Correio da Cidadania

Viagem à China

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Apresentação

Durante esse período foram realizadas muitas reuniões, com diversos setores do Partido Comunista, federação dos sindicatos, universidades e conversas com pesquisadores e intelectuais da esquerda chinesa. Também realizamos visitas a fábricas e comunas rurais.
As anotações não têm ordem, nem prioridade, foram feitas a partir das reuniões e conversas, apenas procurei sistematizar por grandes temas e agora compartilhadas para que nossa militância popular do Brasil tenha alguns elementos sobre a realidade chinesa, ainda pouco conhecida no Brasil.

Economia

A economia chinesa foi marcada por diversos períodos na sua história. Com uma economia baseada na agricultura e no mercado local. O primeiro período de 1949-57 foi marcado pela implantação de uma indústria de base (energia, siderúrgica, indústrias de base) com a transferência de tecnologia da URSS, que transpôs fabricas inteiras. O primeiro trator chinês foi fabricado em 1956, copiando um modelo soviético. O segundo período, de 1957-76, representou uma etapa de economia fechada voltada apenas para o mercado interno, atendimento as necessidades da população e início das indústrias de consumo.

No período de pré-reforma e abertura econômica de 29 anos (1949-1978), sob a liderança do Mao Zedong até 1976, a expectativa de vida da China aumentou 32 anos. Em outras palavras, para cada ano após a Revolução, mais de um ano foi adicionado à vida de um chinês médio. Em 1949, a população do país era 80% analfabeta, e em menos de três décadas o analfabetismo foi reduzido para 16,4% nas áreas urbanas e 34,7% nas áreas rurais; a matrícula de crianças em idade escolar aumentou de 20% para 90%; e o número de hospitais triplicou.

Esse processo incluiu o estabelecimento de escolas de ensino médio para trabalhadores e camponeses e o envio de milhões de agentes de saúde para o campo. Avanços significativos foram feitos na participação das mulheres na sociedade, desde a abolição dos costumes do casamento patriarcal até o aumento do acesso à educação, cuidados de saúde e creches. De 1952 a 1977, a taxa média de crescimento anual da produção industrial foi de 11,3%.

O terceiro período, de 1976-2013, foi marcado pela aliança com EUA, depois adoção de políticas neoliberais e busca de mercado externo. Foi o período em que a China se transformou a fábrica do mundo, com implantação de alianças com empresas estrangeiras, que traziam suas máquinas e tecnologia industrial para aproveitar a mão-de-obra barata chinesa, que transferiu para as cidades mais de 100 milhões de trabalhadores.

Uma das bases da industrialização foi o setor automobilístico, em que fizeram parceria com os grandes grupos transnacionais para levar tecnologia. Depois a China ampliou a tecnologia, como a adoção para os carros e ônibus elétricos. No ano 2000, produziam 1,3 milhão de carros por ano. No ano passado produziram-se 20 milhões de carros. A outra base do crescimento prolongado da economia foi o investimento em construção civil, milhões de novas moradias e infraestrutura urbana. Metrôs, estradas e trens de alta velocidade. A China gastou, em menos de dez anos, mais cimento e ferro do que os EUA durante todo século 20!

De 2000 para cá, estão em curso novas mudanças, em que a China está industrializada, tem 40% de sua economia voltada ao mercado externo, agora controla as políticas neoliberais e prioriza os investimentos em tecnologia, buscando alta produtividade. Neste último período houve a reativação e fortalecimento de empresas estatais, o aumento da renda dos trabalhadores (o salário médio na indústria é hoje superior ao do Brasil e México), e o controle absoluto do capital financeiro. Todo sistema financeiro que controla as finanças é formado por grandes bancos estatais, ainda que existam bancos privados.

Hoje a economia é formada por cinco setores de capital: estatal, empresas privadas (em especial na construção civil e comércio) empresas coletivas de trabalhadores, empresas mistas, entre públicas e privadas e empresas estrangeiras.

O setor privado representa: 60% do PIB da China, 70% da inovação, 80% dos empregos urbanos e 90% dos novos empregos. Na década de 1990, diante do declínio dos lucros e da competitividade, o governo central adotou uma política de deixar o capital privado entrar em muitos setores, mais deixando os setores mais importantes nas mãos do Estado (como energia, bancos, mineração, transporte aéreo e ferroviário, telecomunicações e outros setores estratégicos). Por exemplo, das 109 corporações chinesas na Fortune Global 500, 85% são de propriedade pública. Os quatro maiores bancos do mundo são chineses – e cinco dos 10 maiores bancos do mundo são chineses (ativos de US$ 5 trilhões), todos estatais (ICBC, CCB, ABC, BoC, CMB).

