Correio da Cidadania

Reflexões sobre eleições e povos indígenas

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Legenda foto: Durante a II Mobilização Indígena realizada em Brasília, indígena aponta “sugestivamente” sua flecha ao alvo inimigo das demarcações de terra – maio de 2014. Retirado do jornal Causa do Povo, número 71.

Temos um longo caminho de resistência e luta. Depois de mais de 500 anos, continuamos a resistir e re-existir, tudo graças a nossa capacidade de acreditar que construiremos um mundo em que haja convivência harmoniosa entre os seres e a natureza. Este é o único caminho possível para a humanidade, o Bem Viver, que por valorizar os seres humanos e a natureza carrega um antagonismo com o capitalismo que coloca os objetos como centro do mundo, explora e causa sofrimento aos seres humanos, e destrói a natureza, contrariando os alicerces do Bem Viver.

Trago aqui algumas reflexões que considero importantes para que pensemos as eleições, mas que principalmente refletem no seu significado e o significado da mesma para os invasores, sua visão de mundo e seu projeto de manutenção do seu poder.

Irei dividir a análise, classificando-a por número.

1) Vivemos em um mundo capitalista. No capitalismo, sua principal base é explorar a natureza, esgotando seus recursos e a mão de obra de outros seres humanos, com o objetivo de acumular riqueza para bem poucas pessoas do planeta.

Para exemplificar o que estou falando: segundo pesquisa da OXFAM, 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial. Só para que tenhamos uma ideia, pessoas que estão em insegurança alimentar, pobreza extrema ou afetadas pela fome, são 750 milhões de pessoas - ou quase 1 a cada 10 pessoas do planeta estão nessa situação segundo pesquisa da FAO, Organismo da ONU que analisa a fome no mundo.

No Brasil, para se ter ideia, os 6 homens mais ricos, detêm a mesma riqueza que é dividida entre 100 milhões de pessoas, são dados da OXFAM de 2017. Isso pode ter mudado ainda mais com a pandemia, que enriqueceu ainda mais quem já era rico e empobreceu ainda mais quem era pobre.

Essas informações são importantes para que possamos entender como se organiza esse mundo. Ele não se organiza para maioria da humanidade; o capitalismo atende aos interesses de bem poucas pessoas (a burguesia) que têm interesse de acumular permanentemente - ou seja, explorar mais pessoas, destruir mais a natureza e manter mais gente na miséria - para que seu mundo, que é composto de bem poucas pessoas, continue aproveitando tudo aquilo que a humanidade produziu. Em nenhum momento a burguesia colonialista-capitalista pensou em mudar essa lógica, ao contrário.

2- Aqui em Abya Yala (Américas) e, para ser mais preciso no que estamos falando, Pindorama (Brasil), desde a invasão pela empresa colonial que naquele momento atendia aos interesses das cortes espanholas e portuguesas, grupo que como já sabemos sempre foi formado por poucas pessoas, implantou-se seu projeto. Como todos nós sabemos, invadiu, escravizou, torturou, estuprou, sequestrou, matou e estabeleceu as regras de como deveríamos estar em nosso território. Essa prática dos invasores mudou de nome (Colônia, Brasil Império ou República), mas permaneceu e permanece até hoje, e nada mais é que o capitalismo.

O capitalismo com suas táticas e maneiras muitas vezes convence a muitos de nós, que o que ele faz é natural e correto. Primeiro que não é natural; se fosse natural, não mudaria o nosso modo de vida. Correto também não é; se o fosse, por que quando ocupamos um território, que registraram em seus nomes, eles dizem que é roubo? Logo, o natural é o que fizeram? Ou roubo é o que fazemos?

3) Ao longo desse tempo, os invasores impuseram para nós suas leis e seu modo de vida. Com essas leis, eles sempre colocam pessoas que protegem seus interesses para que, em alguma situação difícil, venham a defender os interesses próprios (Juízes e Promotores), desde a invasão colonial. Geralmente, se as leis que eles fizeram fossem questionadas, essas pessoas - que geralmente são seus filhos - iriam decidir quem estava certo e quem estava errado. Vocês podem imaginar quem sempre ganha quando isso ocorre?

