Correio da Cidadania

Para indígenas, há outros envolvidos no assassinato de Bruno e Dom

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Imagem: Reprodução

O indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram mortos à queima-roupa e seus corpos esquartejados, incendiados e enterrados em uma área nas proximidades da comunidade São Rafael, quase no limite da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte, no Amazonas. Duas fontes, uma da Polícia Federal e um indígena, confirmaram o assassinato à reportagem da Amazônia Real e disseram que agentes passaram a tarde no local onde estavam os corpos da vítimas dos assassinatos acompanhados de Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado. O pescador confessou o crime nesta terça-feira (14), mas seu irmão, Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos, preso na segunda-feira, ainda nega envolvimento.

O crime ocorreu mesmo na manhã do domingo de 5 de junho, logo após Bruno e Dom terem passado pela comunidade São Rafael. Conforme apuração da reportagem, Pelado confessou o crime e apontou onde enterrou os corpos, descritos pela Polícia Federal como “remanescentes humanos” em entrevista coletiva realizada na noite de quarta-feira (15), na sede da Superintendência da Polícia Federal do Amazonas, em Manaus. Embora o estado em que os corpos foram encontrados não tenha sido mencionado na entrevista, fontes da Amazônia Real disseram que eles foram esquartejados e queimados. O brutal assassinato foi em represália às denúncias de que os ribeirinhos estavam invadindo a Terra Indigena (TI) Vale do Javari, no Amazonas, para pescar ilegalmente pirarucu e tracajás (quelôneos da Amazônia).

Na coletiva, o superintendente da PF no Amazonas, Eduardo Alexandre Fontes, disse que os “remanescentes humanos” de Bruno e Dom foram encontrados a 3 km de distância onde estavam pertences dos dois, tais como mochila e chinelos. A embarcação onde Bruno e Dom viajavam foi afundada pelos criminosos também foi encontrada, mas ainda será retirada do fundo do rio. “A Polícia Federal atua após a pratica do crime, houve de fato um crime, há materialidade, estamos agora na fase de desvendar todos os autores desse evento criminoso e as circunstâncias e a real motivação desse delito”, afirmou Fontes.

Conforme Fontes, as mortes foram por “arma de fogo”, mas o delegado não deu mais detalhes sobre a circunstância do assassinato. “Ele (Amarildo) alega que foi um embate. A princípio, alega que foi disparo de arma de fogo, mas temos que aguardar a perícia realmente para ela dizer, identificar qual foi a causa da morte, as circunstâncias e a motivação aliada ao que nós temos produzido e vamos produzir”, disse o superintendente.

Indígenas garantem: assassinato tem outros cúmplices

Indígenas ouvidos pela Amazônia Real já imaginavam que o jornalista britânico, colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro, licenciado da Fundação Nacional do Índio (Funai), estavam mortos, mas relataram estar perplexos pela forma como ocorreu o sumiço dos corpos.

A prisão e a confissão, entretanto, não são suficientes para as lideranças indígenas. Manoel Chorimpa, do povo Marubo, disse que há pelo menos mais uma ou duas pessoas envolvidas. “Não foram só eles, não”, afirmou, categórico. Paulo Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), cobrou continuidade das forças policiais na investigação para se chegar a outros criminosos. “Estamos pedindo para a Polícia Federal pegar outros envolvidos. Não foram só o Pelado e o Oseney”, afirmou.

Na investigação da PF, testemunhas afirmaram que os dois, Pelado e Dos Santos, teriam envolvimento com o narcotráfico que financia a pesca ilegal de pirarucu, um peixe ameaçado de extinção e cuja pesca no Amazonas só é permitida em áreas de manejo, unidades de conservação ou terras indígenas.

De acordo com Manoel Chorimpa, há três categorias de pescadores na região do Vale do Javari. Existe o pescador simples, que pesca para sobreviver, e é geralmente de Atalaia do Norte. Há ainda o pescador regularizado, credenciado e que atua mais nos rios Javari e Curuçá. E há aqueles financiados pelo narcotráfico que priorizam a pesca de pirarucu e tracajá. “Estes são financiados por pessoas de Benjamin (Constant) e Tabatinga. E do lado do Peru, tem os ‘israelitas’ (chamados localmente de ‘cabeludos’), que são agricultores envolvidos com o narcotráfico, mas que possuem comércio em Atalaia. (Na comunidade de) São Rafael, são pessoas de Benjamin também. Eles possuem motores potentes, fazem muita festa”, afirmou Chorimpa.

