Correio da Cidadania

Quatro critérios para definir se uma mobilização é progressiva ou reacionária

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Caiu, ainda que temporariamente, Renan Calheiros. O presidente do Senado, que apoiou tanto os governos FHC do PSDB quanto os de Lula e Dilma Rousseff, foi afastado do cargo por decisão de Marco Aurélio Mello, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). A decisão tinha sido preparada a partir do mesmo STF que o considerou réu em processo em que é acusado de peculato, ou seja, desvio de dinheiro público. Neste caso, para fins próprios, o pagamento de uma pensão.

 

O cai-não-cai de Renan pode aumentar ainda mais a confusão política entre o ativismo de esquerda sobre o sentido dos atos de domingo. Convocadas pelo Vem para a rua e o MBL, aconteceram mobilizações de massas em centenas de cidades brasileiras contra a corrupção, em apoio à Lava Jato, contra os presidentes da Câmara de Deputados e do Senado, Rodrigo Maia e, especialmente, Renan Calheiros, em apoio ao juiz Sergio Moro. Será que foram progressivos? Afinal, não ajudaram a derrubar Renan?

 

Esse é o tema deste artigo.

 

Para começar, vejamos o que aconteceu. Os dirigentes das organizações que convocaram os atos, Vem para a ruaMBL, deixaram claro que não têm razões para atacar a presidência de Temer. Embora todas as informações de pesquisas disponíveis indiquem que, ao final de seis meses no poder, Temer tem pouco apoio; 13% consideram que tem um bom desempenho, segundo o IBOPE; 39% avaliam como ruim ou péssimo; 36% como regular –ele e os seus ministros puderam ir dormir aliviados porque, por enquanto, foram poupados.

 

Os atos contaram com uma convocação disfarçada de cobertura jornalística da TV Globo, como veio acontecendo nos últimos dois anos. Uniram-se nas ruas os que apoiam a PEC 55 do teto de gastos com os que defendem a necessidade de uma intervenção militar. Mas o que prevaleceu foi o ódio ao Congresso Nacional e o apoio à Lava Jato. Foram, portanto, tão reacionárias quanto as precedentes.

 

Ainda que em escala muito menor, os atos de ontem foram uma sequência das mobilizações que alteraram, desfavoravelmente, para os trabalhadores, a relação social de forças a partir de março de 2015, culminando em março deste ano de 2016, quando superaram os dois milhões nas ruas. Elas mudaram, também, a relação política de forças. Sem estas mobilizações o impeachment de Dilma Rousseff não teria sido possível. Não restam dúvidas de que no primeiro semestre de 2016 foram imensas. Serem grandes significa que lograram entusiasmar milhões, mas não prova nada, absolutamente, sobre o seu sentido. Porque nem todas as mobilizações que são massivas são progressivas.

 

Temos argumentado que elas não são herdeiras da irrupção de protesto popular que explodiu nas jornadas de junho de 2013. Embora já estivesse presente em junho de 2013 um embrião perigoso e reacionário do que depois se agigantou, ganhou impulso próprio e direção mais clara a partir, sobretudo, da eclosão da operação Lava Jato em 2014. Temos defendido, também, que, à luz do que se passou no país nos últimos três anos, devemos concluir que junho de 2013 foi, inapelavelmente, derrotado.

 

As mobilizações deste 4 de dezembro não têm nada em comum, tampouco, com as mobilizações pelo Fora Collor, em 1992, ou as Diretas já, em 1984. Por que? Quais devem ser os critérios para definir se uma mobilização social é progressiva ou reacionária? Sugerimos quatro critérios:

 

a) O primeiro critério deve avaliar as mobilizações pelas tarefas que elas se colocam, ou seja, o conteúdo histórico-social do programa que motiva a mobilização. Desde o final de 2014 o sentido destes atos foi, diretamente, a luta pelo poder. Os seus organizadores pretendiam abrir o caminho para a posse de um governo comprometido com um plano de choque de emergência liberal rigoroso. Exigiam, em consequência, a derrubada do governo de coalizão Dilma Rousseff, que foi identificado como o responsável pela corrupção na Petrobrás. Exigiam a prisão dos dirigentes do PT e, em primeiro lugar, de Lula. A operação Lava Jato alimentou as manifestações com o combustível inflamável necessário, e a mídia se transformou na caixa de ressonância do tambor da luta contra a corrupção para legitimar o impeachment.