Isso só mudou um pouco quando houve duas revoluções: nos anos de 1910, na Revolução Mexicana, e em 1917, na Revolução Russa.

Na primeira, os indígenas do México fizeram a primeira revolução em Abya Yala, e na segunda os trabalhadores e trabalhadoras russos fizeram a revolução. Ambas tinham o propósito de mudar a lógica de como o poder se organiza, este que estava na mão de bem poucos, os brancos ricos.

Essas revoluções e outras lutas dos povos no mundo, se não mudaram tudo, permitiram que trabalhadores, trabalhadoras e povos originários de todos os cantos do mundo pudessem avançar em seus direitos, sonhar com outro tipo de mundo que não aquele que lhes vinha sendo imposto.

Infelizmente, foi por pouco tempo. Tanto a revolução Mexicana como a Revolução Russa passaram a ter derrotas permanentes, até que passaram a ter a mesma lógica do regime que deveria ter sido superado. Entretanto, estas fizeram com que ocorressem avanços no mundo, como eu já comentei anteriormente.

4) Aqui em Pindorama, tivemos ganhos com essas revoluções, principalmente nos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, também vindos de lutas. Trabalhadores e trabalhadoras, desde 1917, fizeram grandes greves, que permitiram a conquista de direitos como: jornada de trabalho, férias, impedimento de que crianças fossem exploradas no trabalho, entre outros. Os indígenas participaram? Sim, mas temos poucos registros, porque o SPI - O Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), criado em 1910 - promoveu um processo de proletarização (transformação em trabalhadores, sem identidade étnica) de muitos indígenas. Mas temos alguns registros de indígenas valorosos nesse processo, como o caso do Tupinambá Caboclo Índio Marcelino, em Ilhéus, na Bahia.

Esses direitos avançaram para outros direitos no Brasil República, sempre fruto da luta de outros povos oprimidos do mundo e da nossa própria organização. Ou seja, todo direito é fruto de muita luta, dor e morte dos oprimidos no geral.

5) Nesse período chamado de Brasil República, tivemos 6 Constituições. Essas constituições são chamadas pela burguesia de Pactos Sociais, onde os interesses de todos os setores sempre estão contemplados ali. Mas, nestas constituições, a maioria dos que participaram eram homens, brancos e ricos, ou seja, burgueses.

Na última Constituição, a de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, vínhamos de uma ditadura empresarial-civil-militar que empobreceu muito a maioria da população, que atacou muito os povos indígenas. Hoje, com o relatório Figueiredo, sabemos o quanto essa ditadura foi perversa contra os povos indígenas, para que os ricos ficassem ainda mais ricos.

Se vocês não lembram, vou aqui rememorar: o Ministro da Economia da Ditadura Militar, Delfim Netto, falava que precisa fazer “crescer o bolo” para “dividir”. O bolo cresceu, mas não foi dividido nunca, o que causou muita corrupção, desemprego, fome e caos. O Brasil no começo dos anos de 1980 tinha saques famélicos, trabalhadores e trabalhadoras fizeram várias greves gerais para que seus direitos fossem respeitados, até que a Ditadura não aguentou e teve de passar o poder aos civis, com o país destruído.

Essa Constituição foi um pouco melhor. Mas, como as outras, quem determinou como ela seria foi quem detinha o poder econômico que, por ter apoiado a ditadura empresarial-civil-militar, estava um pouco fragilizado aqui no Brasil. Mas, quando fazemos essas análises, nunca podemos olhar só para o Brasil, temos de olhar para o mundo também. No mundo, o capitalismo e a burguesia estavam cada vez mais fortes. Quando a Ditadura aqui começa a cair, desde 1979, o capitalismo passa por uma nova mudança: neste ano foram eleitos Margareth Thatcher na Inglaterra e, no ano seguinte, Ronald Reagan nos EUA.

