Correio da Cidadania

Destruição da soberania brasileira e de 'agendas ambientais' nunca vista na história

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Entre as inúmeras declarações polêmicas do governo Bolsonaro na condução da agenda ambiental em seu primeiro mandato, “o que nos atingiu neste ano desastroso no trato do meio ambiente foi a incompetência e o firme propósito de tornar o Brasil um deserto, um campo farto para a exploração de riquezas minerais, da extração de madeiras nobres da floresta, para a produção de commodities agrícolas”, diz Telma Monteiro, colunista do Correio, em entrevista à IHU On-Line.

Na avaliação dela, o primeiro ano da gestão Bolsonaro indica que o governo não tem uma agenda ambiental e comete equívocos na área. Ao contrário, por meio do Ministério do Meio Ambiente, que atua deliberadamente, está em curso uma “destruição disfarçada de soberania”. “Ficou claro que a estratégia de Bolsonaro foi entregar o Ministério do Meio Ambiente para alguém com a competência e a incumbência de depreciá-lo, reduzir sua importância, promover o desmanche da sua estrutura institucional e transformá-lo numa espécie de sucata inoperante”, afirma, ao comentar a atuação do ministro Ricardo Salles.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Telma faz uma retrospectiva dos principais problemas ambientais do país em 2019 e comenta a proposta do governo de dar continuidade à construção de novas hidrelétricas na Amazônia, como as usinas de Bem Querer, em Roraima, Tabajara, em Rondônia, e São Luiz do Tapajós, no Pará.

“Construir hidrelétricas em regiões remotas da Amazônia tornou-se um grande negócio para empreiteiras e políticos corruptos. Os custos de implantar uma grande obra no meio do nada passaram a ser astronômicos e financiados pelo próprio governo; a fiscalização inexistente, o que facilitou aditivos. Acrescente-se a isso a construção de linhas de transmissão que cruzaram o Brasil, como as que saíram das usinas do rio Madeira e de Belo Monte”, adverte.


Telma Monteiro (Foto: Arquivo pessoal)

A agenda ambiental do governo Bolsonaro está sendo bastante criticada. Em que aspectos o governo está cometendo equívocos, na sua avaliação?

Telma Monteiro: Eu não chamaria de equívocos. Equívocos pressupõem erros involuntários, ou desacertos, ou lapso de visão de questões que surgem e que requerem procedimentos baseados na legislação, nesse caso, do meio ambiente. O governo Bolsonaro não está cometendo equívocos, ele está fazendo uma transformação proposital de todo o sistema ambiental brasileiro. Durante a campanha à presidência, Bolsonaro declarou que extinguiria o Ministério do Meio Ambiente (MMA). Gerou muita polêmica e medo entre os defensores do meio ambiente, ativistas, ONGs, cientistas, pesquisadores e professores. Extinguir o Ministério do Meio Ambiente seria uma espécie de “fim do mundo ambiental” brasileiro.

Eleito, Bolsonaro usou de uma tática predadora, mas que no primeiro momento acalmou as expectativas da sociedade: manteve o Ministério do Meio Ambiente e criou uma ansiedade coletiva sobre o futuro titular da pasta. Eliminar o ministério, objetivo anunciado durante a campanha, teria sido uma estratégia do “bode na sala”. Assim, quando o presidente declarou que não extinguiria mais o Ministério do Meio Ambiente, houve um alívio inicial, pois melhor ter um ministério do que não ter nenhum. Será? Diante da perplexidade dos ambientalistas, ele indicou o advogado Ricardo Salles para ser o ministro.

A mídia ferveu, os ambientalistas colapsaram, pois Ricardo Salles, sabidamente, é réu por improbidade administrativa por atos cometidos quando esteve à frente da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, durante o governo de Geraldo Alckmin (PSDB). E, para completar, é ligado umbilicalmente aos ruralistas.

Ele é a antítese do ministro de Meio Ambiente que o Brasil precisa para enfrentar tantos desafios como o de cumprir o Acordo de Paris. Faz contraponto ao movimento dos principais líderes mundiais preocupados com a pauta de redução das emissões de GEE (Gases de Efeito Estufa), para evitar que a temperatura global suba 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais.

Ricardo Salles é, sem dúvida, o homem certo para travar as agendas ambientais em curso e atrapalhar bem a imagem do Brasil no exterior. Seria esse o objetivo de Bolsonaro? Sim, basta relembrarmos os desdobramentos dessa escolha e suas consequências funestas, com tantos compromissos descumpridos e descasos com o meio ambiente. Sem contar os vexames de sua participação na COP25, em que fez um discurso ostensivo para exigir que os países desenvolvidos pagassem ao Brasil pela preservação da Amazônia. Foi em busca de dinheiro.

