, entre elas o Instituto Nacional do Câncer, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
O texto, que agora segue para sanção presidencial, sofreu alterações enquanto passava em diversas mãos da oposição e do governo nos últimos meses. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), desempenhou papel central nessas negociações, nas quais o PL do Veneno acabou se convertendo, na prática, em uma “moeda de troca”.
A negociação teve início no começo deste ano, quando o governo eleito suava para conseguir aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do arcabouço fiscal. Segundo apurou a Repórter Brasil, para obter os votos dos ruralistas, que têm a maior bancada do Congresso, o governo se comprometeu, dentre outras coisas, em não obstruir o avanço do projeto dos agrotóxicos em 2023.
Sem espaço para negociar
O senador Fabiano Contarato (PT-ES), relator do projeto, ficou com a tarefa de negociar alternativas para amenizar os pontos mais críticos. A realidade, porém, é que não havia muito espaço para isso.
À Repórter Brasil, Contarato jogou a conta nas restrições regimentais. “Tivemos uma limitação que impossibilitou acréscimos no texto depois da aprovação na Câmara dos Deputados. Só pudemos aprovar ou rejeitar os artigos”, justificou o senador. Como o projeto original nasceu e foi aprovado pelo Senado – o texto foi apresentado em 1999 pelo então senador Blairo Maggi –, e foi enviado à Câmara em seguida, de fato só era possível suprimir trechos integralmente.
Um dos pontos mais problemáticos apontados pela comunidade científica já havia sido cravado pelos deputados da bancada ruralista: a queda do artigo da atual legislação que proíbe o registro de produtos “que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas”.
Ou seja, a nova lei não veda produtos com comprovado potencial para causar câncer. Ela fixa um novo padrão de “risco aceitável” ou “inaceitável” à saúde humana. “Pela lei de 1989, agrotóxicos que revelem possuir características carcinogênicas não podem ser registrados no Brasil”, explicou Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama. “Em narrativa de suposta modernização, substituíram-se essa e outras vedações explícitas por uma mal explicada análise dos riscos”, complementa.
Araújo critica, ainda, o fato de que a nova lei, se for sancionada como está, permite a produção, no Brasil, de produtos que não tenham registro em território nacional, mas que sejam destinados à exportação. “Permanecem disposições bizarras, como a flexibilização de exigências para os agrotóxicos fabricados para exportação. Ao que parece, queremos nos especializar em envenenar o mundo”, comentou.
A nova lei pode ainda ampliar a liberação recorde de agrotóxicos na gestão Bolsonaro, quando 2.182 produtos foram aprovados. Isso porque a nova legislação concentra poderes nas mãos do Ministério da Agricultura e enfraquece o papel do Ibama e da Anvisa no processo de registro e autorização de novos produtos.
É essa a principal questão criticada pelo atual presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. “A Anvisa e o Ibama perderam o poder de veto de substâncias que podem ser danosas ao meio ambiente ou à saúde humana”, comentou. Agostinho, que quando deputado já defendeu a ideia de que era preciso modernizar a legislação sobre agrotóxicos, votou contra o texto aprovado na Câmara. Hoje, ao analisar o resultado da proposta que passou pelo Senado, Agostinho diz que houve avanços no projeto, mas que ainda há fragilidades.
Por trás da aprovação do PL do Veneno estão as grandes fabricantes de agrotóxicos mundiais, empresas que apoiam organizações como o Instituto Pensar Agropecuária (IPA), criado pela Frente Parlamentar da Agropecuária para “defender os interesses da agricultura e prestar assessoria, por meio do acordo de cooperação técnica”.
Entre as dezenas de associados do Instituto Pensar Agropecuária está, por exemplo, a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), que traz entre seus mantenedores nomes como Basf, Bayer, Cargill e Syngenta — algumas das maiores fabricantes de agrotóxicos no mundo.
A reportagem tentou falar sobre o tema com o presidente da FPA, mas não obteve retorno até a publicação deste texto. O senador Jaques Wagner também não respondeu ao pedido de entrevista. A Casa Civil da Presidência também foi procurada, mas não se manifestou.
Pressão pelo veto
A campanha para que Lula vete a nova lei já começou e deve mobilizar organizações da sociedade civil em torno de um tema que costuma gerar polêmica. A primeira manifestação foi da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), que soltou nota técnica endereçada ao presidente e principais ministérios envolvidos com o tema, fazendo um alerta sobre o “agravamento que advirá às inúmeras ameaças à saúde, ao ambiente e aos direitos humanos” caso a nova lei seja sancionada.
Apesar de o texto final ter sido negociado e aprovado com a atuação da base do governo, há parlamentares que ainda acreditam na possibilidade do veto presidencial.
Resta saber, agora, qual será o peso do tema dos agrotóxicos na disputada negociação por espaço na agenda ambiental de Lula. Se nos últimos dias o presidente esteve na Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas, a COP28, discursando ao lado da ministra Marina Silva, na semana anterior ele se reuniu com alguns dos nomes mais poderosos do agronegócio mundial.
No Palácio do Planalto, ao lado do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, Lula conversou sobre as demandas de associações de pecuaristas, acompanhado por diversos fazendeiros, donos de conglomerados de commodities agrícolas. Lá estavam nomes como Fernando Maggi Sheffer e Samuel Maggi Locks, membros da família Maggi, parentes de Blairo Maggi, o senador que, há 24 anos, apresentou o projeto para flexibilizar a legislação sobre agrotóxicos no país.
André Borges é jornalista do site Repórter Brasil, onde esta matéria foi originalmente publicada.
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