Em cada grande cidade há 20 a 30 empresas estatais que controlam a produção e a economia. Já o setor privado fica com distribuição, comércio, serviços e a construção civil.

Em 1991, não havia nenhuma empresa privada na construção civil (estradas, moradias etc.). Em 1993, com a reforma neoliberal surgiram 553 empresas privadas. E ao longo do processo hoje são 122.706 empresas privadas, 189 empresas de capital estrangeiro, 3.920 empresas estatais, e 1928 empresas cooperativas os trabalhadores.

O PIB chinês cresceu 8,4% em 2021 e 3% em 2022, em consequência das restrições do COVID. Nos próximos anos a previsão é de crescimento anual de 5%. A China precisa crescer no mínimo 5% ao ano, segundo o governo, para poder gerar os empregos necessários para a população. Cada 1% de crescimento do PIB gera 2,2 milhões de empregos. E precisam criar 11 milhões de empregos por ano.

A taxa de inflação atual é de 2% ao ano e a taxa de juros de 4% para qualquer empréstimo, ou seja, uma taxa de 2% ao ano de juros reais. A jornada de trabalho média é de cerca de 48 horas por semana! Mas há ainda muitos trabalhadores que trabalham 60 horas por semana. A renda das famílias se divide em 40% de consumo básico e 60% que se transformam em poupança.

Em geral as famílias investiram em moradia (cerca de 65% dos ativos das famílias estão em imóveis), e agora guardam recursos para garantir educação de qualidade para os filhos. Mas também estão começando a investir em ações de empresas estatais, mistas e em ouro.

O maior problema da economia chinesa atualmente é a taxa de desemprego de 5%, e de 19% entre os jovens de 18 a 24 anos (março de 2023). Outro desafio da economia chinesa é como absorver o trabalho qualificado, ante o trabalho manual. Há 9 milhões de jovens que se graduam todos os anos nas universidades e não estão sendo absorvidos pelo mercado de trabalho.

Há falta de mão-de-obra na indústria. Parou a migração do campo e os jovens formados nas universidades não querem ir para a fábrica. Mas também não querem mais ir para o Ocidente, nem estudar. Há muita expectativa para trabalhar nas grandes empresas estatais. As vagas são disputadas como verdadeiros concursos (houve uma empresa que ofereceu 20 vagas e apareceram 20 mil jovens se candidatando).

Os planos do governo são de aumentar os investimentos na indústria (diminuir os investimentos em construção civil e infraestrutura que foi a marca do crescimento no período anterior. E ao mesmo tempo aumentar o mercado local, em detrimento da dependência do mercado externo. A maior parte dos investimentos é de empresas estatais. E o governo está buscando formas de canalizar a poupança das famílias para investimento em indústrias (no período anterior as famílias compravam casas...).

A estratégia no plano externo, que une economia a estratégias de geopolítica, é a construção da Nova Rota da Seda (ou Iniciativa Cinturão e Rota) que implica em muitos investimentos em infraestrutura e transporte pelos países, a percorrer Ásia, África, América Latina e até a Europa. E esses investimentos externos são feitos na moeda local dos países, o que ajuda as economias locais.

As conquistas econômicas da China e seus resultados se devem fundamentalmente ao componente de economia socialista, isto é, repartir a riqueza produzida com os trabalhadores. Se ela abandonasse essa política de priorizar o bem-estar da população, como querem setores neoliberais e as empresas privadas chinesas, certamente iria colapsar econômica e politicamente.

A China vem estimulando inúmeras iniciativas para combater a hegemonia do dólar. Já fez acordo para comércio e investimento sem uso do dólar com 25 países e regiões (como recentemente com o Brasil). Ela também lidera iniciativas importantes de criação de fundos alternativos ao FMI – como a Iniciativa Chiang Mai, com os países da ASEAN + Japão e Coréia do Sul – e o Acordo de Reserva Contingente (BRICS). O yuan vem sendo cada vez mais utilizado como moeda de referência entre diversos países.

