Correio da Cidadania

Marielle: do corpo sem morte à morte sem corpo

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Foto: Reprodução

Marielle Franco virou um mito, não em sua forma positiva, o que deveria ser, como expressão das dimensões humanas mais nobres e dignas, a serem perpetuadas por nós. Pelo contrário, ela foi transformada, em decorrência de seu assassinato e não conclusão do processo sobre a autoria do crime, no mito moderno da dissociação entre o mundo da política e o mundo real, um corpo jurídico em disputa, em meio à arena político/eleitoral que incide diretamente nas investigações. A esquerda não quer a solução para não se comprometer e perder votos da direita, que busca conquistar em nome de uma grande frente ampla. A direita não quer a conclusão para não ser prejudicada, dados os vínculos concretos e de concepções políticas com a prática do extermínio. O centro se dissolveu e aceita qualquer versão, contanto que ganhe alguma coisa em algum lugar do espectro político.

Marielle foi transformada numa defunta renegada, incômoda e embaraçosa. Melhor não falar sobre ela. É preferível fazer um pedestal para a heroína ao mesmo tempo em que se constrói um mausoléu de silêncio sobre seu túmulo. O país não comporta a verdade. Seus grupos políticos vivem e se alimentam das perguntas jamais respondidas, que impulsionam lives e postagens em redes sociais. O desconhecido virou nosso melhor projeto de país.

Lula se esconde na indefinição que lhe garanta mais aliados e margens para barganhas eleitorais. Marcelo Freixo, paladino antimilícia, que afirmava ser o alvo por trás do assassinato, parece mais um dirigente sindical das corporações policiais em busca do voto dos que odeiam a esquerda e seus defensores de direitos humanos. Bolsonaro tem como Ministro da Defesa o General Walter Souza Braga Netto, interventor federal quando ocorreu o assassinato da vereadora, que jamais trouxe qualquer informação sobre o caso, tendo sido nomeado Ministro da Casa Civil dias após o assassinato, em uma operação policial incompreensível, de um dos principais suspeitos do crime, o miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, quando estava cercado no interior da Bahia. Enquanto isso, o governador Cláudio Castro opera o crescimento das milícias de forma sofisticada. Ou seja, no quadro político distorcido e confuso em que vivemos, tudo é desejado, menos a simples verdade contida na elucidação de um homicídio. Assim, o assassinato, em si mesmo, insolúvel, virou o futuro da nação. Essa afirmação conecta-se à atual evolução miliciana no Rio de Janeiro, que leva à conclusão mais trágica: o caso Marielle não será solucionado, ou, se o for, estará tão enredado em vários interesses políticos que isso nos impedirá de saber a verdade. Ou, mais grave ainda, o (des)caso Marielle transformou-se no grande exemplo dos assassinatos que ocorrem no país.

Há um desdobramento do assassinato de Marielle que chega aos nossos dias no assassinato de outras mulheres. Em trabalho de campo sobre desaparecimentos forçados, isto é, pessoas que são assassinadas e cujos cadáveres não são encontrados, tendo a participação direta ou indireta de agentes do Estado, tenho me deparado com uma onda crescente de violência contra mulheres inserida na guerra entre milícias. Tornou-se frequente o assassinato, o desaparecimento e o desmembramento dos corpos femininos, numa escalada de crueldade e terror ainda não presenciadas no universo das práticas criminais no Brasil. O que estaria impulsionando essa tática entre milicianos?

Para responder a essa questão, é preciso analisar a evolução dos acontecimentos no cenário da região metropolitana do Rio de Janeiro de forma associada à relação entre as políticas de segurança pública e as milícias. A morte de Wellington da Silva Braga, o Ecko, líder da maior milícia do estado do Rio de Janeiro, denominada no passado de Liga da Justiça, posteriormente de A Firma, e recentemente de Bonde do Ecko, que abrange muitos territórios da Zona Oeste da capital e de municípios da Baixada Fluminense como Itaguaí, Seropédica e Nova Iguaçu, estaria na origem do processo que desemboca na intensificação da violência contra mulheres. Após a morte de Ecko, em junho de 2021, em decorrência de uma operação da Polícia Civil, em circunstâncias absolutamente inexplicáveis, pois o mesmo já se encontrava detido sob a guarda dos agentes do Estado, o ex-Bonde do Ecko mergulhou numa disputa sanguinária protagonizada por Danilo Dias Lima, o Tandera, e Luis Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão do Ecko.

Apesar da apresentação de números crescentes de milicianos presos e da ocupação de áreas controladas por milicianos, como a Muzema, por parte do Cidade Integrada, projeto de segurança pública recém-lançado pelo governo do estado, o que se percebe, de fato, é que a hegemonia miliciana alcançou um patamar tão elevado que comporta, em nome da manutenção dos negócios e do favorecimento de uma faixada política antimiliciana, a prisão e a morte de seus membros, principalmente daqueles associados ao Terceiro Comando Puro (TCP), que atuam em parceria com a milícia.

