Correio da Cidadania

As derrotas de Bolsonaro, da ex-querda e do Brasil

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Enquanto muitos países pelo mundo, incluindo os da Europa e os EUA, sofrem com a pandemia, sendo governados ou não pela extrema-direita, Bolsonaro continua seu genocídio no Brasil, a começar por Manaus, já que se recusa a governar à maneira tecnocrática burguesa: gerindo políticas públicas. Ele gasta o tempo com vagabundagem e agitprop criminoso a favor do coronavírus – seguindo o manual do típico populista de direita.

Mas o extremismo de direita à brasileira tem suas peculiaridades. O bolsonarismo coleciona derrotas na pandemia: seguidas humilhações em torno da vacina, seja com Dória, seja com a China – e até para a Venezuela, no caso do fornecimento de oxigênio. Sem sucesso, tenta converter essas desmoralizações em força junto às próprias bases sociais, cada vez menores, o que prenuncia mais derrotas, talvez decisivas. Bolsonaro já teve de voltar atrás em várias bravatas suas: tenta esconder sua campanha antivacina anterior com medo do impeachment e da justiça, é pressionado pela CPI da pandemia no Senado, perde performance ideológica com a saída do chanceler olavista, vê governo e orçamento engolidos pelo Centrão.

Como única saída, emula ao máximo um discurso autoritário e “fascista”, para ver se a esquerda e os setores progressistas continuam caindo em sua armadilha de focarmos na pauta democrático-burguesa, que nos encapsula na bolha da “classe média”, e de evitarmos a temida pauta socioeconômica e classista: o alastramento da fome e do desemprego. No entanto, a narrativa do golpe, originalmente marketing lulista e agora falsa promessa bolsonarista, é cada vez mais inverossímil, dado que o imperialismo dos EUA se esmera em pressionar Bolsonaro, seja com a Amazônia, seja agora com a quebra de patentes das vacinas.

Ironia da história: Biden ensina a ex-querda brasileira – do PT à direita do PSOL – que radicalismo conservador se responde com radicalismo progressista...

Bolsonarismo e lulismo

O lulismo e a esquerda a seu reboque, todavia, persistem nos seus erros: focam na institucionalidade em detrimento das ruas, enxergam sempre o empoderamento de Bolsonaro mirando no voto em Lula em 2022. Assim, produzem mais desmobilização popular e leituras distorcidas da realidade. É o caso de Luis Felipe Miguel, um dos principais formuladores da política do pânico na esquerda acadêmica. Em artigo para a Folha de S. Paulo de 07/02/2021, ele analisou as eleições internas do Congresso enquanto mais uma vitória de Bolsonaro – como se isso fosse determinante de alguma coisa na insana conjuntura em que estamos, que já mudou muito desde então: o bolsonarista Daniel Silveira foi preso, obrigando o Parlamento a se perfilar ao lado do STF contra a extrema-direita no poder.

Apesar do barulho do populismo de direita nas redes, o progressismo avança na guerra cultural contra o obscurantismo bolsonarista: a vacinação iniciou-se em São Paulo e no restante do país com o simbolismo de mulheres negras e indígenas recebendo as doses da chinesa Coronavac. Nesta ocasião foram enterrados, simultaneamente, os slogans da “onda conservadora” (criada pela ex-querda) e do “quem lacra, não lucra” (inventado pela máquina bolsonarista de propagandas toscas). O mesmo acontece nos EUA, onde Biden avança nos discursos anti-neoliberal e antirrascista e onde grandes empresas privadas desfecharam o derradeiro ataque ao hoje esquecido Trump (1).

Ao mesmo tempo, a narrativa lulista continua dando sobrevida a Bolsonaro. Agora que Lula se livrou das condenações da Lava-Jato, como sustentar que vivemos numa ditadura fascista, que nosso regime se fechou? Ou o “acordão com Supremo e tudo” incluía Lula, como a esquerda não-lulista sempre registrou? PT e asseclas sonham com uma resolução burguesa, “por cima”, da crise nacional, deixando o genocídio bolsonarista perdurar até as próximas eleições.