Há que se lembrar, também, que a reunião preparatória para a COP25 seria realizada no Brasil, na Bahia, e Salles a cancelou. Outro vexame internacional. Não satisfeito, arrematou que essa reunião só serviria para se fazer turismo na Bahia e comer acarajé. Bolsonaro não poderia ter feito uma escolha melhor para os seus propósitos de desmontar todas as conquistas feitas pelo Brasil e a sua longa trajetória como exemplo de preservação ambiental!

Brasil na COP25

Na COP25, o Brasil foi considerado um estranho no ninho, dadas as políticas ambientais adotadas pelo governo Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Ao falar na COP25, Salles afirmou que o Brasil estaria comprometido em combater as mudanças climáticas. Mentira facilmente constatada pelos países da cúpula. As imagens do mais recente conflito, dos brigadistas e as queimadas em Alter do Chão [Santarém], às vésperas da COP25, estampadas em todos os principais jornais do mundo, comprovaram isso.

Assim, respondendo à sua pergunta, configura-se que não houve equívocos na agenda ambiental de Bolsonaro, tendo em vista o histórico da atuação do ministro Salles. Ficou claro que a estratégia de Bolsonaro foi entregar o Ministério do Meio Ambiente para alguém com a competência e a incumbência de depreciá-lo, reduzir sua importância, promover o desmanche da sua estrutura institucional e transformá-lo numa espécie de sucata inoperante; incapaz de conduzir e dar continuidade aos compromissos internacionais, já assumidos pelos governos anteriores, de redução de emissões e diminuição do desmatamento da Amazônia, questões bastante complexas que requeriam um ministro apto, conhecedor da legislação ambiental e comprometido com o Brasil do século 21.

Sim, Bolsonaro planejou destruir a credibilidade da agenda ambiental do Brasil, líder mundial, exemplo internacional, até então, em questões que levaram décadas de ativismo para serem implementadas e consolidadas. Basta ver a liberação dos agrotóxicos em 2019, que até setembro chegou a 325. Marca histórica.

Populações tradicionais

Como se não bastasse, presenciamos fatos decorrentes da falta de agenda ambiental que colocaram em risco o meio ambiente e as populações tradicionais que dele sobrevivem. Estamos assistindo todos os dias aos ataques a indígenas nos estados do Norte e Nordeste brasileiro. Um verdadeiro genocídio está acontecendo. Parece normal o ataque aos indígenas; as pessoas já não se surpreendem e as emissoras de TV não dão o devido destaque. É a banalização da tragédia. Parece que estamos numa franca escalada para exterminar as populações originárias.

Quando foi que isso começou? Quando os eleitores de Bolsonaro o elegeram passaram um cheque em branco para matar indígenas, destruir o meio ambiente, violando a Constituição Federal. Por falar em direito dos povos originários, é bom lembrar aos brasileiros o que está na Constituição Federal, o Art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Bolsonaro está tentando fazer com que os indígenas sejam menos indígenas porque querem ter celular. As pessoas estão se revelando protegidas sob um guarda-chuva fascista de um presidente brasileiro que elogiou os EUA pelo extermínio de seus indígenas.

Destruição disfarçada de soberania

Nada nos havia preparado para a catástrofe de Ricardo Salles à frente do MMA e nem de Bolsonaro como presidente; o planejado não é executado, providências oficiais para minimizar os danos morais, sociais e ambientais que permearam a (não) gestão ambiental de 2019 e os desastres que pautaram o ano. Isto esteve claro, por exemplo, quando Bolsonaro atribuiu às ONGs os incêndios na Amazônia, que ele mesmo incentivou em seus discursos desvairados a proprietários de terras limitadas por áreas de floresta.

Na verdade, o que nos atingiu neste ano desastroso no trato do meio ambiente foi a incompetência e o firme propósito de tornar o Brasil um deserto, um campo farto para a exploração de riquezas minerais, da extração de madeiras nobres da floresta, para a produção de commodities agrícolas. Uma destruição disfarçada de soberania. A agenda ambiental do governo Bolsonaro não existe. No lugar dela o mundo assistiu às queimadas dos biomas, à destruição da biodiversidade importante para a sobrevivência dos povos da floresta e dos ribeirinhos, estes últimos os grandes entraves para a implantação de uma agenda fascista da economia liberal de Paulo Guedes.

Bolsonaro vai mais além, quando dá à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, espaço e um assessor, Ricardo Salles, para impor influência direta do agronegócio sobre o MMA.

Retrospectiva da catástrofe

Deixo aqui registrada uma retrospectiva desta catástrofe que tem sido a política ambiental do governo de Jair Bolsonaro e de seu boneco de ventríloquo, Ricardo Salles, um analfabeto em meio ambiente. Em maio deste ano Salles criou um imbróglio com a Noruega e a Alemanha, doadores do Fundo Amazônia (FA) há dez anos para combate ao desmatamento da Amazônia, ao afirmar que haveria irregularidades no uso, pelas ONGs, dos recursos do FA.