O atual governo do Presidente Xi Jinping tem estimulado e fortalecido as empresas estatais, que atuam em áreas estratégicas, na pesquisa, na indústria etc., e são as mais poderosas. Procura combater a concentração da riqueza entre os bilionários, que se formaram no período anterior. Ainda que no país os ricos paguem relativamente pouco imposto de renda e não haja imposto sobre propriedade imobiliária. Mas o controle é político, para impedir – ou minimizar – o oligopólio de setores e preços. Essa é a política clara para combater o fortalecimento da nova burguesia e do surgimento de desigualdades sociais.

A atual situação da luta pela geopolítica mundial trouxe como contradição que os empresários chineses perderam a confiança nos EUA e apenas procuram ampliar o comércio.

A sociedade chinesa vive agora a experiência de ter a primeira geração de capitalistas chineses e, portanto, vê o ressurgimento de uma burguesia industrial, de comércio e de serviços.

A China foi sempre historicamente “exportadora” de mão-de-obra, com muitos chineses que migravam todo ano. Agora sua economia está atraindo migrantes: são 1,5 milhão por ano, vindos das Filipinas e Sudeste Asiático, para trabalhar em Hong Kong e Xangai, sobretudo, nas indústrias e serviços.

As perspectivas da política de investimentos para o futuro vão na direção de substituir a atual matriz energética, baseada em 60% no carvão, e nos próximos 20 anos baixar para 30% e investir em energias renováveis, como eólica, solar, hidrogênio, e também investirem em novos formatos de energia nuclear (cuja tecnologia a China dominou em 2021).

Há também muitos investimentos e novas tecnologias, a empresa Huawei vai apresentar o 6G daqui a alguns anos, por exemplo. Também começa a ter preocupação com biotecnologias e agroecologia.

Economia agrária e meio rural

A base da sociedade chinesa no meio rural foi constituída pela reforma agrária de 1949-1950 que destruiu o latifúndio, os senhores feudais e distribuiu todas as terras para os camponeses. Havia no campo 555 milhões de pessoas, que representavam 88% da sociedade. Cada família recebeu em média menos de um hectare. E o resultado principal é que pararam de trabalhar para os fazendeiros locais e resolveram o problema da fome (a medida popular utilizada no país é o MU, igual a 0,15 hectares; na literatura agrária chinesa só aparece o MU).

A primeira reforma agrária destruiu a burguesia agrária e garantia terras a todas as famílias. Porém, nos anos 1960, se forçou a coletivização do trabalho agrícola. Isso desorganizou a produção e trouxe um período inclusive da volta da fome. Na década de 1990 houve uma nova reforma agrária, em que foi permitido às comunidades rurais que tinham a concessão de uso das terras “vender” a concessão para as empresas colocarem indústrias. E ao mesmo tempo o plano de industrialização do país levou a migração de mais de cem milhões de jovens do campo para as cidades, atraídos pelos empregos e salários.

Mas o plano de industrialização trouxe também a mecanização do campo, baseada em pequenas máquinas que os camponeses e suas associações puderam comprar e utilizar. Há no país mais de 8 mil fábricas de máquinas agrícolas, distribuídas por todo país, e praticamente por todos municípios ou distritos.

Esse processo de mecanização do campo, dos últimos 30 anos, levou a que hoje se tenham 21.730.000 tratores utilizados na agricultura, em seus 120 milhões de hectares. (No Brasil temos quase a mesma quantidade de terras utilizadas na agricultura, e apenas 1,3 milhão de tratores!). Do parque de máquinas existentes na agricultura, 16 milhões são de pequenos tratores, 4 milhões de máquinas médias, em geral utilizadas por cooperativas, e apenas 700 mil máquinas utilizadas em grandes unidades de produção.

Nos últimos 20 anos, e basicamente no governo de Xi Jinping, houve uma prioridade de eliminar a pobreza, que aparecia basicamente no campo. E neste período aplicaram políticas que tiraram da pobreza mais de 100 milhões de pessoas. Foi o maior programa de erradicação da pobreza do mundo.