O imaginário lulista circulante desde 2016 com o “golpe” do impeachment evidencia quão distantes da realidade são as explicações a respeito da débâcle da onda progressista na América Latina. A perseguição judicial sobre Lula, Rafael Correa, Cristina Kirchner e outros seria uma articulação imperialista comandada pelos EUA, argumentam os nacionalistas disfarçados de esquerdistas. Pelo jeito, uma articulação nada sólida, dado que Cristina já voltou ao poder e Lula talvez esteja a caminho de fazer o mesmo. Essa perseguição é politicamente golpista, acrescentam na mesma linha de raciocínio.

A Bolívia mostra o contrário – o progressismo já retornou ao governo – e agora é seu judiciário que prende preventivamente a reacionária Jeanine Áñez por alguns meses (será que neste caso também trata-se de lawfare?). A narrativa conspiratória da “guerra híbrida” vai indo por água abaixo. Essa guerra imaginária parece não ter sido nada eficiente... E quem a adota como explicação deixa de compreender a complexa realidade latino-americana e mundial do século 21.

Ao contrário do que muita gente supõe, a extrema-direita não tem projeto nenhum nem a mínima ideia do que fazer no governo – soube apenas vencer por pouco algumas eleições no rescaldo da crise mundial de 2008. Com intuitos eleitoreiros, o lulismo e a ex-esquerda superestimam a força do bolsonarismo, que não tem competência técnica/burocrática nem vínculos orgânicos com os setores cosmopolistas da burguesia.

Não foi coincidência o ex-chanceler brasileiro (verdadeiro incel) ter comprado briga com todo mundo, inclusive com sua “aliada” Índia do populista Modi, que por sua vez culpou o Brasil pelo voto a favor dos países ricos na – já ultrapassada – questão das patentes (2). Por isso, acabou caindo: o imperialismo (vulgo globalismo, na linguagem olavista adotada artificialmente pela familícia Bozo) despreza e combate a extrema-direita.

Derrotas e mais derrotas

Bolsonaro sabotou a compra de vacinas em 2020. Neste ano, desesperou-se e teve que mudar de postura. Sua lenta, destrambelhada e enfim derrotada corrida pela vacina mostra que seu negacionismo não tem a ver com conservadorismo ideológico (ele nunca falou de vacinas em todos os seus anos de deputado federal fisiológico), apenas consiste num recurso de marketing, uma técnica de poder lançada utilitariamente, ao sabor da popularidade que todo populista tolamente segue, pois só percebe o imediato, não a hegemonia política mais longa. Ele tenta manter a própria pose para seus bolsominions, mas o novo ministro da Saúde, sucessor do inepto e genocida Pazuello, corre contra o tempo comprando mais doses, pois o povo brasileiro quer se vacinar o quanto antes.

O estilo populista de poder municia-se deste e de outros recursos propagandísticos (da “autenticidade”, da “espontaneidade”, da deseducação, da boçalidade, da crueldade), sendo usado pelas indústrias eleitorais mundo afora, à direita, mas também “à esquerda”, caso de Lopez Obrador no México. Não é mera coincidência que o bolsonarismo importe do chavismo venezuelano o repertório de ataques ao Judiciário.

Como a própria mídia lulista reconhece (veja-se a Ponto Newsletter de 16/04/2021), Bolsonaro é “um pinscher com pés de barro”, pois “ladra, mas não morde”. Porém, este tipo de verdade não pode ser visibilizado: prejudica a manutenção do saudosismo dos que querem Lula de volta à presidência e desmobiliza a plateia progressista nas redes.

Contudo, as derrotas não são só do bolsonarismo, nem dos trabalhadores brasileiros que sofrem nas ruas com a condução genocida da pandemia. Há também a velha conciliação do lulismo com o reacionarismo e a corrupção, bem como a rendição programática e ideológica da ex-querda.

Muitos afirmam que “as instituições estão funcionando”. Como elas são burguesas, isto não deixa de ser verdade. O mesmo se dá com o PT, que votou no candidato do Centrão apoiado por Bolsonaro para a presidência do Senado. Este, uma vez eleito, evitou a instalação da CPI da pandemia até que o STF, por meio do ministro lavajatista Barroso, decidisse contra os interesses da extrema-direita.

