Correio da Cidadania

“Esgotado, o eleitor brasileiro voltou ao tradicional mesmo sem garantia de mudança”

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Lava Jato: corrupção não diminuiu e direita se esbaldou - Pensar Piauí
No balanço político-eleitoral das eleições municipais, algumas fotografias, apesar da imprevisibilidade predominante no atual contexto brasileiro, apontam tendências. Entre o esvaziamento do bolsonarismo e a renovação no campo das esquerdas, fortaleceu-se a direita dita tradicional e moderada. No entanto, há uma pandemia no meio do caminho, o que torna o futuro do país absolutamente incerto para previsões seguras. É esta a análise que o sociólogo Ruda Guedes Ricci faz ao Correio da Cidadania, em entrevista na qual comenta os resultados gerais da eleição.

“A guinada (à extrema-direita) frustrou o eleitor que quer mudança no país porque, lembremos, a grande maioria dos brasileiros é pobre e amarga uma condição de vida muitas vezes desumana. Agora, esgotado, ele retornou ao tradicional, ao conhecido, mesmo que não seja algo que garanta a mudança. Apostou, afinal, no ‘certo’.

Apesar de apontar uma derrota geral das esquerdas, Ricci, autor do livro Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira, destaca que há uma renovação das lideranças, a exemplo do que demonstraram as campanhas de Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos, entre outras de menor repercussão nacional. Mas alerta que o esforço exclusivamente institucional tem pouco a acrescentar às necessidades que este campo representa.

“O importante é a esquerda parar de projetar frentes de cúpula. Basta de reuniões de caciques extremamente vaidosos. A aliança que a esquerda precisa voltar a construir é com a base social. Veja que os partidos de centro-esquerda nem mesmo se aventuraram a organizar ações de solidariedade durante a pandemia, não articularam vereadores e prefeitos (os cinco partidos de centro-esquerda do Brasil, tinham, até esta eleição, 1.100 prefeitos e 11 mil vereadores). O lulismo trouxe este problema para este campo ideológico: pensa a política pelo alto, a partir de jogos de salão, entre dirigentes, entre ‘capas-pretas’.

A entrevista completa com Ruda Guedes Ricci pode ser lida a seguir

Correio da Cidadania: Como avalia o resultado geral das eleições? Elas indicam alguma coisa para 2022 ou não há condições de fazer esse tipo de previsão no atual contexto político brasileiro?

Rudá Ricci: Não se faz previsão em política, justamente porque é uma relação humana. Podemos, contudo, apontar tendências. Tendências são possibilidades que não prometem se realizar, mas se insinuam na realidade. O que podemos dizer sobre as eleições municipais? Primeiro, que os partidos de centro-direita venceram. Segundo, que a hegemonia do PT no campo de centro-esquerda parece ter se fragilizado. Terceiro, e o mais importante, que o eleitor parece ter se esgotado de ter tentado eleger lideranças antissistêmicas ou que prometiam mudança da ordem política e social do país. Apostaram no lulismo e, depois de tantos ataques ao PT, apostaram na outra ponta: na extrema-direita.

A guinada frustrou o eleitor que quer mudança no país porque, lembremos, a grande maioria dos brasileiros é pobre e amarga uma condição de vida muitas vezes desumana. Agora, esgotado, ele retornou ao tradicional, ao conhecido, mesmo que não seja algo que garanta a mudança. Apostou, afinal, no “certo”.

E tradicional na política brasileira é a ARENA ou os herdeiros da ARENA. São clientelistas e conservadores, o que garante sempre algum ganho, ainda que mínimo, ao brasileiro pobre. Com o agravamento da crise social e a segunda onda da pandemia no Brasil, nada garante que esta decisão do eleitor, mais moderada, se mantenha nas próximas eleições.

A hipótese que apresento é que o eleitor médio brasileiro está procurando um norte, uma bússola mais bem calibrada.

Correio da Cidadania: A começar pelo bolsonarismo, como enxergou seus resultados nas eleições municipais? O que revelam sobre seu bloco político-ideológico?

Rudá Ricci: Primeiro, o bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições. Bolsonaro foi um Midas ao revés. Segundo, no campo do centro-esquerda, o PT foi o grande derrotado, não exatamente toda esquerda. Veja que PDT e PSOL melhoraram sua situação e projeção pública. Embora tenha perdido prefeituras, o PSB se projetou em função de disputas regionais importantes. PT e PCdoB se saíram pior. Mesmo assim, o PCdoB consolidou a liderança ao mesmo tempo leve, jovial e determinada de Manuela D’Ávila.

