Correio da Cidadania

Remoçãozinha de Carboninho (1): até quando continuaremos desviando do foco?

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Foto: MarcelClemens / Shutterstock.com

Duas notícias correram o mundo em setembro passado: a divulgação de uma usina, em funcionamento na Islândia, capaz de remover dióxido de carbono diretamente da atmosfera e "transformá-lo em rocha" e a publicação de uma pesquisa em que vacas, treinadas para "usar o banheiro", poderiam contribuir com a redução das emissões de óxido nitroso.

"Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem".

Mas existe um "pequeno" problema(ou seria grande?): a escala.

Em dois artigos, vamos comentar um pouco sobre essas duas notícias... e um pouco mais. Este é o primeiro deles, o segundo será publicado na semana que vem.

A pulga e a montanha

A usina de mineralização de CO2, como divulgou a imprensa internacional em matéria do periódico britânico "The Guardian", entrou em funcionamento e foi amplamente destacado que se tratava da maior usina do mundo em operação, a realizar remoção de dióxido de carbono diretamente da atmosfera.

Em quase toda a cobertura de imprensa, a tecnologia apareceu vendida como uma esperança para contribuir com a mitigação das mudanças climáticas e isso em si já traz um risco quando não se enfatiza, ao mesmo tempo, a necessária descarbonização dos sistemas energético, produtivo e alimentar. Mais do que isso, embora todo e qualquer suporte tecnológico para conter o aquecimento global seja, a priori, bem vindo, sem contextualizar a dimensão dessa captura de carbono face as emissões, o "oba-oba" em torno desses "technofixes" (soluções tecnológicas) adquire o risco de se transformar em desinformação pura e simples. A indústria de combustíveis fósseis agradece.

No que diz respeito à mídia brasileira, para sermos justos, o site de "O Globo" até chegou a colocar os números da usina ORCA ao lado das emissões globais, mas não desenvolveu em cima dessa comparação, como deveria, e a matéria da Folha de São Paulo, por sua vez, mostrou os custos elevados, falou da necessidade de "tirar bilhões de toneladas anuais de dióxido de carbono da atmosfera" e chegou a mencionar críticas, mas também ficou a dever naquilo que deveria ser dito ao público.

Para quem não é familiar com a captura direta de carbono, a tecnologia é facilmente entendida: o ar é sugado para compartimentos com um filtro que captura o gás carbônico. Depois o dispositivo é selado e aquecido para liberá-lo e o ar enriquecido com CO2 é injetado em água, que é infiltrada na rocha onde ele é mineralizado na forma de carbonato. Mesmo sem entrar nos impactos ambientais, na energia consumida nesse processo e nos custos, ao nos perguntarmos quanto CO2 é capturado, constatamos o quão pífias são essas tecno-iniciativas no presente, sabendo que não podermos esperar genericamente por um futuro nos quais elas ganhem em escala, dada a urgência de enfrentamento inadiável da crise climática. A ORCA, a um custo indecente de uma libra esterlina por quilograma de CO2, tem capacidade de remover apenas 4 mil toneladas desse gás por ano.

Vamos aos números que importam. Uma única termelétrica a carvão, como a UTE Pecém, a maior em operação no Brasil até 2019, emite mais de 5 milhões de toneladas de CO2 por ano, ou seja, em menos de 7 horas de funcionamento ela já lançou todo o gás que a ORCA levaria um ano para capturar. Mas mesmo sendo de grande porte, essa usina está longe de estar entre as maiores do mundo. A maior unidade termelétrica do planeta, a Datang Tuotekuo, localizada na China, emite 30,69 milhões de toneladas de CO2 anualmente e, portanto, precisa de cerca de uma hora e quinze minutos para exceder a capacidade anual de captura de carbono da ORCA. Mas existem muitas termelétricas operando no planeta. Só na China, são 1082 movidas a carvão em operação. Fora as usinas a gás e derivados do petróleo. Fora os automóveis, aviões e navios (e neste caso basta lembrar que a ORCA captura o CO2 emitido por apenas 870 carros, enquanto a frota automobilística do planeta provavelmente ultrapassa 1 bilhão). Fora o uso de combustíveis fósseis pelas indústrias e a produção de cimento. Fora o desmatamento na Amazônia, florestas da Indonésia e restante do mundo....

A Climeworks, empresa responsável pela ORCA pretende construir uma usina similar, "dez vezes maior", "nos próximos anos", mas a essa altura do nosso texto, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso percebe como até mesmo 1000 usinas 10 vezes maiores seriam irrelevantes do ponto de vista da solução da crise climática, pois tudo isso resultaria na captura anual de meros 43 milhões de toneladas de CO2 (pouco mais do que emite a Datang Tuotekuo). Em 2019 foram emitidos 43 bilhões de toneladas de CO2, ou mil vezes mais.

Não, a solução definitivamente passa longe de instalarmos 10 milhões de usinas de remoção de CO2, mas por reduzir a demanda energética, promover a transição para renováveis, descarbonizar a indústria e o transporte e, obviamente, interromper imediatamente o desmatamento e revertê-lo, beneficiando-nos das incríveis usinas de captura de carbono chamadas... árvores, que funcionam com tecnologia aprovada há muitos milhões de anos.

Por mais que tecnologias de captura artificial de carbono possam em algum momento auxiliar-nos na gigantesca tarefa de evitar que o sistema climático terrestre ultrapasse limites de alto risco, as atenções precisam estar voltadas para manter o carbono onde está, ao invés de cair na armadilha, duplamente lucrativa para corporações capitalistas, de lançá-lo à atmosfera (ao queimar carvão, petróleo, gás ou florestas) para depois (fazer de conta que irá) retirá-lo de lá.


Alexandre Araujo Costa é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, professor titular da Universidade Estadual do Ceará.
Retirado do blog do autor.

 

 

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