Não se constataram irregularidades nos projetos das ONGs. Ele não conseguiu provar a suspeita. Mesmo assim, o Comitê Orientador do Fundo Amazônia - Cofa, foi extinto por Ricardo Salles e, com isso, os mantenedores suspenderam a remessa de recursos em 2019, e o FA foi praticamente extinto. Sem os recursos do fundo foram paralisados os projetos de prevenção aos incêndios na floresta, com treinamento de brigadistas, compras de equipamentos e veículos, estratégias de detecção de fogo, programas com instituições de monitoramento via satélite.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), uma das instituições beneficiárias do FA, anunciou o aumento do desmatamento na Amazônia. Esse anúncio não agradou a Bolsonaro, que acabou por mandar demitir o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, considerado pela revista Nature um dos 10 cientistas mais influentes do mundo.

A “agenda ambiental” de Bolsonaro e Salles não permite um aumento do desmatamento. Os cálculos devem estar errados, segundo Bolsonaro. Como é possível um cientista de renome internacional, respeitado, se atrever a anunciar o aumento do desmatamento sem que o governo “confira” as contas?

Os desacertos foram se sucedendo ao longo do ano e aí veio o desastre de Brumadinho, quando a barragem de rejeitos da Vale se rompeu ceifando 270 vidas e destruindo a biodiversidade da região. Até hoje há 13 corpos não encontrados. A Vale não pagou as indenizações e as multas e as sanções dos órgãos do MMA não vieram. Bolsonaro e Salles passaram batidos por mais essa.

Incêndios na Amazônia

Depois tivemos os incêndios na Amazônia que recrudesceram de tal modo, incentivados por Bolsonaro e seus discursos. O ápice foi o incentivo aos proprietários de terras na região da BR 163 que se sentiram seguros apoiados pelo presidente, a ponto de criarem “o dia do fogo” que se propagou e se tornou incontrolável. O desmanche da estrutura do MMA, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama concorreu para que uma Amazônia em chamas se tornasse o inferno na Terra. As equipes do Ibama para o combate às queimadas estavam desmanteladas, e o território ardeu como jamais.

Não vimos um gesto sequer do governo no sentido de coibir o sacrilégio que ali se instaurara. Como se isso não fosse o suficiente, Bolsonaro rejeitou ajuda internacional, criando ainda uma saia justa com o presidente francês, Emmanuel Macron, que ofereceu recursos para ajudar no combate ao fogo da Amazônia. Bolsonaro, não satisfeito, dando seguimento à sua política arrasa quarteirão, culpou as ONGs pelas queimadas e vociferou que a Europa queria se apoderar da Amazônia. Foi uma verdadeira debacle de “agendas ambientais” nunca vista na história.

Vazamento de óleo

Dando continuidade ao desmanche, conselhos foram extintos, recursos cortados e um ministério à deriva pautou a política antiambiental de Salles e Bolsonaro. Chegamos, então, ao vazamento de petróleo nas praias do Nordeste que começou a aparecer no final de agosto. As praias mais lindas do Brasil se tornaram depósito de óleo cru (estimou-se em mais de quatro mil toneladas retiradas) cuja origem até hoje não se sabe.

Em situação vexaminosa, mais uma vez, com a Marinha dirigindo as investigações, sem a participação dos pesquisadores e das universidades, uma chanchada de notícias hilárias, como a acusação inicial de que a Venezuela teria despejado óleo no litoral brasileiro, ou que um navio Grego, o Bouboulina, havia vazado o óleo venezuelano que chegara à costa brasileira; e se não bastasse, nas buscas atropeladas pela incompetência, mais um navio, desta vez de bandeira liberiana, se tornou suspeito. O óleo continua aparecendo e ameaçando o Parque Nacional de Abrolhos e os recifes de corais; já há vestígios no Sudeste, mas até o momento nenhuma perspectiva de descobrir a origem foi apresentada.

A Marinha fez um último comunicado dando conta que as investigações não tinham sido conclusivas e que não identificaram a origem do vazamento.

Enquanto isso a população local de pescadores, das praias atingidas, num mutirão emocionante, sem equipamento de proteção, sem controle da contaminação que poderia causar o contato com o óleo, começou a limpeza, tentando evitar que o óleo chegasse à areia. Quase 60 dias se passaram do início do vazamento e o governo não se mexeu. Parecia alheio e feliz, creditando, para horror do mundo, o vazamento do óleo ao navio do Greenpeace.

Nem Bolsonaro e nem Salles mencionaram que havia um Plano Nacional de Contingência - PNC para situações de vazamento de petróleo no mar, concebido em 2013, e que estabelecia uma estrutura organizacional que deveria ser acionada pelo governo em caso de desastre. Mas foi desativado pelo próprio governo no início de 2019.

Todo um arcabouço de planos emergenciais, com brigadas treinadas nos estados e municípios, equipamentos de contenção ainda no mar para evitar que as manchas chegassem às praias, detecção do vazamento ainda em mar aberto para seguir sua trajetória, todos os procedimentos necessários para uma situação de desastre dessa magnitude foram ignorados pelo governo inepto de Bolsonaro, pela Marinha e por Ricardo Salles. Estava confirmada a gestão antiambiental.

