Correio da Cidadania

Sobre o PL que visa criar uma guarda para o governo federal

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A discussão sobre controle civil, autonomia e profissionalismo das forças de segurança ocupa um espaço central na literatura sobre relações civis-militares. Tradicionalmente, esse corpo literário costuma centrar sua análise nas forças armadas dos Estados, costumeiramente compostas por Exército, Marinha e Aeronáutica. Isso se deve ao fato de que o exercício do uso da força letal/ostensiva, segundo a concepção clássica de uma filosofia política que compreende o conflito como externo ao Estado, está reservado às forças militares e, em democracias, é imperativo que o uso dessa força esteja sob autoridade civil legitimada e com efetivo poder de controle das tropas.

Contudo, desde a década de 1990 torna-se cada vez mais comum a incorporação de forças policiais nessas análises, na medida em que as polícias também realizam atividades ostensivas de combate e seus formatos se aproximam, em muito, das organizações militares, independentemente dessas forças policiais serem nomeadamente militarizadas.

Além disso, desde o fim da Guerra Fria, a literatura especializada na área de Segurança e Estudos Estratégicos passa a dar mais atenção aos conflitos que ocorrem dentro das fronteiras dos Estados, o que faz com que as polícias também se tornem agentes passíveis de análise crítica por quem pesquisa nessas áreas, pois é de competência desses agentes a atuação para garantia da ordem.

Esse movimento é notável em países como o Brasil, onde existe um segmento policial de nível estadual que funciona, constitucionalmente, como reserva do Exército denominada Polícia Militar; ou na Colômbia onde a Polícia é uma entidade Nacional considerada como a quarta força militar. Outros exemplos são os Carabineiros do Chile e as Polícias Nacionais da Bolívia, Peru e Uruguai. De maneira geral, toda a região sul-americana possui instituições policiais com amplas atribuições, inclusive em combate direto e ostensivo. Um funcionamento correlato é o inverso: forças armadas envolvidas em atividades de policiamento e ordenamento interno se tornam, também, mais comuns. Atuando dessa maneira de forma regular ou sob acionamento extraordinário dos poderes civis que se tornam regulares no tempo, como o dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem brasileiro.

Assim, alguns autores defendem que a busca por controlar politicamente as instituições responsáveis por aplicar a força seja estendida às organizações policiais, expandindo a compreensão de controle civil sobre o guarda-chuva de instituições de segurança, denominado na literatura “setor de segurança”. Essa concepção é problemática pois naturaliza a lógica de que o século 21 trouxe uma série de “novas ameaças” que demandam a atuação conjunta de polícias, forças armadas e todas as forças especiais (do tipo gendarmerias) que fazem parte da zona cinzenta entre o policial e o militar. No entanto, a preocupação em afirmar a autoridade política sobre cada uma das forças envolvidas nas atividades de segurança é necessária e, no atual momento político brasileiro, urgente.

Autonomia policial

Em 11 de janeiro de 2021, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma matéria informando que o Congresso pretende votar um novo Projeto de Lei Orgânica das Polícias Civis e MIlitares [1]. A íntegra do texto deste projeto não está disponível ao público, porém segundo o Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP) [2], trata-se da revisão do Projeto de Lei nº 4.363, de 2001. Ainda de acordo com o IBSP, foi feita uma série de audiências públicas promovidas pelo Deputado Federal Capitão Augusto (PL-SP) para discutir a atualização/revisão desse projeto.

Pelos trechos fornecidos pelo Instituto do conteúdo das audiências, nota-se que há uma preocupação, por parte dos policiais, de regularizar o quanto antes a autonomia das polícias antes que “um governo de esquerda” ocupe o governo federal novamente. O Estado de S. Paulo, que afirma ter tido acesso ao texto, informa que o PL tem, de fato, a intenção de garantir maior autonomia às organizações policiais e menor ingerência do governo estadual. Isso seria feito por meio de uma lista tríplice elaborada pelos integrantes das forças policiais e encaminhada ao governo federal que escolheria para mandato de dois anos com prerrogativa de exoneração por parte da União, entre os nomes dessa lista, o comandante-geral da PM, informa a reportagem. Já o delegado-geral da Polícia Civil “poderá ser escolhido diretamente pelo governador entre aqueles de classe mais alta na carreira. A dispensa ‘fundamentada’, porém, precisa ser ratificada pela Assembleia Legislativa ou Câmara Distrital, em votação por maioria absoluta dos deputados”, segundo o texto da mesma reportagem de capa do jornal paulista.

