Correio da Cidadania

Este aqui não é lugar de gente, nem de bicho, nem de planta

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Foto: Reprodução Rede Brasil Atual.

Brasil, território gigante, lindo e maltratado como seus vizinhos, igualmente loteados e cercados por fronteiras estranhas. Brasil, que assim como os vizinhos foram separados por linhas imaginárias, há mais de 500 anos armazena todo azar de impurezas de um sistema que nasceu, viveu e degrada rápida e barbaramente. No mundo do capital, o gigante recortado surge como colônia, lugar de sevícias, sadismo, espoliação. Naqueles tempos, economias de abundância foram eliminadas, não poderiam existir onde iria predominar a monocultura e o extrativismo servis ao mercado longínquo e voraz das metrópoles. Povos indígenas inteiros foram submetidos aos horrores da empresa colonial. Um incontável número de africanos foi arrancado de suas terras, sua cultura, sua liberdade para o trabalho bruto do eito e os castigos que os esperava no Novo Mundo.
 
No século XIX, ainda sob o peso do escravismo e da matriz de produção colonial, Impérios e regências, sem saber ao certo se brasileiros ou portugueses, inventam-se como nação quimérica. Naqueles tempos de ampliação, hierarquização e concorrência do mercado mundial, a terra, mediante a Lei de 1850, se torna cativa para gerar renda. Só no fim do século, a “emancipação” chega para segregar e jogar os “negros inúteis” na vala do desamparo, da pobreza e do racismo. O país, sob o Imperialismo, a República e o trabalho “livre”, consolida sua subalternidade externa, herda e potencializa as deformações precedentes.

No século XX, o Brasil modernizou-se sob o movimento pendular de impenitentes formas – a quente e a frio - de fascistização. Fome, desnutrição, analfabetismo, alta taxa de mortalidade infantil foram mapeados, mas não erradicados. Formamos a base de um progresso ao modo iluminista que, acreditou-se, um dia chegaria ao sul do mundo. O capitalismo era então ascendente e, apesar da crueldade sobressalente de sua genética, das desigualdades, crises e contradições que criava e acumulava – um lixo incessante que sempre escorreu para a periferia –, o Brasil ainda fomentava esperanças de um futuro regado a progresso, democracia e direitos. No entanto, jamais fomos contemporâneos dos benefícios do bem-estar social, somente de suas promessas e rejeitos.

Na sequência, vem o esgotamento, a fase de descenso histórico do sistema, quando o país se converte num imenso e bem-sucedido laboratório de experimentos neoliberais. Aqui, tanto quanto nos vizinhos, a crise estrutural estica a corda dos limites absolutos.  Décadas de ditadura empresarial-militar reconfiguram a economia e a sociedade brasileira. O processo exigiu o sequestro dos parcos direitos existentes; populações indígenas foram escravizadas em campos de concentração abertos em clareiras das florestas; camponeses e quilombolas expropriados, trabalhadores urbanos e militantes de esquerda foram barbarizados. A produção destrutiva é marcada pela expansão da atividade minerária, sobretudo do ferro destinado originalmente à indústria bélica estadunidense, depois também para China e Israel. A revolução verde dá ensejo ao agronegócio, à pestilência dos venenos, à dependência de sementes estéreis e transgênicos monopolizados por grandes empresas. Cada um dos nossos biomas é atacado pelas tramoias do capital transnacional; nossa biodiversidade míngua; nossa fauna perece sob o fogo e os correntões.

Independente da política praticada pelos sucessivos governos desde 1964, esse processo nunca parou, só cresceu. Todos, sem exceção, foram responsáveis. Bolsonaro dá a sentença final. Aplica pena máxima aos nossos recursos naturais, às populações vulneráveis, aos órgãos de fiscalização, à educação e à saúde públicas, avanço sobre os direitos trabalhistas e à previdência. Esculhamba a política identitária de antecessores. O governo eleito em 2019 foi beneficiado por uma pandemia que o popularizou como mito matador, genocida. As lambanças que cometeu contra todos os protocolos de prevenção não saíram de alguma convicção real, sempre soube que o atraso de qualquer providência só faria crescer a expectativa pelas vacinas controladas por grandes laboratórios. A população, grande parte da qual foi atirada à pobreza e vulnerabilidade extremas, ficou entre a cruz e a caldeirinha. De um lado, à mercê de um governo calculadamente omisso que optou por um bem articulado laisse tomber malade, laisse mourir. De outro, rogando por uma imunização sem garantias*.

Apesar de todos os sinais de colapso societal e ambiental, nada indica que a máquina vá recuar. Ao contrário. Projetos desenvolvimentistas, nacionalistas, internacionalistas estão, irresponsavelmente, na pauta de todos os matizes ideológicos que disputam eleições desde os mais truculentos aos mais “amorosos” progressistas.  Negar, portanto, não é prerrogativa de quem diz que a terra é quadrada. Também são negacionistas os que pensam que a Terra é redonda e inesgotável. Ou seja, o negacionismo se tornou a única forma ilusória de defender o ritmo do capital sem controle.

Esse texto bem que poderia ter contado essa história sob outro enfoque. Mas, penso que traz o que realmente importa considerar. Uma maneira de afirmar que o Brasil, país criado para esconder a face mais abjeta da acumulação, começou muito mal, mas estávamos no início dos tempos da razão, do humanismo e do progresso. Passados 5 séculos, nossos tempos revelam o desengano e confirmam que o Brasil profundo, sob o capital, se tornou um lugar absolutamente insalubre para a existência da vida humana e não humana.

Por isso mesmo, é que 2022 precisa ser um ano em que tenhamos a coragem de rejeitar qualquer sobrevida ao capital, qualquer fôlego ao desenvolvimento e às políticas consagradas por esse sistema. Que tenhamos a capacidade de dizer que esse não é o lugar que escolhemos para viver, mas esse é o lugar que conhecemos e é a partir dele que começaremos a formação de um movimento radical de massas descartadas, desiludidas e desobedientes.

Nota:
*Interessante o artigo de Matías Blaustein: Pandemia, registro de casos e soluções falsas.


Maria Orlanda Pinassi é socióloga e professora aposentada da UNESP.

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