O regime de governança criminal existente transforma a milícia num palanque multidimencional, voltado para diferentes públicos-alvo. Às classes médias desesperadas e populações sob sua área de influência econômico-político-midiática, sinaliza a desejada ocupação militarizada e imposição pela força da ordem, mesmo que gerando mortes, ou mesmo intencionando-as, já que o sangue que alveja melhor as manchas da desigualdade e segregação sempre foi o de negros e pobres, em favelas e periferias. Às milícias, indica que reconfigurará negócios em áreas muito expostas pela mídia e, por isso mesmo, vitrines necessárias para rearranjos, com prisões de baixo impacto e manutenção dos negócios ilegais, com a proteção de sempre dada pela ausência de fiscalização e a inexistência de investigações que sigam a evolução patrimonial e financeira de suas lideranças e indiquem os vínculos com as estruturas do Estado, em seus três níveis: executivo, legislativo e judiciário. Ao TCP, impõe as perdas pesadas, como a morte de seus membros sob a acusação de “narcomilicianos”, mas garante vantagens na conquista de territórios do Comando Vermelho (CV), que passarão a integrar seus pontos de venda de drogas e demais mercados ilegais, mediante o arrego de sempre. Ao CV, propõe negociações mais amplas de proteção e favorecimento de seus líderes, principalmente os presos, além da preservação de seus domínios, mesmo diante da perda de territórios e negócios que não comprometem significativamente seus ganhos atuais, contanto que os retornos eleitorais sejam feitos, como revelado pelas investigações que resultaram na prisão da cúpula da Secretaria de Administração Penitenciária do RJ, encabeçada por Raphael Montenegro.

O desenrolar dos fatos até aqui descritos inserem a guerra entre Tandera e Zinho num outro patamar, revelando os detalhes do momento que a evolução das milícias alcançou. Não se trata mais de uma disputa interna a uma milícia que se fragmentou em razão da morte de seu líder, mas de um rearranjo mais amplo, com movimentações político-eleitorais precisas, tendo em vista as eleições de 2022, que envolvem executivos municipais e estadual, parlamentares, disputas pela manutenção do projeto bolsonarista e de extrema direita, projetos de oposição e, no centro de tudo, as vidas desprotegidas, dentre elas as das mulheres. Alcança-se assim uma formulação mais ampla e profunda de cenários que há décadas vêm se desdobrando, associando, maquiando e refazendo a estrutura político-criminal do Rio de Janeiro e, consequentemente, seus desdobramentos nacionais. Revela, igualmente, as dimensões do poder masculino patriarcal legal-ilegal do mundo político-criminal e seu arsenal de táticas aprimoradas ao longo do domínio dessas esferas de poder pelas práticas e concepções machistas.

O corpo sem morte de Marielle, em decorrência de uma morte sem responsáveis, transforma-se, assim, na morte sem corpo de homens, mas, principalmente, de mulheres, como nova fronteira da disputa entre grupos armados no país. Enquanto os paramilitares, cartéis de drogas e autodefesas, na América Central e México, lançaram mão dos estupros de mulheres como tática para obter vitórias, o projeto miliciano, em consolidação, expansão e projeção político-eleitoral, implanta o homicídio, esquartejamento e ocultação de cadáveres femininos como a elaboração mais avançada da moderna conflagração miliciana. Quando a até então intocável estrutura familiar dos membros das milícias foi violada, em busca de um recurso a mais para destruir o inimigo, um caso tornou-se estarrecedor, no final de 2021. A companheira de um miliciano desapareceu. Após a busca incessante por parte dos familiares, partes das pernas e dos braços foram encontradas em um rio. Após ser identificada, durante seu velório outra parte do corpo, contendo uma tatuagem, foi encontrada um outro local, quilômetros de distância do primeiro ponto.

Seguiu-se, nas divisas entre os bairros de Santa Cruz e Campo Grande, no Rio de Janeiro, e desses com as cidades de Nova Iguaçu e Seropédica, uma onda, que prossegue até hoje, de assassinatos, desaparecimentos e esquartejamentos, com destaque para os corpos femininos. Os rios Guandu, Vermelho e Guandu Mirim são os maiores cemitérios clandestinos submersos do país.

Em conversa com um morador, que reside às margens de um desses rios, soube que ao longo de 8 anos ele presenciou mais de 500 corpos boiando em suas águas. Na localidade, quando um corpo fica preso nos galhos do rio, as pessoas costumam soltar o corpo, para que ele siga. Ninguém quer tomar o lugar dele, em razão de qualquer ação interpretada pelos milicianos como prejudicial aos seus interesses. Desprendida dos limites da sociabilidade que deveriam constituir uma nação, a morte sem culpados de Marielle segue flutuando pelo rio-cemitério-projeto de poder que impulsiona dezenas de corpos sem vida e identificação rumo às eleições de 2022. Caminhando entre mães, esposas, irmãs e primas de desaparecidos jogados nos rios e diante da dilaceração dos corpos femininos pela guerra miliciana tenho certeza de que o único ventre capaz de parir uma nação verdadeira é o dessas mulheres, pois elas carregam em si a coragem e a resistência contra a barbárie que nos esmaga. Marielle e essas mulheres, por mais rejeitadas, injustiçadas e silenciadas que sejam, permanecem como o mundo real a partir do qual se pode pensar a verdadeira política.


Artigo originalmente publicado no Contrapoder em 8 de março de 2022.

José Cláudio Souza Alves é professor universitário, doutor em sociologia e autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense".

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