Para desenhar o plano, o governo deslocou para o campo mais de 3 milhões de militantes do Partido, que foram morar nas comunidades pobres, pagos pelo governo. Nestas comunidades eles tinham treinamento para fazer um diagnóstico da situação de pobreza, das principais necessidades familiares e coletivas. E a partir desse levantamento, na sequência, realizavam debates no nível de partido local, com suas lideranças, para desenhar que políticas o governo deveria aplicar para erradicar a pobreza (entre os militantes enviados, 1.800 morreram durante a missão, em consequência de acidentes ou enfermidades graves!).

Esse foi o trabalho de dois a quatro anos, e em seguida o governo começou a aplicar as medidas necessárias, que se adequavam a cada região. Em 25 de fevereiro de 2021, o governo anunciou que a pobreza extrema havia sido superada na China. Desde a reforma econômica, 850 milhões de chineses foram retirados e se retiraram da pobreza; ou seja, 70% da redução total da pobreza no mundo ocorreu na China.

Na fase “direcionada” mais recente, que começou em 2013, o governo gastou 1,6 trilhão de yuans (246 bilhões de dólares) para construir e asfaltar 1,1 milhão de quilômetros de estradas rurais, levar acesso à internet a 98% dos vilarejos pobres do país, reformar casas para 25,68 milhões de pessoas e construir novas moradias para outras 9,6 milhões. Desde 2013, milhões de pessoas, empresas estatais e privadas e amplos setores da sociedade foram mobilizados para garantir que – apesar da pandemia – os 98,99 milhões de pessoas restantes da China em 832 condados e 128 mil vilarejos saíssem da pobreza absoluta.

O plano de erradicação da pobreza desde a presidência do Xi Jinping combinou várias iniciativas, como: a) financiamento especial para as cooperativas e associações locais aumentarem a produção de alimentos e de bens (em média aplicavam 2 milhões de reais por cooperativas a juros subsidiados); b) empresas estatais de outras regiões foram induzidas a colocarem fabricas nessas regiões, e ou comprarem seus produtos; c) construção e ou melhoria das casas; d) construção de banheiros coletivos nas comunidades; e) garantia de energia elétrica e internet; f) organização de aplicativos gratuitos para que as famílias e comunidades oferecessem seus produtos na sociedade e nas cidades próximas; g) estímulo para colocarem indústrias de frutas, verduras e moinhos de farinhas; h) infraestrutura de estradas asfaltadas para chegar até as comunidades; i) melhoria no acesso à água potável; j) apoio na construção de escolas secundarias mais próximas dos povoados; l) algumas comunidades as famílias foram induzidas a se mudarem para distritos e cidades próximas, onde receberam moradias, capacitação para trabalho urbano e industrial; k) trabalho de base.

Em 2014, cerca de 3 milhões militantes do Partido foram organizados para visitar e pesquisar todas as famílias em todo o país, identificando 89,62 milhões de pessoas pobres em 29,48 milhões de famílias e 128 mil vilarejos. Mais de dois milhões de pessoas receberam a tarefa de verificar os dados, removendo posteriormente os casos identificados incorretamente e adicionando novos. Mais notavelmente, três milhões de quadros cuidadosamente selecionados foram enviados para os vilarejos pobres, formando 255 mil equipes que lá residiram. Vivendo em condições humildes por um a três anos de cada vez, as equipes trabalharam ao lado de camponeses pobres, autoridades locais e voluntários até que cada família fosse retirada da pobreza.

Passado esse período de eliminação da pobreza, agora o plano do governo é garantir que as 550 milhões que vivem em comunidades rurais permaneçam no campo e tenham as mesmas condições de vida da cidade. Para isso estão organizando um plano que chamaram de revitalização rural. A taxa de urbanização da China era de 64% em 2020, e espera-se que chegue a 70% até 2030.

As principais linhas do plano governamental de revitalização rural são: dar mais incentivos para novas agroindústrias e aplicar um plano de reflorestamento. Estão plantando arvores em toda parte. A China foi líder global em reflorestamento e foi responsável por 25% do crescimento total da área foliar do mundo entre 1990 e 2020, impulsionada por 15 anos de política de “águas claras, montanhas verdes”; garantir o fomento de novas tecnologias para agricultura, que aumentem a produtividade do trabalho e das áreas; redução de impostos e mais incentivos do governo em investimentos necessários.

