Correio da Cidadania

A sentença do terror

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No dia 4 de maio, um juiz federal de Curitiba apresentou sua sentença sobre o caso dos supostos terroristas da operação Hashtag. Após dez meses de absoluto hermetismo, oito dos então capturados foram condenados a penas draconianas.

Este artigo contém uma análise sintética da sentença. Para tanto, a versão PDF da sentença foi tomada desta página: www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2017/05/sentenca_hashtag_4.mai_.2017.pdf

A caçada “antiterrorista”

Desde maio de 2016, os golpistas começaram a difundir boatos sobre um futuro “ataque terrorista” nos Jogos Olímpicos. Em 06/05/2016, o FBI enviou diretamente à PF brasileira via embaixada nove nomes de possíveis aliados do Estado Islâmico, que a PF passou a investigar. Os policiais não pediram permissão ao judiciário para infiltrar-se no grupo, o que é obrigatório. Veja:
http://www.sul21.com.br/jornal/operacao-hashtag-um-fiasco-olimpico/

No 15/06, a polícia simulou ter recebido uma denúncia anônima com vários nomes, dos quais CINCO coincidiam com suspeitos que já estavam na lista dos EUA. A coincidência entre duas fontes aparentemente “independentes” chamou muito a atenção. A defensora pública denunciou que a polícia tinha disfarçado de denúncia anônima o que em realidade era o relatório de um policial infiltrado ilegalmente.

Além disso, foi reconhecida pela rede Globo a existência de um jornalista free lancer que se infiltrou entre os “terroristas”, segundo ele (e a rede) para fazer uma matéria.

A suspeita de que os diversos infiltrados fossem agentes provocadores, plantados pela Hashtag com a finalidade de induzir discussões que comprometessem os jovens FICOU TOTALMENTE ÓBVIA.

Apesar disso, o juiz se recusou a anular as falsas provas fornecidas pelo dito “anônimo”.

Os detentos

As prisões foram feitas em diversos estados do país, e os presos atendiam a um perfil bastante homogêneo:

1) Todos eram do sexo masculino, tendo entre 18 e 36 anos, e foram presos em estados tão distantes como Paraíba e Mato Grosso, sugerindo assim que a “rede terrorista” era muito ampla (!).

2) Todos pertenciam a famílias de classe média baixa ou pobre. Dos oito condenados, SETE não podiam pagar advogado particular. O único que teve defensora própria foi um deles cuja mãe era advogada.

A defensora pública fez um grande trabalho, porém, é bem sabido que o judiciário costuma desprezar os advogados gratuitos.

3) Todos (até um com sobrenome arabizado) são convertidos ao Islã, uma “coincidência” planejada com esperteza pela polícia. Com efeito, isso cria a imagem de que realmente são terroristas, e assusta a população, mostrando que “os terroristas capturam nossos filhos e os afastam da verdadeira fé”.

O prisioneiro assassinado

Um dos presos em alguma das caçadas da Hashtag foi Valdir Pereira da Rocha, de 36 anos, que foi solto por ser considerado inocente. Não obstante, ele foi recapturado em seguida, sem que se tivesse produzido um fato novo, e conduzido a uma prisão de Cuiabá no 14/10/16.

Dentro dessa prisão, supõe-se que foi linchado por outros presos, que o teriam castigado por ser um terrorista, que são pessoas que matam inocentes, segundo explicou um delegado da região.
http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2016/10/suspeito-de-terrorismo-e-espancado-e-morto-em-cadeia-de-cidade-de-mt.html

O fato mais curioso é que a notícia sobre sua morte não foi divulgada pela polícia, mas pela Secretaria (Federal) de Direitos Humanos. Aliás, a notícia dada por esta secretaria foi tão errática que até confundiu os jornalistas. No começo, a secretaria disse que ele tinha morrido (pelo jeito “morrido totalmente”), mas, depois retificou, dizendo que tinha sofrido morte cerebral.

A estranha participação da SDH neste fato tipicamente policial parece confirmar uma previsão que sugeri (timidamente) num artigo em Congresso em Foco. Eu insinuei que uma equipe de DH tão longe do padrão humanitário poderia ter a finalidade de encobrir ações contra os direitos humanos do próprio governo. Isto acontece em vários países, como Turquia, Israel, Sudão, e outros.
http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/secretaria-dos-direitos-humanos-lutar-desde-dentro/

Por sinal, é bom saber que o grupo delinquencial hegemônico nessa prisão é o PCC, que, segundo numerosas notícias, estaria próximo de alguns membros do governo (ou ex-membros). O que não está claro é qual foi o motivo desta queima de arquivo. Isto, porém, não parece estar relacionado com as condenações dos outros presos.