Quero reforçar um alerta já feito. O desastre se consolidou, ainda é uma ameaça. Porém, o mais grave é que diante da iminência de vazamentos possíveis, decorrentes da exploração do pré-sal em áreas que foram objeto de leilão em novembro, o governo tem que se preparar e retomar os programas de contingenciamento que foram desmantelados.

Quando você acha que acabou, a realidade da inoperância proposital e a incompetência criminosa mostra sua cara. A saga das queimadas na Amazônia recrudesceu. No início de dezembro, mesmo com toda a exposição internacional que culpou o governo brasileiro pelo descaso, mais uma tragédia coroou essa gestão antiambiental insana. Desta vez, foram as queimadas na floresta do paraíso chamado Alter do Chão, distrito de Santarém, no Pará, na beira do rio Tapajós.

Alter do Chão é uma joia de praias de água azul turquesa e que pertence ao rio Tapajós e a seus povos. Alter do Chão depende da doação de organizações para que se mantenha incólume. O rio oferece esse bem precioso e nós temos que cuidar dele. No entanto, o que presenciamos foi fogo criminoso, consequência de disputas fundiárias, que culminaram com a prisão de jovens brigadistas inocentes, voluntários e equipados graças às doações de organizações da sociedade civil, para prevenir e apagar focos de incêndios na região.

A prisão autoritária dos quatro jovens, pela polícia civil do estado, a mando do governador, não recebeu atenção do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ou um gesto de solidariedade sequer. Não bastasse isso, o presidente da República, diante de um teatro montado para desqualificar o trabalho de ONGs na região, chegou a atribuir os incêndios da floresta a um ídolo internacional, famoso e respeitado pelas doações a causas ambientais, o ator Leonardo DiCaprio.

Essa ópera bufa fez a dupla Salles/Bolsonaro se tornar objeto de chacota na mídia internacional. Os desacertos nas questões ambientais levadas adiante, pelo ministro e pelo presidente da República, são infindáveis e dificilmente reversíveis. Eles cometeram crime contra a Natureza. Devem pagar por isso.

Que balanço você faz da conclusão da hidrelétrica de Belo Monte, que foi amplamente contestada por ambientalistas e movimentos sociais durante a sua construção? Quais foram os custos sociais e ambientais desse empreendimento?

Tudo, acredito, já foi escrito sobre Belo Monte. Pesquisadores, ambientalistas, professores, organizações internacionais já manifestaram publicamente o que significa hoje a hidrelétrica de Belo Monte para a região do Xingu. Eu mesma já escrevi inúmeros artigos, análises, coautoria de livros, antes, durante e depois do advento de Belo Monte. Mas nada do que foi escrito, nem as piores previsões, fez justiça à tragédia que se tornou Belo Monte para os povos da região, para o município de Altamira e para o rio Xingu e sua biodiversidade.

O projeto concebido desde os anos 1970 passou por etapas que se pode considerar traumáticas. A visão que tenho hoje é a de que houve um primeiro momento em que pensávamos que nossa luta contra a construção de Belo Monte no rio Xingu poderia ser ganha. Afinal, nós tínhamos todos os estratos da sociedade solidários com a causa. Ativistas locais, ambientalistas, indígenas das terras afetadas, as populações ribeirinhas, a academia, a igreja, pesquisadores, o Ministério Público, a mídia internacional, alguns jornais e emissoras no Brasil, atores internacionais, ONGs nacionais e internacionais.

Oposição a Belo Monte

Havia um arcabouço de forças que nos levava a crer que venceríamos, pois nossos inimigos eram o governo e as empresas que se beneficiariam da construção. Se você juntasse toda a sociedade, veria que nós sempre fomos maioria e que os estudos, livros, artigos, documentos, análises mostraram exatamente o que está acontecendo hoje, quando Belo Monte alterou para sempre a face da Amazônia e do rio mais amado do Brasil, o Xingu.

Fomos uma força que não via limites para atuar. Os recursos financeiros não faltaram para mostrar ao mundo que nosso mundo estava sendo terrivelmente alterado e se transformaria num trauma que jamais será superado. Belo Monte é isso hoje, uma marca, um monumento à nossa incompetência por acreditar que bastava provar cientificamente que os impactos seriam piores do que os apresentados nos estudos. Que a energia a ser gerada não compensaria a destruição, nem os custos. Mas, mesmo que compensasse, o preço a pagar era uma ameaça ao futuro das novas gerações.

Não haveria como repor a destruição das vidas dos povos do Xingu, da beleza que fora brilhantemente concebida pela Natureza. Belo Monte se tornou um mausoléu que lembrará às futuras gerações como um projeto que fora concebido para satisfazer a ganância, pode mudar a face do planeta, o clima, num mundo em que, atualmente, todo o equilíbrio é precioso. Qualquer alteração num ecossistema pode ser uma porta para o fracasso da humanidade e da perpetuação da raça. Não dá para se pensar que ao erguer um monstro no meio da região onde estão terras indígenas, populações tradicionais e trechos de rio absolutamente únicos na sua biodiversidade, não tenhamos que pagar por isso no futuro.