Ambos começam a implantar o projeto neoliberal no mundo, que prevê cada vez mais força para o capitalismo, cada vez menos políticas sociais para os grupos mais oprimidos pelo capitalismo, ao mesmo tempo em que estruturam uma política permanente de ataques através do aparato de repressão do Estado (polícias e forças armadas) a quem questionasse essa nova forma de organização do Estado capitalista.

Portanto, vamos entender que, apesar dos avanços da Constituição de 1988, não estamos sozinhos no mundo e que o capitalismo se conecta mundialmente. Que apesar deste estado de fragilidade em Pindorama, em algum momento voltaria a se fortalecer e fazer as mesmas coisas que estava fazendo em outras partes do mundo.

Foi assim que foi aprovada a Constituição Federal de 1988. Esse “pacto”, que em sua maioria foi feito por homens ricos e brancos, cedeu alguns direitos, mas dentro de uma situação mundial muito desfavorável à efetivação do que era favorável ao povo nessa mesma Constituição.

Entre esses direitos estava um conjunto de políticas sociais, incluindo a demarcação de terra dos povos indígenas, entre outros. Para se ter uma ideia de como é esse ‘ceder sem ceder’, estava previsto que sete anos depois haveria uma revisão Constitucional, ou seja, os capitalistas\burgueses previam que em sete anos estariam fortes o suficiente para retirar aquilo que deram naquele momento de fragilidade.

Um bom exemplo disso é o tempo estabelecido para a conclusão de todo o processo demarcatório de territórios indígenas. O artigo 67 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 novamente estabeleceu o prazo de cinco anos para que a União Federal concluísse a demarcação das terras indígenas. Como todos sabemos aqui, isso nunca ocorreu.

Só para se ter uma ideia: até 2019, a Constituição teve mais de 100 mudanças, em sua maioria, desfavoráveis ao povo.

6) Toda a estrutura do Estado colonial-capitalista-burguês se manteve intacta, apesar de muito se falar ao contrário. Os cargos que definem quem está certo e quem está errado continuam sendo ocupado pelos filhos da burguesia, com raríssimas exceções... Um caso aqui outro ali, sem força nenhuma era ocupado por algum aliado. A estrutura de financiamento de campanhas permaneceu a mesma, ou seja: quem financia determina o que seus representantes devem fazer, é o famoso “quem paga a banda, escolhe a música”. A burguesia então montou uma infinidade de partidos para atender seus interesses conforme a ocasião, se precisar de nome, mudar a cara de quem representa, mudar a cor etc., dando a impressão de que ali estaria ocorrendo uma mudança que nunca ocorre de fato.

Essa estrutura é contra qualquer avanço dos interesses do povo. As últimas eleições foram o grande exemplo disso: ocorreu uma onda de mudança que era para “mudar tudo”. Mudou mesmo, para muito pior. Depois do golpe ocorrido em 2016, os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, os direitos das minorias, passaram a sofrer duros ataques, o que já era previsível para a burguesia. Como havia dito lá atrás, em 1979, o mundo estava implantando o modelo de capitalismo neoliberal que atende plenamente aos interesses do capitalismo e nada de interesses do povo (ou seja, da maioria). Direitos conquistados na Constituição de 1988, como trabalhistas, previdenciários, territórios indígenas, entre outros, passaram a ser atacados ou retirados, sofrendo ainda mais retrocessos.

A eleição é o momento em que esse poder da burguesia é afirmado, travestido de democracia. Como pode haver democracia quando um setor (burguesia branca) tem mais condições de eleger os seus que o povo (indígenas, negros e negras, mulheres pobres, LGBTQs)? A burguesia, através de seus jornais (TVs, rádio, portais na internet, entre outros) pega um caso aqui e ali de indígenas, negros e negras, LGBTQs e mulheres que se elegem para dizer o quanto é democrático esse regime.

Todos podem, mas nunca fazem, um mapeamento a sério de como é a representação nas câmaras e quais os interesses aqueles que são eleitos de fato representam. Ficamos com a impressão de que casos particulares de fato nos incluem em um modelo de sociedade excludente, ontem, agora e sempre!