Os “crimes”

Todos nós somos conhecedores de abusos esdrúxulos do judiciário, que já foram comentados por numerosos órgãos estrangeiros (The Guardian, Liberation, Spiegel, Los Angeles Times, El País etc.), mas este excede muito a média. Absolutamente TODO (100%) o argumento do juiz se baseia nisto:

Os objetos puramente virtuais (mensagens, fotos de celular, diálogos etc.) são considerados reais, como se fossem revólveres, venenos ou bombas. A partir daí, qualquer coisa que os “terroristas” falam é qualificada como se fosse um verdadeiro planejamento e até um crime consumado.

Os diálogos disfarçados de prova NÃO FORAM PERICIADOS, mas, apesar da impugnação da defensora, o juiz não aceitou sua anulação e considerou sem importância o “detalhe”.

Os sete réus que não tinham advogado (só um tinha advogado particular, sua própria mãe) foram interrogados pela polícia sem a presença de um defensor. O juiz, com um argumento incrível, disse que isso não era obrigatório, e que “se sabia” que o interrogatório foi bem feito.

O próprio juiz reconhece que não houve TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO.

Cerca de 40 pessoas prestaram declaração como TESTEMUNHAS DA DEFESA, e seus nomes estão elencados na sentença. Porém, o juiz diz que nada disso foi útil, e não inclui os textos dos eventos de interrogação em sua sentença. Sequer fica claro quantas das testemunhas foram dispensadas.

O juiz trata como se fosse uma séria ameaça, uma conversa caótica de um dos jovens que sugeria “envenenar as águas de RJ”. O juiz deveria saber que envenenar águas é um fato tecnicamente dificílimo, que exige uma forte logística que só têm exércitos profissionais. O delírio desses jovens é totalmente sem sentido.

Desde 1855, quando foi a primeira tentativa de um exército de envenenar um açude, houve mais de 1500 casos, e quase nenhum deu certo. Algo como 8% dos exércitos bem equipados que tentaram estes fatos conseguiram um número de vítimas menor que teriam obtido colocando uma bomba. Mesmo a ditadura argentina recuou, em 1982, do projeto de envenenar as águas potáveis das Ilhas Falkland/Malvinas.

Aceitar que essa bravata hiperdistrófica de jovens possivelmente hebefrênicos seja o planejamento de um crime mostra uma falência mental, moral e profissional absoluta de parte dos operadores jurídicos do país.

Você pode ler este texto muito preciso sobre o terrorismo hídrico de um excelente especialista: http://www2.pacinst.org/reports/water_terrorism.pdf

Outra das “provas” é um texto onde um dos réus passa uma fórmula para fabricar pólvora. Esta afirmação pode parecer uma ironia minha contra o juiz, porém, juro que desta vez não é. Sugiro aos que duvidam, que consultem a página 44 da sentença. O juiz apresenta com muito orgulho a “receita de pólvora” (a mesma que você usava quando era criança para fazer rojões) como prova da mentalidade terrorista dos rapazes.

Entre os objetos apreendidos aos “terroristas” o juiz elenca celulares e notebooks, mas não diz que em algum deles tivesse sido instalado qualquer dispositivo de explosão a distância ou qualquer coisa que pudesse ser considerada um instrumento de terror. Tampouco menciona software destinado à interceptação ou a construir scripts de negação de serviço.

Não foi apreendida nenhuma arma, nem mesmo facas, nem produto químico de qualquer natureza.

Um fato que talvez não mereça comentário, mas que me impressionou muito é que o juiz admite que considera as “intenções” dos réus como “prova” de planejar atos que sequer foram consumados. Será que ele usou o polígrafo da CIA? Mas esta engenhoca não consegue ainda revelar as intenções de maneira completa.

Inicialmente, os detentos foram indiciados por formação de quadrilha e por corrupção de menores. Por quê? Pois porque dois dos jovens que se comunicavam pelas redes sociais e não se conheciam pessoalmente eram “menores de idade”. Ninguém se conhecia pessoalmente. Assim sendo a corrupção dos menores deve ter sido complicada.

O juiz disse que um dos réus tentou comprar um AK-47 em Paraguai, mas, após confusos comentários, parece que a tal compra não se fez. Com certeza, se ele não comprou, não seria pela grande dificuldade para subornar a polícia de fronteira. O mais provável é que tenha desistido. Na lógica draculesca do judiciário nem o arrependimento antes do crime possui qualquer valor. O crime mesmo é o que o juiz acha que o réu pensa.

Este dado sobre a arma, embora irrelevante, merece ser analisado à luz de uma foto (que não aparece na sentença), em que um dos jovens é fotografado portando uma “arma”. Antes que pudesse ser divulgada de maneira mais ampla, alguém “descobriu” que a tal arma era um brinquedo de pinball. Não encontrei nenhuma cópia dessa foto, de modo que não assumo responsabilidade por esta narrativa.