A Unijava (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) divulgou nota, após a confirmação da confissão do assassinato, lamentando o crime, prestando solidariedade às famílias e exigindo o prosseguimento das investigações. “Manifestamos nossa preocupação com a continuidade das investigações. Pelado e Dos Santos fazem parte de um grupo maior, nós sabemos”, afirma a nota da entidade indígena.

A Unijava lembra que, desde 2021, enviou uma série de ofícios com informações qualificadas ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e à Fundação Nacional do Índio sobre invasões na Terra Indígena Vale do Javari. “Nesses ofícios, indicamos a composição de uma quadrilha de pescadores e caçadores profissionais, vinculados a narcotraficantes, que ingressam ilegalmente em nosso território para extrair nossos recursos e vendê-los nos municípios vizinhos”, denuncia a nota, frisando que “o caso não acabou”.

Jornada em busca por justiça

Bruno e Dom foram mortos em uma área entre as comunidades São Rafael e Cachoeira, já na direção de Atalaia do Norte. Eles teriam sido encurralados em uma emboscada. Esta hipótese, publicada em primeira mão pela Amazônia Real, foi revelada em detalhes por uma fonte indígena que conhece as características da bacia do rio Javari e seus afluentes. Naquele dia, Bruno Pereira tinha intenção de levar para a PF provas de crimes praticados por pescadores ilegais, possivelmente financiados pelo narcotráfico, dentro da TI Vale do Javari, que vem sendo constantemente invadida.

A esposa de Dom Phillips, Alessandra Sampaio, disse em uma carta pública divulgada na noite de desta quarta, embora ainda seja preciso aguardar as confirmações, a localização dos restos mortais põe fim à angústia de não saber o paradeiro dos dois.

“Hoje se inicia também nossa jornada em busca por justiça. Espero que as investigações esgotem todas as possibilidades e tragam respostas definitivas, com todos os desdobramentos pertinentes, o mais rapidamente possível”, afirmou. “Só teremos paz quando as medidas necessárias forem tomadas para que tragédias como esta não se repitam jamais”, diz trecho da carta.

Morador da comunidade São Gabriel, Amarildo da Costa de Oliveira foi preso no dia 7 de junho por posse ilegal de armas de uso restrito e drogas. Testemunhas ouvidas pela PF disseram que ele foi visto em uma embarcação navegando próximo da lancha onde viajavam Bruno e Dom. No dia 4 de junho, indígenas da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) presenciaram ameaças feitas por um grupo de pescadores. Considerado suspeito, Oseney foi preso na terça-feira (14) e interrogado pela PF em Atalaia do Norte.

A primeira fonte indígena ouvida pela Amazônia Real já temia que Dom e Bruno tivessem sido mortos, chegando a indicar que suspeitava da “pior das hipóteses”. Essa suspeita acabou se espraiando por mais pessoas envolvidas nas buscas dos desaparecidos. Desde a semana passada, começaram a circular em Atalaia do Norte (AM) rumores sobre o crime praticado pelos irmãos “Pelado” e “Dos Santos”. Por se tratar de uma área de rios sinuosos, que se ramificam em igapós e igarapés, o temor de que tivesse havido uma ocultação de cadáver difícil de ser localizada só crescia após cada dia de buscas.

Os indígenas da EVU e de outras etnias conhecem bem a região onde aconteceu a emboscada, que fica fora dos limites da TI Vale do Javari, e desde os primeiros momentos se prontificaram a auxiliar na busca de alguma prova junto das autoridades policiais. Foi com a ajuda deles que foram encontrados pertences no domingo (12), uma semana após o desaparecimento de Dom e Bruno. Entre o material recolhido, submerso no rio, estavam roupas da dupla e a carteira de saúde de Bruno.