Há ainda maior treinamento para adoção de mais mecanização agrícola e uso de tecnologias para controle de desempenho dos tratores, consumo etc.; 1,5 milhão de tratores já são monitorados em tempo real por satélite, sobre como estão trabalhando, desempenho, consumo etc.; estímulo ao potencial do trabalho das mulheres, em diversas atividades produtivas; estímulo a atividades de turismo rural interno (com melhoria de instalações para receber visitantes); um plano por aplicativo de que os operários migrantes possam investir sua poupança em investimentos produtivos das cooperativas do campo; reforma das casas vazias no campo, para alugá-las a visitantes; programa de proteção de rios e lagos para melhorias do meio ambiente, financiando essas atividades para as comunidades.

Há ainda estímulo à produção de ervas medicinais; houve um crescimento vertiginoso, nos últimos anos, da prática de venda de produtos agrícolas (muitas vezes, orgânicos) para os habitantes das cidades mais próximas, através de lives (simular ao Tik Tok, a rede social Douyin tem a maior parte do seu faturamento aí); estímulo à produção de bens que podem ser vendidos na Rota da Seda. Estão treinando todos os líderes locais do partido, para que se preparem melhor para aplicar essas políticas.

Para implementar esse plano, mudaram o método. Antes todas as políticas eram coordenadas e repassadas para os presidentes das cooperativas e associações das comunas. Eles centralizavam e muitas vezes tinha corrupção. Agora, é o coletivo do partido na comuna que é o responsável pela aplicação da política de revitalização rural. Ou seja, a política agrária saiu do Ministério da Agricultura e agora é coordenada pelo partido, a nível nacional e geral.

Eles têm apelidado essa política no campo de “como dançar com o lobo!” Ou seja, como estimular maior investimento em capital, maior capital orgânico, sem, no entanto, desempregar as pessoas, para que permaneçam no campo.

Já na política de reflorestamento e defesa do meio ambiente, eles têm adotado o lema “Montanha verde e águas claras” que parece utilizar a cultura chinesa, das frases e poesias, que refletem o espírito dos objetivos políticos.

Sociedade e política

A sociedade chinesa está formada por classes e frações de classe que levam a ter ainda uma luta de classes permanente. Hoje, a maioria da população pertence à classe trabalhadora urbana, que atua nas fábricas, comércio, serviços, inclusive públicos. E se mantêm no campo 500 milhões de pessoas que vivem como camponeses, organizados em comunas, associações e cooperativas. Mas há uma nova burguesia industrial e comercial, ainda que muito concentrada em bilionários (o que seria fácil controlar), e há uma pequena burguesia nas cidades formadas por pequenos comerciantes e a juventude egressa das Universidades, que no passado recebeu muita influência do neoliberalismo americano e foi levada a um individualismo exacerbado. E há nove milhões de funcionários públicos, que embora filiados ao partido muitos se comportam como pequena burguesia.

Em 2022, a China tem 65% da população morando nas cidades e 35% no campo, onde vivem ainda 550 milhões de pessoas. Tem 167 cidades com mais de um milhão de habitantes cada uma, e mais de 30 cidades com mais de 10 milhões de habitantes. Xangai é a sua maior cidade com 28 milhões de habitantes e Pequim tem mais de 20 milhões de moradores.

No campo todos são proprietários de suas casas. Em geral as pessoas trabalham em empresas da cidade com aproximadamente 100 trabalhadores e são raras as empresas que têm mais de mil operários.

Nos tempos da revolução e de Mao, havia 40 milhões de pessoas organizadas no partido, sendo que quatro milhões eram soldados e atuavam no exército. De uma população total de 500 milhões de pessoas. Hoje a sociedade chinesa tem 1,4 bilhão de pessoas e o partido organiza e tem como filiados 97 milhões de membros. Destes apenas 10 milhões seriam militantes e com formação marxista. Nos últimos anos foram expurgados quatro milhões de filiados por desvios e corrupção, muitos deles foram presos.

Há 40 mil quadros do partido que dirigem os cargos chaves nas empresas estatais e no controle das instâncias governamentais, das províncias. A sociedade chinesa é hegemonizada pelas ideias de Confúcio (551- 479 a.C.) que como filósofo ordenou uma série de valores que são adotados pela sociedade e até hoje orientam comportamento das pessoas e do coletivo. Não é uma religião, são normas e valores de comportamento.