O uso exclusivo de elementos virtuais não materializados é um perigoso método de criminalizar a opinião, seja falada, escrita ou registrada digitalmente. Apesar de extrema iniquidade da lei 13.260, o artigo (4), que punia a propaganda do terrorismo, foi VETADO. O máximo delito de que podem ser acusados estes jovens é de apologia do crime. Mas, o artigo 287 do CP estabelece uma pena entre TRÊS E SEIS MESES.

Cabe mencionar que, quando os “terroristas” foram presos, o mesmo juiz que fez a sentença havia dito que não havia suficientes indícios de que fossem culpáveis.

Os objetivos (sem aspas!)

Pode parecer ingênuo indicar objetivos que são óbvios, mas vamos incorrer numa redundância. Em ordem de prioridade, os objetivos dos promotores deste show devem ter sido, pelo menos, estes:

1. Preparar o caminho para um processo de intimidação e repressão geral, que permita criminalizar qualquer protesto social. A Lei 13.260 é um típico modelo de lei fascista, como a Lei Patriota de Bush. Manipulando-a como fez este soturno juiz, qualquer um pode ser condenado por qualquer motivo. Eu não me surpreenderia se este artigo meu fosse qualificado de propaganda terrorista ou ainda de preparação terrorista. Em meu caso, talvez eu não teria tempo de completar uma pena de 15 anos. O juiz ficaria desapontado.

2. Mostrar subserviência aos países atualmente mais à direita da OTAN, e aos grupos financeiros internacionais, que se sentem mais seguros com governos extremamente cruéis. Isto explica o investimento estrangeiro, por exemplo, nos Emirados Árabes e na China.

3. Porém, para as elites nem tudo é dinheiro. Poder e ódio são também importantes. Atos como o deste juiz reforçam o tradicional racismo brasileiro, adicionando mais um elemento: ISLAMOFOBIA. Mas este é um assunto que merece um artigo especial.

Conclusão

Qualquer pessoa pode compreender de imediato, que estes condenados não tinham nada a ver com nenhum atentado terrorista, ou, pelo menos, era absolutamente impraticável fantasioso no caso das Olimpíadas.

Sem dúvida, são jovens exaltados, que aprenderam algo de árabe, assim como há 30 anos as pessoas que se indignavam contra o atual sistema social aprendiam russo e viajavam, por exemplo, à URSS. É natural que a perseguição policial, racial e religiosa, induza muitos jovens a aderir a doutrinas ou religiões que lhes dão acolhimento. Isso acontece em países “quase” tão civilizados como o Brasil, por exemplo, o Reino Unido ou a França.

Assim como pessoas mais moderadas se aproximam de setores religiosos mais tradicionais no Ocidente, as pessoas mais exaltadas ou menos reflexivas idealizam sua aproximação a grupos violentos. No entanto, é óbvio que estes jovens não estiveram em contato com nenhum xeque estrangeiro, e não há nenhum indício de que alguém tenha viajado a qualquer lugar onde eles têm suas bases.

Os inúmeros recortes (mais de 100) apresentados pelo juiz como provas, só mostram que:

1) estas pessoas defendem e admiram o Estado Islâmico. Que o juiz, eu e muitíssimos outros achemos isso errado e repulsivo é um direito nosso. Que eles tenham suas preferências é coisa deles. Se alguém pode jurar obediência a Estados militarizados, cujo objetivo é subjugar outros povos e promover chacinas, por que não pode jurar obediência a um Estado inexistente, que está (ou simula estar) a 10.000km de distância?

2) Todos os diálogos e reuniões noticiados foram em grupos que o próprio juiz descreve como fechados. A apologia do crime é uma atividade que requer estado público.

3) Não sabemos se esses jovens falam seriamente ou tiram “sarro”, mas isso não importa. Para planejarem um crime, precisam que o crime planejado não seja impossível. Envenenar Rio de Janeiro ou explodir qualquer coisa com um rojão caseiro são crimes impossíveis, tão impossíveis como congelar água num forno.

4) Não há um mínimo fato concreto que possa ser qualificado de preparação ou execução de ato terrorista. Quanto à intenção dos supostos terroristas, só Deus (ou Alá) sabe.

As pessoas que hoje se manifestam indiferentes às extremas violações ao nossa nanoscópica dose de direito que ainda fica no Brasil, deveriam pensar que alguns de seus afetos podem ser atingidos. Morrer de fome, de doenças e chegar aos 90 anos sem moradia, nem aposentadoria, nem convênio médico pode acontecer com qualquer um, MUÇULMANO ou não. Os únicos que se salvam do massacre destas máfias perversas são os que possuem fortuna pessoal. Isto não passa de 5% da população.

Se a gente dá de ombros ante psicopatas e sádicos, sejam vestidos de toga, de farda ou de terno, não teremos direito moral de nos queixarmos quando fiquemos reduzidos (se tivermos sorte) a uma Somália ou a um Darfur.


Carlos Lungarzo é ativista argentino dos Direitos Humanos e reside no Brasil.

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