A defesa da autonomia militar é uma herança da literatura clássica das relações civis-militares, que entende a autonomia das forças em gerenciar seus assuntos internos como uma garantia de confiança entre elites políticas e elites militares. Presume-se que o corpo profissionalizado de oficiais irá manter o escopo das suas atividades e atribuições restritas aos assuntos militares, não interferindo na vida política, apenas prestando um serviço de excelência para o Estado - mantê-lo seguro contra ameaças externas e, mais recentemente, internas.

Essa hipótese já foi longamente criticada e refutada, visto que a profissionalização militar e sua autonomia são precisamente os elementos que os fazem intervir politicamente e abranger suas funções para muitos (senão todos) aspectos de uma sociedade. Os últimos anos da política brasileira comprovam, de maneira bastante convincente, essa hipótese crítica da literatura.

Assim, o argumento de que é necessária maior autonomia das polícias para melhorar seu desempenho na provisão de segurança não se sustenta. A maior autonomia das organizações policiais e militares implica tão somente em maior poder de decisão da própria organização em matéria de obtenção e alocação de recursos, educação profissional de seus membros e decisão sobre como, onde e contra quem lançar os aparatos de segurança - que podem ser mecanismos de monitoramento e vigilância, bem como disparos de armamentos letais. E, no caso da PL em foco, o que se reivindica como autonomia é, na verdade, uma transferência de controle dos estados para o governo federal.

Na prática, isso significa duas coisas: a) do ponto de vista estritamente jurídico-constitucional fere o pacto federativo e entra em conflito com a Constituição Federal de 1988; b) mantém a descentralização administrativa das forças policiais, deixando os encargos financeiros sobre o orçamento estadual, e promove uma centralização política no mínimo preocupante, na medida em que a União teria efetivamente o controle direto de todas as armas, internas e externas.

A discussão do controle civil sobre as forças policiais é especialmente sensível no Brasil, onde em plena pandemia de covid-19 sob recomendações de distanciamento e isolamento social, a letalidade policial no primeiro semestre teve um aumento de 7% em relação ao ano anterior [3].

Projeto político-jurídico

Este aumento não surpreende quando se considera o discurso autoritário de políticos como Jair Bolsonaro (sem partido) e seus apoiadores, também a favor de maior autonomia das polícias estaduais, e de práticas como vingança por parte de policiais [4], observadas principalmente em lugares como o Rio de Janeiro. O projeto está alinhado à “política de segurança” de “fazer morrer” aquelas categorias sociais marginais que são compreendidas como ameaçadoras da ordem, conceito difuso e politicamente mobilizado para atender aos interesses dos governos de turno. Ressalta-se ainda que estas categorias sociais marginalizadas possuem um evidente e histórico corte racializado e de classe, notável quando se avalia que oito entre cada dez mortos pela polícia são negros, segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública [5].

Além destas categorias já historicamente perseguidas, a política autoritária do governo Bolsonaro e seus apoiadores, inclusive dentro das polícias, tem sido direcionadas também àqueles considerados “ameaças existenciais”: defensores dos direitos humanos, minorias políticas, ambientalistas, movimentos sociais de esquerda, todos chamados de “esquerdistas” ou “comunistas” como forma de diminuir e desmerecer a sua relevância e atuação na política nacional. Soma-se a essa investida autoritária as diversas declarações pró-golpe e contrárias às instituições democráticas que a cúpula do governo e a família do presidente tem proferido, especialmente durante a pandemia de covid-19, o que causou, inclusive, uma série de desentendimentos entre o governo federal, as forças armadas e o Supremo Tribunal Federal (STF) em meados de 2020.

Assim, entendemos que a busca por maior autonomia política das polícias estaduais em meio a esta atmosfera golpista e violenta estimulada pelo governo federal e seus aliados é um sinal de alerta. Faz-se necessária atenção, portanto, a este tipo de movimento que visa dar autonomia a um braço armado do Estado, que já demonstrou apoiar o discurso de Bolsonaro [6], em um cenário de constantes ameaças às instituições democráticas. Considerando ainda os acontecimentos de 2020 no que diz respeito às denúncias feitas sobre reiterada violência, por vezes letal, inerente à atuação policial no mundo inteiro na onda das manifestações do movimento Black Lives Matter, o Brasil estaria caminhando novamente na contramão das tendências atuais: enquanto em muitos lugares se discute a reforma, a redução de financiamento público e até a abolição da polícia, aqui ainda se discutem formas de fortalecer a instituição.