As ideias do socialismo foram muito atacadas desde trinta anos atrás quando as ideias ocidentais e do neoliberalismo influenciaram amplos setores da sociedade, em especial as universidades, a mídia e a juventude. Hoje, o presidente Xi Jinping diz claramente que se deve fazer um esforço para recuperar o espírito socialista na sociedade chinesa, e que o partido deve ser o exemplo e zelador desta política.

A direção política do partido pelo Presidente Xi Jinping representa uma retomada dos ideais socialistas e do papel do partido. Frente à degeneração do partido, da corrupção e da influência dos norte-americanos, foram as bases sociais do campo que recuperaram o partido.

Na China quem controla as forças armadas é o partido. E a linha política do presidente Xi Jinping tem total hegemonia nos quadros que atuam nas forças armadas, que são milhões de oficiais e soldados nas três armas e na pesquisa tecnológica militar.

No congresso do partido de 1990 cerca de 50% dos delegados se consideravam capitalistas. A partir da eleição do presidente Xi Jinping e das mudanças e expurgos do partido, no último congresso estima-se que apenas 15% se consideravam capitalistas. Antigamente havia a presença de empresários capitalistas inclusive no comitê central.

O presidente Xi Jinping tem defendido que o partido precisa melhorar muito seu funcionamento e apreender com o povo, e voltar a ser humilde para se fortalecer seguir dirigindo o Estado e o governo na direção do bem-estar de todo povo.

Recuperou-se o método de direção coletiva das instâncias do partido. E o fortalecimento das quatro grandes escolas de formação de quadros do partido. O processo de promoções é feito a cada quatro anos, e segue critérios rigorosos, de avaliação de cada militante. E há uma política de aposentadoria compulsória dos cargos aos 65 anos.

A classe trabalhadora está satisfeita com a melhoria das suas condições de vida que melhorou muito nos últimos dez anos. Ainda que a saúde não seja ainda totalmente socializada, a educação é mais de 90% pública, inclusive as universidades.

O governo e o partido tiveram ótimo desempenho no combate à poluição nas cidades, que já era insuportável há dez anos, e ao tratamento e proteção na COVID. Com isso, a população em 90% apoia ao partido e ao governo.

Há ainda muitos casos de desvios e corrupção sobretudo nas instâncias de governos das províncias, que, no entanto, são denunciados pela própria população. Há alguns anos, as redes sociais difundiam e combatiam o partido, o que gerava divisionismo dentro do governo. Mas isso fracassou. Hoje com a política do partido sob comando do presidente Xi Jinping, de eliminação da pobreza, aumento dos salários e melhoria das condições de vida nas cidades, classe trabalhadora e amplos setores da juventude passaram a defender essa política e o partido.

No período do neoliberalismo e das reformas pró-ocidentais, cerca de 90%da mídia chinesa, incluindo a oficial, eram de ideias de direita. Os quadros do partido ainda estão aquém das necessidades de realizar de forma eficiente os programas de agitação e propaganda dos resultados da China, tanto para o povo chinês quanto e mais ainda para a classe trabalhadora em nível internacional, que poderia ser aliada de tais políticas.

Há ainda uma luta de classes no campo ideológico. Uma elite minoritária formada por grandes empresários, parte de professores universitários e parte da juventude, critica a linha atual e sonha com o modelo americano. Mas são amplamente minoritários.

Há também um conflito geracional entre a militância do partido. Os que têm entre 40 e 55 anos são frutos da reforma e continuam neoliberais e burocratas, em sua maioria. A atual geração que conduz o processo para revitalização do socialismo está entre quadros com mais de 60 anos e os quadros mais jovens. E a esperança dos socialistas é que a gestão do Presidente Xi Jinping vá até ser substituído na presidência e no comitê central por essa geração mais jovem. Para muitos, o ideal seria Presidente Xi Jinping permanecer por mais um mandato além do atual, até 2032.

O papel dos sindicatos na China é diferente do mundo ocidental, onde sempre tiveram papel atuante na luta de classes. Na China seu papel está relacionado com a organização no local de trabalho, sobretudo organizando atividades culturais, de lazer e cultura, e espaços de atuação coletiva, social.

Desde a revolução de 1949 se adotou um método de trabalho político que persiste até hoje, em todas as unidades de trabalho. No primeiro horário antes de começar o turno, todos os trabalhadores da sessão, se reúnem, de pé, e em reuniões que vão até 30 minutos, diariamente, analisam o que há de errado e o que devemos melhorar. É um método de crítica e autocrítica muito interessante, e esse processo é seguido de forma disciplinar e coordenado pelo dirigente no partido na sessão laboral (vi algumas dessas reuniões e é impressionante!).