Custos sociais e ambientais

O rio Xingu é um monumento da Natureza numa Amazônia, agora frágil, mas rica de vida e de história. E quando você me pergunta sobre os custos sociais e ambientais resultantes da construção de Belo Monte, eu só posso responder que nunca saberemos a dimensão ao certo. Podemos vislumbrar aquilo que hoje está acontecendo, com a fragilização da floresta, com a mudança nos hábitos dos indígenas das terras na Volta Grande do Xingu, com a desesperança de toda uma população que foi levada a acreditar nas promessas não cumpridas, mas gravadas a ferro e fogo nas condicionantes obtidas a fórceps pela sociedade civil e pelo ministério público, no curso do processo de licenciamento; na miséria e na violência, resultados do inchaço urbano provocado pela corrida em busca de empregos e oportunidades sonhados por pessoas vindas de todos os rincões do Brasil; na decepção da população de Altamira que sonhou com uma cidade limpa, com saneamento básico, mais escolas, creches, hospitais e postos de saúde. Onde estavam empreendedores e governo quando uma revolta dizimou a população carcerária da penitenciária de Altamira que não suportou a pressão de uma estrutura decadente e corrupta?

Belo Monte serviu, sim, para favorecer o “pode tudo” na região afetada, como a possibilidade de mais um desastre, a exploração de ouro pela mineradora canadense Belo Sun Mining, que está licenciando a maior mina a céu aberto do Brasil, umbilicalmente unida às estruturas do monstro e que pretende dali retirar 59 toneladas de ouro. Mais um impacto, cujas consequências são impossíveis de avaliar, no presente e no futuro, se for concretizada.

Recentemente, com a seca na região, o rio Xingu tem apresentado baixas vazões, reduzindo ainda mais a capacidade da hidrelétrica de gerar a energia prevista. Como solução para o impasse, o consórcio responsável pela usina, a Norte Energia, solicitou licença para construir usinas termelétricas no entorno de Belo Monte, para poder entregar toda a energia vendida no leilão. Ouvidos moucos e interesses escusos fizeram erigir uma hidrelétrica que barrou o rio Xingu, destruiu a Volta Grande, e não produz a energia que deveria conforme os termos do leilão e das licenças dadas pelo Ibama.

Agora, a Norte Energia não vai poder entregar a energia que deveria escoar pela Linha de Transmissão que custou R$ 15 bilhões, construída pela chinesa State Grid, mais uma beneficiária, junto com as grandes empreiteiras que queriam os lucros das obras civis, das escavações, da construção do canal, dos diques, das estruturas dos dois reservatórios, outros R$ 40 bilhões. O saldo é esse, por enquanto.

Belo Monte serviu para expor a miséria e o desrespeito que brasileiros e brasileiras sofrem por parte de governos sucessivos. Só quem lá esteve pode testemunhar a mentira, o engodo e a falta de respeito de que são alvo. E, para finalizar, eu não podia deixar de acrescentar que o presidente Bolsonaro foi a Altamira para colocar a cereja do bolo.

Inaugurou a última turbina de Belo Monte, assinando, assim, seu nome embaixo dos nomes dos demais assassinos do rio Xingu e da sua biodiversidade. A história lhe fará justiça, pois quem dá vida ao monstro é quem inaugura.

Os governos Lula e Dilma foram bastante criticados por investirem na construção de novas hidrelétricas no país. O governo Bolsonaro, por sua vez, também aposta nessa via e já sinalizou a intenção de retomar o plano de erguer grandes hidrelétricas na Amazônia, como as hidrelétricas Bem Querer, em Roraima, e Tabajara, em Rondônia. Que informações a senhora tem sobre essas propostas e quais são os possíveis impactos desses empreendimentos para a Amazônia?

Não poderia ser de outra forma. Neste 2019, pautado pela polarização política, ano em que houve retrocesso em todas as conquistas da sociedade brasileira nas últimas décadas, dar continuidade ao plano de construir mais hidrelétricas na Amazônia seria previsível, em se tratando do governo Bolsonaro. Notícias já veiculadas nos dão a pista sobre a retomada dos projetos que constam do Plano Decenal de Energia 2027.

Quero mencionar que retomar a UHE São Luiz do Tapajós, no rio Tapajós, no Pará, mesmo depois que os estudos ambientais foram arquivados pelo Ibama, também está nos planos do governo Bolsonaro.
O que mais me preocupa é que o Ministério do Meio Ambiente pretende “cortar caminho” para licenciar esses projetos hidrelétricos. Isso significa uma simplificação do processo de licenciamento ambiental que pode tornar um projeto no papel numa obra, num piscar de olhos.