Ao mesmo tempo, Lula corteja vários políticos conservadores e fisiológicos – muitos deles identificados na narrativa lulista como golpistas, liberais ou bolsonaristas – em favor de sua futura campanha presidencial. Já neolulistas como Boulos se reúnem com gângsteres políticos da Igreja Universal que exploram a religiosidade popular, envergonhando o PSOL e sua história. Realmente, “as instituições estão funcionando”...

A esquerda resiste ao chauvinismo da ex-querda

Todo esse quadro demonstra a incapacidade intelectual e o retrocesso ideológico, do ponto de vista marxista, de tanta gente que segue observando a conjuntura pelas lentes do obsoleto progressismo. Uma pane mental foi tomando conta de parte da esquerda brasileira, que passou a se orientar pela narrativa lulista – pane certamente agravada pelo confinamento social necessário ao combate à pandemia.

Os setores médios que ainda apoiam o lulismo permanecem indignados moralmente com Bolsonaro, entretanto restam paralisados: bradam ultimatos nas redes sociais, mas não se mobilizam. Não o fazem, pois descreem da centralidade dos movimentos populares para as mudanças sociais decisivas, não concebem os trabalhadores como protagonistas da emancipação humana.

Apostam apenas no Estado e em suas políticas públicas; no entanto, como Bolsonaro é quem o ocupa, prostram-se. Por isso também veem o atual presidente genocida como mais poderoso que de fato é. Até tempos atrás viam-no como invencível, tomados por um pessimismo incurável. Com a súbita mudança da condição eleitoral de Lula, inverteram instantaneamente sua posição: investiram-se de otimismo messiânico, coerente com sua subordinação ao neodesenvolvimentismo petista. Lula virá para nos redimir, imaginam. Assim o fizeram em pleno pico de mortandade da pandemia no Brasil, em março e abril. Para os eleitores lulistas “ilustrados”, o que importa não é a pandemia ou o genocídio de agora, mas Lula solto e concorrendo às eleições ano que vem.

Esse segmento social, transformado em ex-querda, deseja inutilmente voltar ao passado, onde seus intelectuais apenas adornavam a conciliação lulista de classes com críticas “fora do lugar”, isto é, pretensamente socialistas, na verdade meramente nacionalistas. Aguardam resignados 2022, como se o país pudesse esperar. Muitos deles foram às ruas exclusivamente para fazer campanha eleitoral nos últimos meses de 2020 – já ir para as ruas mobilizar-se contra Bolsonaro e pelo impeachment parece ser algo inaceitável.

Para as correntes neolulistas da direita do PSOL – Resistência, Insurgência, LSR e quetais – tudo se justifica para apoiar Lula ou passar pano para Boulos. Existem hoje objetivamente, apesar de todos os salamaleques intelectuais, apenas para servir ao desenvolvimento capitalista, à democracia burguesa e ao chauvinismo nacionais, fenômeno recorrente na história da esquerda mundial.

Daí também a importância da articulação de uma candidatura presidencial autônoma na perspectiva dos trabalhadores, iniciativa da esquerda do PSOL cristalizada no nome do deputado federal Glauber Braga, neste mês de maio do corrente ano.

Ao contrário dos saudosos do lulismo, que contam com muitos representantes entre a intelectualidade brasileira, as classes populares não podem esperar. Segmentos importantes dos trabalhadores continuam se movimentando, inclusive mulheres e jovens negros(as) das favelas que sofrem com o genocídio, mais antigo, perpetrado pelas polícias militar e civil Brasil afora.

Os exemplos das ruas do Chile, do Paraguai e agora da Colômbia mostram o caminho da renovação das lutas de classes na periferia do capitalismo. Para essas lutas, o progressismo, seu candidato, seu eleitoralismo, sua conciliação, não importam, a não ser como obstáculos aos nossos futuros processos revolucionários.

Referências
1. ver: Marcas usam redes sociais para repudiar invasão ao Congresso dos EUA, em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/01/08/marcas-usam-redes-sociais-para-repudiar-invasao-ao-congresso-nos-eua.htm 
2. Índia: falta de vacina é culpa de impasse criado por Brasil e países ricos, em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/01/19/india-falta-de-vacina-e-culpa-de-impasse-criado-por-brasil-e-paises-ricos.htm 

Marco Antonio Perruso é sociólogo, professor e membro do PSOL.
publicado originalmente em Contrapoder.

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