A atual direção do partido está recuperando a política da “linha de massas”. Ou seja, de fortalecer as organizações do povo e a luta das massas, e convocá-las sempre que necessário para as disputas da luta de classe. O Partido tem recuperado também um método histórico do trabalho, quando querem fazer uma mudança na política econômica, na organização da produção e na aplicação política; primeiro aplicam numa região ou distrito como projeto piloto. Analisam os prós e contras e aí passam a aplicar a nível nacional.

Geopolítica

A China está no centro da disputa da luta de classes mundial. Passou pelos cem anos de humilhação (1840-1949), dedicou-se a superar a pobreza de 1949-2020 e agora, sendo a maior potência econômica mundial, ascendeu na disputa pela nova ordem mundial. As bases da atual ordem mundial, hegemonizada pelos EUA e pela Europa, como resultado da segunda guerra mundial e da derrota da URSS, chegaram ao seu fim.

Os EUA tiveram uma vitória estratégica, histórica e fantástica ao derrotarem e destruírem a URSS. Primeiro a derrotaram economicamente ao induzir a corrida armamentista, que implicou em priorizar gastos militares em detrimento das melhorias das condições de vida da população soviética, e dos avanços na tecnologia industrial, que melhorariam a produtividade da produção em geral. Depois atacaram politicamente nas alianças e cooptação de Gorbachev, que apesar das boas intenções de combater os desvios do partido e da democratização da sociedade se rendeu à cantilena ocidental.

Agora os EUA estão usando as mesmas táticas para tentar derrotar a China. Segue atacando na economia, criando bloqueios e impondo condições no avanço da tecnologia, como tentaram com 5G e com o bloqueio do acesso de empresas chinesas aos chips de tecnologia mais avançada. Porém, hoje a economia norte-americana depende mais da China do que o contrário e esta contradição os impede de fazer uma verdadeira guerra econômica.

Na política tentaram criar adeptos entre os membros do Comitê Central do partido, mas não conseguiram sucesso. Assim como tentaram transformar a região dos Uigures (Xinjiang) e da dissidência de Hong Kong em problema político interno grave da China, que poderia construir um movimento de massas de oposição. Mas como não tinha base social real, não prosperaram.

Na geopolítica internacional os EUA provocaram a Rússia e utilizaram a OTAN e o governo títere da Ucrânia para levar à guerra. Mas seu objetivo era desgastar economicamente a Rússia e trazer a China para a guerra. No entanto, nenhuma das duas situações aconteceu. O povo da Ucrânia e a economia europeia estão pagando um alto preço pela política imperialista estadunidense, que certamente trará consequências, como já se viu nas visitas a Pequim do governo da Alemanha e da França. E na retaguarda que a China tem dado economicamente à Rússia, sem se envolver na guerra.

Agora tenta-se criar conflito militar ao redor de Taiwan. Mas a China demonstrou que não vai cair em provocações militares e correr o risco de entrar numa guerra. Os EUA provocaram uma contradição na política chinesa: quanto mais ele ataca a China em nível internacional, mais enfraquece seus aliados internos, as elites empresariais e os setores universitários que antes os apoiavam internamente. Assim, inviabilizou também uma possível contrarrevolução capitalista na China.

A China tem adotado uma série de iniciativas na política internacional, que a tem fortalecido, como: 1) fortalecimento dos BRICS como espaço de articulação econômica e política, formando um bloco econômico, mais poderoso do que os EUA; 2) construiu uma aliança entre Irã-Arábia Saudita, que derrotou politicamente os interesses dos EUA no Oriente Médio; 3) A China está organizando diversas cadeias produtivas, baseadas em alta tecnologia, em aliança com a Rússia; 4) A China ampliou seus laços políticos com os países da África.

A China precisa mudar sua política com o Sul global, para fazer parcerias de mútua ajuda e contribuir à reindustrialização da região. Abandonar a política de apenas comprar commodities agrícolas e minerais. E sobretudo precisa mudar sua política e construir alianças com a classe trabalhadora e os povos do sul. A verdadeira defesa da China virá do Sul global e não dos governos do Norte. Esse desafio é visto como um enigma a ser resolvido por setores intelectuais do partido de forma cada mais acentuada.