É possível perceber, portanto, um paradoxo nesta eleição: embora o centro-direita tenha saído vitorioso, é o centro-esquerda que projetou novas lideranças no cenário local, regional e mesmo nacional. Quais líderes de centro-direita teriam saído das eleições com a projeção de Boulos, Manuela e Marília Campos? O centro-esquerda, afinal, conseguiu se renovar para além da figura de Lula.

Aliás, no PT, grande parte dos eleitos petistas não faz parte da corrente majoritária do partido, caso das prefeitas eleitas em Minas Gerais neste segundo turno. Mais: as mulheres se tornaram as grandes figuras desta eleição e inovaram até mesmo na apresentação das campanhas proporcionais, com as já famosas candidaturas coletivas ou covereanças.

Correio da Cidadania: Como avalia os resultados da direita e seus partidos mais tradicionais?

Rudá Ricci: Como disse, o eleitor apostou no já conhecido, foi moderado. Não cravou, como nas eleições passadas, na mudança. Parece esgotado de tantas tentativas desde 2002 (na verdade, em 1989 já procurava alguém que não fazia parte do establishment político).

Os partidos de centro-direita, na sua maioria, não esboçaram táticas eleitorais muito sofisticadas ou alternativas. Fizeram o de sempre. Fake News, esta praga que está no DNA da direita brasileira, voltou à tona, como em toda eleição. Falam muito que teria sido uma novidade em 2018, mas a novidade foi apenas o uso do WhatsApp que, aliás, não teve o mesmo uso e serventia eleitoral em 2020. Mas, na verdade, fake news sempre foi usada pela direita tupiniquim.

Correio da Cidadania: Quanto à esquerda, como viu seu desempenho eleitoral?

Rudá Ricci: Foi mal, mas inovou. Eu apostaria mais que estamos vivendo uma dupla transição: a do eleitor (que parece retornar da extrema-direita ao tradicional) e da esquerda (da hegemonia do PT para uma pluralidade no centro-esquerda; da liderança da corrente CNB no interior do PT para novos expoentes petistas não alinhados com esta corrente majoritária; da liderança absoluta masculina para mulheres como lideranças mais inovadoras e em ascensão).

Podemos ter iniciado, em 2020, uma transição que sabe o que deixa para trás, mas não sabe exatamente o que aponta para o futuro.

Correio da Cidadania: É possível vaticinar uma divisão irreversível entre as esquerdas a partir do que se viu nas urnas, em especial no apoio que o PSOL conseguiu em algumas cidades?

Rudá Ricci: Não. O importante é a esquerda parar de projetar frentes de cúpula. Basta de reuniões de caciques extremamente vaidosos. A aliança que a esquerda precisa voltar a construir é com a base social. Veja que os partidos de centro-esquerda nem mesmo se aventuraram a organizar ações de solidariedade durante a pandemia, não articularam vereadores e prefeitos (os cinco partidos de centro-esquerda do Brasil, tinham, até esta eleição, 1.100 prefeitos e 11 mil vereadores). O lulismo trouxe este problema para este campo ideológico: pensa a política pelo alto, a partir de jogos de salão, entre dirigentes, entre “capas-pretas”.

Correio da Cidadania: Ainda sobre as esquerdas, suas tarefas políticas não estariam localizadas mais fora do que dentro da institucionalidade?

Rudá Ricci: Exatamente. Mas, tente convencer Lula ou Ciro Gomes desta necessidade. Tarefa hercúlea.

Correio da Cidadania: O que espera do Brasil para 2021 à luz da agenda política e econômica hegemônica?

Rudá Ricci: Possivelmente, uma crise social agravada. Já temos mais de 70 milhões de brasileiros desempregados ou com renda familiar em queda neste ano, segundo o DIEESE. Não tivemos uma explosão social como a do Chile porque o brasileiro é crédulo, acredita em si e no futuro e é muito resiliente.

Afinal, pobre o brasileiro negro é desde a escravidão. Seus pais, avós e tataravós viviam em dificuldades como ele. Na sua cabeça, todos partidos e políticos são elitistas e só pensam no seu próprio sucesso. Uma vez ou outra aparece alguém que melhora a sua vida, como Lula. Mas, aí, despejam mensagens dizendo que quem o ajudou roubou ou gastou além do que devia.

Abandonado à sua própria sorte, o que resta aos pobres brasileiros? Acreditar numa solução mágica, no misticismo ou no seu esforço pessoal ou familiar. É o que lhe resta quando a esquerda decide entrar na festa das elites e acaba gostando: abandona o que deveria ser sua base social e sua razão de ser.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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