Mapa mostra projeto de instalação da UHE São Luiz do Tapajós (Fonte: FolhaPress)

Usina Hidrelétrica Bem Querer

A UHE Bem Querer foi planejada para barrar o rio Branco, no estado de Roraima; um território extenso, vítima de um histórico traumático de ocupação ilegal de terras, que sempre ignorou os direitos dos povos indígenas e a preservação do meio ambiente. Graças às terras indígenas e às Unidades de Conservação, que são parte considerável do Estado, conseguiram garantir certa imunidade. Quero lembrar que a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, legalizada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), está localizada num extremo de Roraima e no outro está a Terra Yanomami e, juntas, ocupam 45% do território. Esse resumo já nos dá uma dimensão do que significaria uma obra de hidrelétrica e seus impactos numa região tão frágil.

O rio Branco e sua bacia hidrográfica ocupam uma posição de destaque nessa conformação espacial do território, pois é um divisor entre as duas terras indígenas. Os ecossistemas dessa bacia hidrográfica são essenciais para a sobrevivência desses povos. Apesar de os estudos de inventário da bacia do rio Branco terem sido iniciados em 2006 e interrompidos em 2008, em 2011 eles foram retomados e aprovados pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL. Apenas o aproveitamento hidrelétrico Bem Querer, no município de Caracaraí, sul do Estado, com potência prevista de 650 MW, foi aprovado no rio Branco. Agora o governo Bolsonaro retomou o projeto e pretende inaugurá-lo.

A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) já anunciou um pacote em que consta o leilão da UHE Bem Querer. E dá para imaginar, já tendo como exemplos os históricos de outros casos como as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, como os impactos ambientais e sociais decorrentes da construção de uma hidrelétrica devem afetar um rio com uma bacia hidrográfica extensa, em plena Amazônia, e que dá suporte e vida para as terras indígenas Raposa Serra do Sol e Yanomami. É preciso mencionar que a exploração ilegal de ouro e a pressão sobre suas terras têm sido denunciadas pelos Yanomami.


Mapa mostra onde a UHE Bem Querer vai barra o rio (Fonte: Pontoon-e)

Usina Hidrelétrica Tabajara

Nada melhor para se ter uma ideia do que significa construir a UHE Tabajara, do que resgatar um apelo feito, em março de 2014, pela Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira - Opiam, representante de dez etnias, por carta, à então procuradora da República, Dra. Deborah Duprat, presidente da 6ª Câmara do MPF, em Brasília. As etnias da região do município de Humaitá/Amazonas manifestaram seu desacordo com os planos do governo de construção e instalação da UHE Tabajara no município de Ji-Paraná, Rondônia.

A organização denunciou que duas etnias seriam afetadas diretamente, nos territórios dos Povos Indígenas Tenharin e Jiahui, na Transamazônica. Na época em que os estudos estavam sendo aprovados, os indígenas não tinham sido consultados sobre os impactos culturais, sociais e ambientais em suas terras, em franco desrespeito à Constituição Federal, em seus artigos 231 e 232 sobre os direitos dos povos indígenas.

Não há como negar que governos sucessivos têm se mostrado coniventes com os projetos de hidrelétricas que afetam diretamente povos indígenas da Amazônia. Os planos para construção desses projetos hidrelétricos vêm de um momento em que se previa um crescimento da economia em 5% ao ano. Segundo os planos decenais de energia elétrica que se sucederam, seria necessário suprir o país de energia elétrica, dita limpa e barata, para suportar o crescimento projetado da economia. E assim foi e, parece, não vai parar.


(Fonte: O Estado de S. Paulo)


Projeto da área alagada da usina (Fonte: www.ppi.gov.br/uhe-tabajara-ro)

Construção de hidrelétricas: um negócio para empreiteiras e políticos

Não faltaram denúncias da sociedade civil, de pesquisadores e professores sobre os planos de expansão de energia que incluíam os principais rios da Amazônia a serem barrados para atender, em particular, as indústrias eletrointensivas e a necessidade de obras para satisfazer as grandes empreiteiras brasileiras. Só para recordar, construir hidrelétricas em regiões remotas da Amazônia tornou-se um grande negócio para empreiteiras e políticos corruptos. Os custos de implantar uma grande obra no meio do nada passaram a ser astronômicos e financiados pelo próprio governo; a fiscalização inexistente, o que facilitou aditivos.

Acrescente-se a isso a construção de linhas de transmissão que cruzaram o Brasil, como as que saíram das usinas do rio Madeira e de Belo Monte. Outras, como as usinas na bacia do rio Teles Pires, também foram construídas num momento prevendo uma economia robusta que nunca chegaríamos a alcançar. Já escrevi dezenas de artigos e concedi dezenas de entrevistas sobre esse engodo no planejamento da energia elétrica pelo Ministério de Minas e Energia, nos governos FHC, Lula, Dilma e, culminando agora com Bolsonaro que, não satisfeito em retomar essa forma predatória de gerar energia elétrica, ainda pretende retomar geração nuclear.