Como exposto acima, essa investida legislativa do governo federal brasileiro não é episódica, tampouco conjuntural. Em termos mais gerais, segue a tendência global, desde os anos 1990, de colonização da política pela segurança com o empoderamento dos burocratas armados e/ou professionais da violência, assim como a inflação das forças de segurança e políticas de monitoramento. Essa tendência produz, conforme nossas pesquisas vêm demonstrando, democracias que, por meio das regras legais e sem alterar significativamente o edifício institucional, ampliam sua capacidade de controle e letalidade sobre as populações que governam. Isso se dá por meio “ajustes” institucionais, como esta PL, que policializam as Forças Armadas e militarizam as polícias. Este fluxo permite que, por meio da inflação do chamado setor de segurança, os governos sigam classificados como democracias (mesmo que em risco), mas possuam uma capacidade de intervenção autoritária maior que das ditaduras do século 20. A isso nomeamos como democracias securitárias.

Em termos mais específicos, a situação brasileira, houve uma reação de vários setores da sociedade apontando que o avanço da referida PL seria a preparação para um golpe de Estado que mobilizaria as forças policiais dos estados. Tal preocupação não é sem motivo, pois, como vimos, o desejo golpista do presidente em exercício é público e notório. Como agravante deste discurso, ressalta-se que em dezembro de 2020, o presidente declarou a intenção de pautar novamente no Congresso o chamado “excludente de ilicitude” [7], rejeitado no pacote “anticrime” do ex-ministro Sérgio Moro em 2019, que na prática significa que o agente de segurança pode não ser indiciado caso “cometa excessos de violência” em serviço. Mas chamamos a atenção para uma outra possibilidade: tendo o controle direto das forças policiais estaduais e o conhecido apoio militante de seus integrantes (desde meados de 2019 Olavo de Carvalho oferece cursos gratuitos para as PMs [8]) precisaria o governo federal de um golpe?

Com uma prerrogativa como esta, perseguir, e até neutralizar adversários e inimigos, não seria exatamente um problema. Nunca é demais lembrar que a vereadora da cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco, foi executada com seu motorista, em 2018, em um estado sob intervenção federal abrigada pelo artigo 34 da Constituição de 1988. Casos como este nos mostram que na dobra autoritária do neoliberalismo pós-crise de 2008, como forma de conter as reações populares e de movimentos sociais (do dezembro grego de 2008 até o junho de 2013 no Brasil, passando pelos movimentos de ocupação de praça de 2011), a democracia e sua inflação securitária, gestada desde a década de 1990, não são a solução, mas exatamente o problema que muitos insistem em não ver, entorpecidos pelo espetáculo que se tornou a disputa política nessas duas décadas de século 21.

Notas:

[1] "Congresso avalia reduzir poder de governadores sobre PM e polícia civil", O Estado de S. Paulo, 11/01/2021.
[2] "IBSP discute Projeto de Lei Orgânica das Polícias Militares", Instituto Brasileiro de Segurança Pública, 10/08/2020.
[3] "O crescimento da letalidade policial e a invisibilidade dos dados de raça no país", G1, 03/09/2020.
[4] "Vingança de policiais é um crime que se repete, diz Anistia Internacional", G1, 31/07/2018
[5] "Negros são oito de cada 10 mortos pela polícia no Brasil, aponta relatório", UOL Notícias, 18/10/2020.
[6] "Apoio ao governo por parte de integrantes da Polícia Militar gera polêmica", Correio Braziliense, 14/06/2020.
[7] "Bolsonaro quer incluir excludente de ilicitude na pauta do Congresso", Agência Brasil, 15/12/2020.
[8] "Olavo dará curso grátis a PMs, e Carlos Bolsonaro apoia aulas antiesquerda", UOL Notícias, 21/07/2019.

Lasintec: Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da UNIFESP
Site: https://lasintec.milharal.org/ 

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