7) Muitos parentes aderem a essa lógica, sem pensar no que ela significa. Muitos aderem honestamente, pensando em fazer a luta pelos direitos dos povos indígenas, muitos aderem por boa intenção e muitos aderem por interesse próprio, sem nenhum compromisso com nada. Infelizmente, temos visto pouco debate sobre o que significa esse lugar e o que significa o sistema capitalista para os povos indígenas e que papel deve desempenhar.

Muitos estão em partidos anti-indígenas, fazendo a análise que seu papel pode ser maior do que aquele que o partido estabeleceu, falando que pode mudar o partido; mas até que isso ocorra (nunca), já ajudou a eleger muitos deputados anti-indígenas, ampliando ainda mais os ataques aos nossos direitos. Muitos acreditam que o Bem Viver não é possível, muitos nem sabem o que é o Bem Viver!

Cabem algumas perguntas: para que a representação em parlamentos? Qual o intuito? Qual a leitura que se tem sobre esse sistema? Aonde se quer chegar?

8) Muitos, ao lerem esse texto, poderão achá-lo um desestímulo à participação indígena em processos eleitorais. Quem entender assim, age de má fé. Acredito que o espaço da política é uma das táticas (como fazer), não a única. E tampouco tem funcionado de um ponto de vista estratégico (construir o Bem Viver, uma Sociedade Anticapitalista). Porém, se não soubermos disso, estaremos participando para fortalecer (e não superar) esse sistema. Portanto, pensar tudo isso é fundamental. Pense bem: o que queremos com isso? Aonde queremos chegar? Que mundo queremos construir? Com quem queremos construir?

Como já falei, responder a tais questões é fundamental, porque se não respondermos, ao invés de acreditarmos que estamos avançando, estaremos retrocedendo muito mais que imaginamos.

Todos os nossos passos são muito importantes, cada erro nosso nos faz ir pra trás em muito daquilo que queremos construir (se tivermos consciência plena). Precisamos fugir de respostas fáceis como as que falam que esses espaços de representação ajudam a construir políticas públicas. Quando falamos isso, estamos negando a realidade: as políticas públicas estão sendo atacadas, destruídas, todas elas. Logo, temos tarefas mais difíceis e duras do que imaginamos. Pensar que a nossa presença por si só mudará o quadro é negar a realidade! É negar como a burguesia se organiza e se organizou para não permitir nenhuma mudança!

Nesse sentido a questão é: a luta não se dá apenas no parlamento, que é só uma trincheira, mas no cotidiano dos povos. Em nosso entendimento, o capitalismo se organiza contra, e não a favor, dos nossos direitos, cada indígena precisa saber que ser indígena é ser anticapitalista, porque essa é uma sociedade que não nos quer, não aceita o indígena e é necessário conhecer o capitalismo, como ele funciona, para entender.

Algumas questões importantes para quem for disputar tais espaços: essa representação tem que vir do acúmulo de um debate coletivo com seu povo e outros povos. Existe a necessidade dos povos indígenas, tanto aldeados como em contexto urbano, de construir uma pauta de luta unificada que seja debatida ao longo dos anos, para que no período eleitoral todos os povos possam conhecer, e que possam ser assumidas por todos e todas candidatos e candidatas indígenas e aliados. Fazer um estudo dos partidos que estão fazendo a disputa eleitoral, verificar sua atuação no Congresso Nacional, bem como se em seu Estatuto está a defesa dos direitos dos povos indígenas, e consequentemente desestimular e desautorizar indígenas que falem em nome dos povos indígenas e estejam em partidos anti-indígenas.

A proposta desse texto não é apresentar caminhos prontos - esses construiremos juntos -, mas colocar questões que são importantes, como compreender que não venceremos o inimigo lutando em suas trincheiras, todas minadas, sem uma forte preparação anterior.

Por fim, espero que tenha dado uma pequena contribuição para nossas reflexões e possamos chegar a um lugar de compreensão deste momento histórico, do nosso processo histórico e dos caminhos que poderemos construir juntos e juntas.


Givanildo Manoel, o Giva, é comunicador na TV Tamuya e militante do GT Indígena do Tribunal Popular.

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