Levamos décadas para conseguir que as fontes realmente limpas de energia saíssem do papel para se tornarem uma realidade. Energia fotovoltaica, energia eólica, finalmente, começaram a alcançar o mercado nacional e se tornaram competitivas. Enquanto os países avançados se preocupam em transformar seus sistemas para obter energia limpa, com impactos reduzidos, com fontes mistas complementando-se, o Brasil caminhou a passos de cágado. Depois de finalmente atingirmos a quase maturidade na aceitação de geração que não dilacerasse os rios da Amazônia, eis que o governo Bolsonaro anuncia a retirada dos subsídios que barateavam o mercado iniciante de energia solar. E em seu lugar anuncia planos ultrapassados de construção de mais hidrelétricas na Amazônia e de usinas nucleares no sertão de Pernambuco. Na contramão da história, pois a Alemanha, por exemplo, acaba de anunciar que vai desativar todas a suas usinas nucleares até 2050.

Que avaliação faz da Lava Jato e suas investigações sobre a Petrobras e os casos de corrupção envolvendo os governos do PT com as empreiteiras do país?

Foi fácil relaxar quando o PT assumiu o governo, esquecer o passado traumático ainda vivo nas nossas memórias, olhar para a frente e ver um futuro próspero logo ali, ao alcance da mão. Só que não. Em muito pouco tempo o sonho virou pesadelo e descobrimos que havia mais um engodo em que o Brasil se afundara.

É lógico que o PT criou uma vida melhor para a maioria da população, não há como negar. Foi positivo, a economia parecia que ia decolar, projetos como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, fizeram diferença e o número de miseráveis diminuiu, menos brasileiros abaixo da linha de pobreza. Mas em pouco tempo vieram os problemas que não estavam no script. Primeiro foi o mensalão e depois a Lava Jato. Dois traumas que criaram abalos na sociedade. O mensalão revelou Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal, negro, de raízes simples, que vencera todos os obstáculos sociais e o racismo, para se tornar autoridade e guardião da Constituição Federal, como presidente de um dos três Poderes da República. O caso mensalão abriu uma ferida no coração de cada brasileiro.

Passado o impacto que mostrou a corrupção paga na forma de salário que atraiu políticos sórdidos, condenando alguns à cadeia, Joaquim Barbosa se despiu da toga. Simples assim. É interessante como o povo brasileiro precisa de heróis e vive em busca deles. Talvez seja o país que mais precise exaltar um herói, ou anti-herói, e isso me chama a atenção. Nas últimas duas décadas, o herói do momento surgiu sempre na esteira de um escândalo desmascarado, ou depois de um golpe na autoestima dos brasileiros. Foi assim que a Lava Jato surgiu.

Um herói despontou. Quase cinco anos de caça às bruxas e lá estava o novo herói nas ruas na forma de balão inflável, com capa de Batman, indestrutível e pronto para fazer com que o bem vencesse o mal. Corrupção nunca mais, afinal nós tivemos também, de quebra, o Robin, disfarçado de um invencível Deltan. No auge, a força-tarefa da Lava Jato me remeteu, por analogia, aos Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan. Parecia que o Brasil, finalmente, arrumara mais heróis, não apenas um. Como invencíveis, estavam desvendando os segredos da corrupção na maior empresa brasileira, a Petrobras, com a participação das maiores empreiteiras do país. Foi mais um duro golpe no moral dos brasileiros, afinal a esperança tinha vencido o medo.

A Lava Jato fez surgir, então, um personagem (até então) impoluto, arauto da ética e da justiça, que peitou poderosos, que os levou para a cadeia. Empresários, executivos da Petrobras, doleiros e políticos famosos foram mostrados em rede nacional, sendo conduzidos algemados para a sede da Polícia Federal. Sergio Moro passou a ocupar o vácuo deixado por Joaquim Barbosa. Bilhões de reais foram descobertos transitando livremente pelos bastidores da política, em instituições financeiras, em malas, sem que os controles de tramitação financeira tivessem detectado. Como foi possível?

Muito dinheiro azeitando relações obscuras entre empresários das maiores empresas brasileiras e políticos, para alimentar caixa dois de campanhas. O vai e vem do dinheiro ilícito pelos caminhos tortuosos dos maiores bancos do país manteve esse toma-lá-dá-cá no umbral.

É interessante como o destino nos prega peças. Aliás, o Brasil se tornou uma espécie de teste do destino. O juiz impoluto sucumbiu ao mundo do poder sem toga e que despreza a toga. Enganou-nos para satisfazer um ego inflado pelo sucesso. Ele construiu um mito de si mesmo, ultrapassando todos os limites éticos da missão que abraçara. Sergio Moro conspurcou sua história e a nossa história. Fez-nos ver o quão frágeis e ingênuos somos diante do poder imensurável de egos e artimanhas de bastidores para derrubar uma democracia e dar lugar ao autoritarismo. Sergio Moro derrubou um gigante, que também nos traiu de certa forma, colocou entre as grades o único homem que ameaçava o plano de eleger um autoritário. Pior, convenceu a todos. Entregou Lula aos leões e partiu nossos corações.

