Correio da Cidadania

Tenho sangrado demais

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Anielle e Sônia: Toma posse a Decolonização do Brasil xapuri.info\

"Tenho sangrado demais. Tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri. Mas esse ano eu não morro"
Sujeito de Sorte, Belchior (1976) / AmarElo, Emicida (2019)

Os últimos dias do mês de dezembro de 2022 foram vividos com a intensidade e expectativas merecidas. Em 2016, sofremos mais um golpe político na frágil república brasileira, que arquitetado e executado pelas traiçoeiras oligarquias nacionais, destituiu a presidenta Dilma Rousseff, vencedora das eleições de 2014. Sua reeleição, mesmo por escolha da maioria, era algo inconcebível para os donos do poder, defensores e beneficiários das políticas ultraliberais.

Seis anos se passaram e a eleição de Lula nos inspira a vislumbrar tempos de construção e consolidação dos direitos fundamentais para os que foram excluídos do direito à cidadania, apesar de gerarem todas as riquezas da minoria que concentra terras e capital. O chamado à reconstrução feito pelo governo Lula não pode ignorar as cicatrizes profundas deixadas em nossos corpos nos quase 400 anos de escravidão. Não bastasse a violência sistêmica, uma pandemia desassistida e um desgoverno generalizado, vivemos em nossa história ancestral um exemplo destas recorrentes distorções, geradas ao longo de séculos de opressão.

A notícia “Mulçumanos pedem crânio de volta a Harvard” é mais um exemplo desse descanso que nunca chega para a comunidade negra. Publicada pela Folha de S. Paulo, no dia 20 de novembro de 2022 (Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra – instituído pela Lei 12.519/2011), a matéria traz pedido da comunidade islâmica de Salvador reivindicado à Universidade Harvard pela devolução dos restos mortais, - duas cabeças, esquecidas nos depósitos da instituição e denunciadas por estudantes. Um destes restos mortais é provavelmente de um homem morto durante a repressão das forças imperiais aos rebeldes que organizaram e executaram a Revolta dos Malês.

Esta rebelião, que aconteceu em 1835 em Salvador, Bahia (BA), mesmo tendo sido duramente reprimida, abalou as estruturas do império escravista pelo nível de organização, coragem e determinação de seus combatentes. Foram cerca de 1500 africanos e africanas, maioria de origem muçulmana, que planejaram durante meses a revolta para conseguirem, enfim, voltarem ao status de pessoas livres.

A outra cabeça também é de um homem negro escravizado, cuja provável data da morte é o ano de 1865 na província do Rio de Janeiro. O objetivo é que estes restos mortais sejam repatriados e recebam, enfim, um funeral, sob os cuidados da comunidade negra, restituindo-lhes a humanidade.

Estes episódios, que à primeira vista parecem banais, estão carregados de indagações, pouco investigadas na Ciência. Além de representarem, de modo não menos importante, um acúmulo ao trauma coletivo que as/os descendentes da Diáspora Africana carregam. Mostra-nos algo pouco discutido sobretudo entre nós da comunidade negra. Vale registrar, a extensão do comércio escravagista negociava também os restos mortais que, tudo indica, eram adquiridos por instituições de ensino.

A exibição em museus de corpos de povos considerados exóticos fazia parte do fetiche supremacista no século 19 até início do século 20 nas Exposições pela Europa e Estados Unidos, referendadas pelas teorias eugenistas, que destruíram, mais uma vez, a humanidade dos povos não caucasianos. Esta pseudociência serviu de base teórica para o nazifascismo, que nos dias atuais têm suas ações realizadas pelos chamados cidadãos do bem, treinados em clubes de tiros e com seus arsenais adquiridos legalmente e sem controle do Estado.

A eugenia não conquistou as mentes de todos e já na primeira metade do século 20 vários estudos genéticos mostraram que Charles Darwin estava correto, todos os seres humanos descendem de um único ancestral comum e todas as evidências confirmam que o genoma humano tem origem em África.

Beleza! Mas o mal já estava consolidado com a disseminação das teorias eugenistas no tecido social de grande parte dos países do norte e do sul global.

A peça "Traga-me a cabeça de Lima Barreto ", monólogo interpretado pelo talentoso Hilton Cobra, o filme M8 - Quando a morte socorre a vida (BRA, 2019), do diretor Jeferson De e o Documentário: O Caso do Homem Errado (2017), direção de Camila de Moraes, discutem o poder de destruição das teorias eugenistas nas vidas dos cidadãos considerados socialmente como indesejados.

A tragédia do racismo está explícita nos dados sobre a brutalidade e letalidade policial, na alta mortalidade e morbidade por Covid-19, no feminicídio gritante de mulheres negras, cis e trans, na ausência de cobertura vacinal nos territórios onde vivem as crianças negras, na falta de empregabilidade e diferença salarial dos profissionais negros e negras, quando comparado com pessoas brancas, nos índices de pobreza extrema que dobrou nos últimos anos, no racismo religioso contra os adeptos das religiões afrobrasileiras e na ausência de pessoas negras nas estruturas de poder nas instituições públicas, privadas e nos Parlamentos.

Por tudo isso, restituir a humanidade dos restos mortais de dois homens negros que por mais de um século foram tratados literalmente como objetos faz parte deste momento de reconstrução do nosso tão acalantado projeto de democracia.

No horizonte temos a vontade de voltar a sonhar. Mas a luta segue, pois este ano eu não morro!

Maria José Menezes é bióloga e mestre em Patologia Humana pela FIOCRUZ/UFBA
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Hugo Leonardo Mansur é jornalista, mestre em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e doutorando em Mudança Social e Participação Política (EACH/USP).
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