Comoção no Vale do Javari

Nos minutos finais antes de serem mortos, Bruno e Dom seguiram sozinhos em um barco de motor 40 HP até a comunidade São Rafael, no rio Itacoaí, para se encontrar com o ribeirinho Manoel Vitor Sabino da Costa, conhecido como Churrasco. Ele é tio de Pelado e chegou a ser detido pela Polícia no último dia 7, sendo liberado algumas horas depois. Segundo Eliésio Marubo, advogado da Univaja, a reunião já estava marcada. Em entrevista à Amazônia Real, Churrasco negou que houvesse combinado reunião com Bruno Pereira.

Em São Rafael, Bruno tomou uma xícara de Nescau oferecida pela esposa de Churrasco, Alzenira Gomes, antes de retomar a viagem. Ele e Dom Phillips retornariam à sede de Atalaia do Norte com o objetivo de divulgar denúncias de invasões e pesca e caça ilegal coletadas por Bruno durante trabalho de vigilância e fiscalização da EVU, uma rede de monitoramento que começou a atuar em 2021 e recebia capacitação do indigenista. Desde que saiu da Funai, Bruno Pereira se prontificou a ajudar a Univaja a treinar os indígenas para combaterem os crimes ambientais na região.

Segundo apurou a Amazônia Real, Bruno havia marcado com Churrasco às 6 horas do dia 5 de junho. Com a informação prévia da visita, os criminosos teriam se armado e preparado para atacar Bruno Pereira em uma área estreita de um dos furos (atalhos) à margem do rio Itacoaí. Acuado e encurralado, Bruno não conseguiu fugir dos atacantes e levou um tiro. Dom teria sido morto por ter sido testemunha.

Desde o desaparecimento dos dois, a Univaja e centenas de indígenas da TI Vale do Javari se mobilizaram para as buscas de Bruno e Dom. Com o passar dos dias, as esperanças de encontrá-los vivos ia diminuindo. “Queremos encontrar pelo menos os corpos”, relatou uma liderança à Amazônia Real.

Depois da demora do Estado brasileiro para agir, criticada até pela ONU, as forças de segurança e policiais chegaram a Atalaia do Norte, um município com estrutura precária, com poucas ruas asfaltadas, acesso à internet e telefonia deficiente, e uma população de pouco mais de 20 mil pessoas. Na prática, o protagonismo das buscas se concentrou entre os indígenas, profundos conhecedores da floresta e dos rios da região do rio Javari e afluentes.

As mortes de Bruno e Dom causaram comoção sem precedentes entre os indígenas do Vale do Javari, com repercussões no resto do Brasil e do mundo. No domingo, várias lideranças indígenas, entre caciques históricos, como Eduardo Dyamin Kanamari, da aldeia Massapê, no rio Itacoaí, saíram de suas aldeias até a sede de Atalaia do Norte, onde fizeram um protesto e homenagearam o jornalista e o indigenista. Na segunda-feira (13), integraram-se às equipes de busca que já estavam atuando desde a notícia do sumiço.

A liderança Manoel Chorimpa lamentou entristecido a morte do amigo. “O Bruno se sacrificou servindo de escudo dos povos indígenas do Vale do Javari, sobretudo na defesa dos povos isolados e dos recursos ambientais”, disse à Amazônia Real.

Na nota divulgada após a coletiva, a Univaja, além de prestar solidariedade às famílias de Bruno e Dom, a quem a organização chama de parceiros, também agradeceu à Polícia Militar, destacou o papel dos indígenas nas buscas e disse que as mortes foram um crime político. “Fomos os primeiros a percorrer o rio Itaquaí ainda no domingo, primeiro dia do desaparecimento dos dois. Desde então, a única instância que esteve ao nosso lado como parceira nas buscas foram os policiais militares do 8º Batalhão em Tabatinga (AM). Fomos nós, indígenas, através da EVU, que encontramos a área que, posteriormente, passou a ser alvo das investigações por parte de outras instâncias, como a Polícia Federal, o Exército, a Marinha, o Corpo de Bombeiros”.


Elaíze Farias e Alícia Lobato são jornalistas em Manaus/AM.

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