Com Moro, os mosqueteiros sem as espadas da ética aproveitaram para usufruir do sucesso inesperado. O dinheiro passou a comandar a Lava Jato por dentro, já que por fora já a comandava.

Também há a possibilidade de o governo retomar o projeto da Hidrelétrica São Luiz do Tapajós. Quais as implicações ambientais e sociais desse empreendimento?

A Medida Provisória - MP nº 558 foi editada em janeiro de 2012, pela presidente Dilma Rousseff para alterar limites dos Parques Nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos e Mapinguari, das Florestas Nacionais Itaituba I e II e do Crepori e da Área de Proteção Ambiental do Tapajós, com o objetivo de viabilizar, sem entraves ambientais, a construção das hidrelétricas no rio Tapajós, no Pará.

Foi em 1º de março de 2012 que a Eletrobras abriu um edital para a realização da Avaliação Ambiental Integrada - AAI e dos estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental - EVTE do complexo hidrelétrico do rio Tapajós – hidrelétricas São Luiz do Tapajós, Jatobá, Cachoeira do Caí, Jamanxim e Cachoeira dos Patos, nos rios Tapajós e Jamanxim. Já em fevereiro de 2012, o Ibama tinha dado o aval para emissão do Termo de Referência - TR para elaboração do EIA/Rima da UHE São Luiz do Tapajós e em maio do mesmo ano para o TR da UHE Jatobá.

Estou resgatando a história para que a sociedade não esqueça como se deram as decisões para reduzir Unidades de Conservação (UCs), que podem transformar mais uma vez a face da Amazônia. Isso não é privilégio do governo Bolsonaro, é preciso que se diga. Ele só está sendo mais destrutivo ao não respeitar as leis ambientais de forma absolutamente autoritária e fascista.

Em dois ofícios, de 17 de fevereiro (nº136/2012) sobre a UHE São Luiz do Tapajós e de 26 de março (nº 197/2012) sobre a UHE Jatobá, dirigidos à Diretora de Licenciamento Ambiental do Ibama, Gisela Damm Forattini, a Funai se reporta à portaria nº 419 no que “estabelece presunção de interferência em Terras Indígenas para aproveitamentos hidrelétricos localizados, na Amazônia Legal, até 40 km de distância de terras indígenas, ou situados na área de contribuição direta do reservatório, acrescido de 20 km a jusante”.

Com o risco de haver um bloqueio dos projetos das usinas do Tapajós pela Funai que, em ofício à diretora do Ibama, faz menção à portaria nº 419, Dilma Rousseff se apressou e editou a MP nº 558, em março de 2012, que mencionei no início desta resposta.

Como em todo processo de licenciamento, usinas hidrelétricas, em especial na Amazônia, precisavam passar por aprovação dos estudos de viabilidade técnica e econômica. Eu fiz questão de frisar o verbo no passado “precisavam” porque agora parece que há uma pretensão do governo Bolsonaro de alterar o processo de licenciamento ambiental com o fito de acelerar o prazo de obtenção das licenças. O Ibama é o órgão do Ministério do Meio Ambiente responsável pelo licenciamento, nesse caso.

Quando se deu o início do processo de Licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, o Termo de Referência para orientar o Estudo de Impacto Ambiental - EIA e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental - Rima deveriam ter sido elaborados pelo Ibama. Mas não foi o que aconteceu. Começou errado, pois o próprio empreendedor é que se encarregou de fazê-lo. Esse é um dos pontos que, em minha opinião, já bastaria para inviabilizar a continuidade do processo.

O rio Tapajós ou rio especial da Amazônia, além de nos presentear com Alter do Chão e suas praias paradisíacas, como já mencionei em resposta a uma questão anterior, nasce da confluência de dois outros rios também especiais: o Teles Pires e o Juruena. Os rios Tapajós e Juruena com seus afluentes formam uma grande bacia hidrográfica com características especiais e muitas terras indígenas. No início do processo de licenciamento, os desenvolvedores pouco mencionaram sobre essas terras indígenas, sonegando dos estudos a verdadeira dimensão e importância de sua existência para escamotear os impactos que as afetariam.

Caso da TI Sawré Muybu que foi, no entendimento do MPF, um dos principais motivos que deram origem ao arquivamento do processo de licenciamento ambiental no Ibama. A descrição das populações indígenas e a manifestação da Funai foram pífias. Distorcer a lei e contornar os procedimentos para licenciamento ambiental de grandes hidrelétricas na Amazônia foram sempre lugar comum nesses anos em que a febre de grandes obras imperava, principalmente no Ministério de Minas e Energia.

Continua na parte 2

Patricia Fachin é jornalista do Portal IHU Online, onde a entrevista foi originalmente publicada.

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