 

b) O segundo critério é pelo sujeito social, ou seja, pelas classes e frações de classe, ou melhor, pelo bloco de classes que se mobilizaram e uniram para realizá-las. Não parece controverso, consideradas os dados das pesquisas já disponíveis em ocasiões anteriores, afirmar que foram, essencialmente, manifestações de camadas da classe média, muito concentradas, sobretudo, no sudeste e sul do Brasil, ainda que avolumadas por trabalhadores e setores populares semiproletários; tampouco há muitas dúvidas de que foram manifestações de uma maioria de meia idade, com escolaridade em torno do dobro da média nacional, de uma maioria de brancos, e com um peso social de proprietários que é três vezes maior do que sua expressão no conjunto da população. A mobilização das camadas médias em torno a um programa reacionário, como o que as levou às ruas desde março de 2015, é algo que não se via desde o final da ditadura.

 

c) O terceiro critério deve ser uma avaliação da direção política das manifestações, o sujeito político. A direção das manifestações foram o MBL, Vem para a rua e Revoltados online, organizações, até então, quase invisíveis, mas muito bem financiadas por grandes empresas nacionais e norte-americanas, e inspiradas pela importância que as redes sociais demonstraram alcançar desde junho de 2013. Elas não podem ser caracterizadas senão como instrumentos burgueses de agitação e propaganda. Importante destacar a presença de uma extrema-direita ultrarreacionária à frente, em especial do MBL e do Revoltados online.

 

d) O último critério são os resultados. Quais foram as suas consequências? O principal resultado delas foi a derrubada do governo Dilma Rousseff, abrindo o caminho para a posse de Michel Temer com apoio de uma maioria no Congresso Nacional que garantiu, até agora, a votação da PEC do teto dos gastos. Um governo que promete a aprovação de uma reforma da Previdência Social que é um ataque sem precedentes aos direitos conquistados nos anos 80: idade mínima de 65 anos, indiferenciadamente, para homens e mulheres; desvinculação do piso dos benefícios de prestação continuada do salário mínimo; 50 anos de contribuição para ter o direito a aposentadoria integral, aumento de 15 para 25 anos de contribuição para aposentadoria proporcional, e por aí vai.

 

Mais uma vez ficou demonstrado que a luta contra a corrupção, uma bandeira democrática radical, só é progressiva quando os setores médios são arrastados pela força social de choque dos trabalhadores. Quando ocorre o contrário, e a direção do processo é burguesa, os resultados são reacionários.

 

A esquerda socialista, ou seja, aquelas organizações que se posicionaram como oposição de esquerda aos governos de coalizão com o PMDB liderados pelo PT, compartilha entre si uma posição de denúncia intransigente do governo Temer e a destruição de direitos que ele tenta implementar, e a denúncia contra a corrupção, inclusive, a corrupção realizada por lideranças do PT.

 

Mas estamos divididos sobre o tema do papel da Lava Jato e, portanto, sobre o significado do impeachment de Dilma Rousseff.

 

Existem dois campos na esquerda anticapitalista. De um lado estão aqueles que, como nós, consideramos que a Lava Jato está sendo apoiada, desde o início, por uma fração da classe dominante. Uma fração mais articulada com um projeto internacional, sobretudo, do imperialismo norte-americano. Um projeto vertebrado depois da explosão dos escândalos que se seguiram à crise de 2008, e as sequelas da desregulação que favoreceu o agigantamento dos paraísos fiscais. Uma nova política de padronização de investigações do mercado financeiro internacional. Política esta que responde a uma estratégia de limitação à movimentação de capitais de origem obscura, sobretudo, da China e Rússia, mas que atinge, também, o Brasil e outros países da periferia.