Nos próximos anos, ou décadas, assistiremos à construção de uma nova ordem mundial, agora fundada em outros princípios. Certamente será multipolar, com a participação de muitos países, do Norte e do Sul global.

Desafios do próximo período

A Economia chinesa tem uma base de economia mista entre o caminho chinês ao socialismo e a empresas privadas capitalistas. Esse processo leva ainda à concentração da riqueza e à desigualdade das classes. A médio prazo aumentarão as contradições e a luta de classes dentro da sociedade chinesa.

A “prosperidade comum” refere-se tanto a uma visão quanto a um ciclo de reformas iniciadas pelo governo, que visam conciliar a eficiência econômica com o fortalecimento dos mecanismos de bem-estar. Também faz parte do esforço para combater as “três montanhas” de altos custos de educação, moradia e saúde enfrentados pelos chineses atualmente. O objetivo é abordar a crescente desigualdade entre o campo e a cidade, as classes sociais e as regiões por meio do desenvolvimento e da distribuição de renda, das reformas tributárias e do bem-estar social e da filantropia.

Em 2022, a riqueza dos bilionários chineses caiu 18%, a maior queda em 24 anos, e houve uma redução de 11% no número de bilionários, em grande parte devido a medidas governamentais que limitaram os monopólios e o setor de tecnologia. Mas a China ainda tem mais de 800 bilionários, superando os Estados Unidos.

A China está se tornando uma sociedade envelhecida, com baixa taxa de crescimento populacional, e teve o primeiro declínio da população em números absolutos em 2022 (desde que o censo nacional começou, em 1961). Há 300 milhões de idosos com mais de 60 anos, o que traz problemas de diminuição da força de trabalho, menos impostos para aposentadorias, grande déficit previdenciário e pressão sobre a assistência médica.

A China tem se relacionado com o Sul-global em busca de commodities agrícolas e minerais que sustentam as necessidades de seu desenvolvimento. Porém, esse modelo representa no sul global uma aliança e o fortalecimento das burguesias locais, aumentando a exploração dos trabalhadores e os crimes ambientais. Por outro lado, na luta de classes internacional e na construção de uma nova ordem mundial a China vai precisar do apoio das populações do Sul global. Já as burguesias do sul global sempre foram aliadas dos EUA, e assim seguirão, apesar de venderem para a China.

Os EUA já estão em guerra fria contra a China, embora ela não queira. Nesta guerra vai adotar todos os métodos possíveis, econômicos, comerciais, midiáticos e ideológicos. Para derrotar os EUA, mesmo sem cair nas suas provocações, a China precisará necessariamente adotar uma linha política anti-imperialista e não poderá mais dormir com o inimigo que quer derrotá-la.

Os EUA sempre usaram o dólar como arma econômica de exploração de todos os povos e países. E agora em crise a moeda tem um papel ainda mais relevante. A China terá de acelerar sua política de mudança do uso do dólar, em nível internacional, e criar condições no plano dos BRICS ou outras alianças para ter outros parâmetros de moeda no comércio internacional.

O estágio atual da luta de classes local e internacional é fundamentalmente a luta ideológica, da batalha das ideias, sobre o futuro da humanidade. Os EUA têm usado os meios de comunicação, a cultura, as redes sociais nesta guerra ideológica. Porém, parece que a China não está priorizando esse campo de atuação, em especial na sua relação com os povos do Sul global.

O modo de produção capitalista em crise tem priorizado com suas empresas imperialistas uma verdadeira ofensiva contra os bens da natureza, se apropriando de forma privada e espoliando as reservas em todo mundo. Isso tem causado crimes ambientais, com graves consequência que aparecem nas mudanças climáticas e no desaparecimento de muitas, milhares de formas de vida vegetal e animal, que podem colocar em risco a vida humana no planeta.

A China deu passos internos para combater a poluição e buscar fontes de energia alternativa. Mas a China teria enormes possibilidades de usar seus avanços tecnológicos e ajudar os povos do Sul a buscar alternativas de energia, combater os crimes ambientais e reconstruir a defesa do meio ambiente em todo planeta. Isso traria resultados ideológicos fantásticos para um projeto global de socialismo.

*João Pedro Stédile é membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

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