 

Uma política que explica a emergência da aprovação, nos primeiros meses de governo Temer, de uma anistia para a repatriação de mais de R$150 milhões de depósitos, até então, ocultos no exterior. Tudo isso porque pretendem deslocar, ou pelo menos, reduzir o papel de algumas grandes corporações que acumularam capital rápido e, ilegalmente, através de relações corruptas com o Estado. E, em consequência, quando as camadas médias saíram às ruas, se posicionaram pela derrubada do governo do PT.

 

As contradições entre frações burguesas existiram, desde o início da Lava Jato, e permanecem. Mas elas não refletem a autonomia do núcleo de promotores de Curitiba ou do juiz Sergio Moro em relação à classe dominante. Elas expressaram e ainda traduzem a contradição entre a necessidade de aplicação do ajuste fiscal liberal, e a instabilidade política que a Lava Jato produziu, até agora, e que vai ficar ainda maior com a delação premiada da Odebrecht.

 

Concluímos que o impeachment foi uma solução reacionária, e era necessário apoiar as mobilizações contra esta manobra jurídico-parlamentar: a forma que assumem os “golpes constitucionais”, como já tinha acontecido no Paraguai. Defendíamos que lutar contra o impeachment não era o mesmo que apoiar o governo Dilma. Que era necessário ser contra o impeachment e denunciar, ao mesmo tempo, que a estratégia do governo Dilma de assumir o programa de ajuste liberal depois das eleições de 2014 fazia do PT o principal responsável pela ofensiva reacionária que, finalmente, derrubou o seu próprio governo.

 

Do outro lado estão aqueles que percebem a Operação Lava Jato como uma iniciativa que expressa uma crise institucional do regime de dominação. Alguns até apoiam a Lava Jato, a maioria não. Alguns até se animam a convocar a ida aos atos embriagados de nacionalismo “verde-amarelo” contra a corrupção, a maioria não. Mas identificam uma relativa autonomia do Ministério Público e parcelas do Judiciário, sobretudo, na primeira instância, mais permeáveis à pressão da fúria da classe média e do ódio da classe trabalhadora contra a corrupção, incendiados pelo mal estar social que cresce desde junho de 2013, pelo desemprego galopante e o arrocho salarial. Desconsideram que o deslocamento da influência do PT na classe operária não tenha sido realizado pelo fortalecimento da esquerda anticapitalista. Não se impressionam com a ausência de mobilização política da classe operária.

 

Não se abalam pela dificuldade de resistência dos trabalhadores aos ataques frontais do governo Temer. Valorizam os choques entre o Congresso e o Judiciário, e não enxergam elementos de bonapartismo na ofensiva burguesa relançada após a queda de Dilma. Diminuem o significado da vitória eleitoral dos partidos que fazem parte da base política de apoio de Temer no Congresso Nacional. Secundarizam, quando não ignoram, o aumento da influência da extrema-direita entre os trabalhadores, ainda que minoritária, mas com uma audiência que inexistia há poucos anos trás.

 

Em consequência, avaliam como progressivas as mobilizações contra a corrupção, mesmo sendo uma fração burguesa quem lidera o protagonismo da classe média que arrasta a simpatia dos trabalhadores e do povo.

 

Ponderam que existem condições, em algum grau, para disputar a evolução das camadas médias em radicalização. Opõem-se à conclusão de que ocorreu uma derrota político-social importante no Brasil, que não foi somente uma derrota do PT. Resistem à avaliação de que aconteceu uma inflexão desfavorável da relação social de forças. Ao contrário, apostam que o impacto da profundidade da crise econômica, e a radicalização das camadas médias podem criar obstáculos para a continuidade dos planos de ajuste como a reforma da previdência.

 

Resta saber qual das duas posições está passando a prova da história. Dessa avaliação dependerá, em grande medida, o futuro do processo de reorganização aberto pelo fim do ciclo de hegemonia do petismo/lulismo. Infelizmente, aqueles que perderem a bússola de classe naufragarão.

 

 

Valério Arcary é professor aposentado IFSP.

 

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