Correio da Cidadania

Por que Portugal virou à direita?

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Eleições 2019 | Consulado Geral de Portugal em São Paulo
1) O Presidente da República designa o primeiro-ministro "tendo em conta os resultados eleitorais", nos termos da Constituição. Isso sugere que o líder de partido ou coligação com mais mandatos eleitos na Assembleia deve formar governo. Contudo, não pode ter uma maioria de rejeição do seu programa no parlamento, ou o presidente terá de chamar outra personalidade que possa não ter maioria de rejeição, provavelmente do segundo partido com mais eleitos. Um governo à esquerda, sem maioria parlamentar, eventualmente não rejeitado pela Aliança Democrática (AD), só teria pernas para andar, ainda que de base precária, se o Partido Socialista (PS) tivesse vencido as eleições. O que não veio a acontecer, apesar de na noite eleitoral parecer que isso podia ser um fato.

Neste contexto, os partidos de esquerda deverão organizar uma oposição popular ao governo da AD, contrariando as suas políticas privatizadoras e securitárias, e a previsível osmose entre Partido Social Democrata (PSD) e Chega (CH) que se irá disputar na estabilização do governo. A reconfiguração e radicalização das direitas continua sob novas formas.

2) No essencial, os apelos de AD e PS ao voto útil e à bipolarização não funcionaram, ao contrário de 2022. À direita, com o crescimento do CH e a resistência da Iniciativa Liberal (IL); à esquerda, com a resistência do Bloco de Esquerda e a subida do Livre, que compensa a perda do Partido Comunista (PCP). O indefinido Partido Pessoas Animais Natureza (PAN) fica igual. Exceto o PCP, todos ganham votos. É certo que o crescimento à esquerda tem um significado reduzido em comparação com o crescimento da extrema-direita. Mas a sua percepção pública foi que, à direita, CH e IL, cada um com as suas brigas, queriam compor uma maioria com o PSD; e à esquerda todos os partidos, incluindo o centrista PAN, mostraram disponibilidade para discutir uma maioria com o PS. Esse fato, num período de grande dramatização política, permitiu enfrentar em melhores condições a chantagem do voto útil.

Nenhum dos partidos fará dessa proposta linha geral e intemporal, mas no contexto adverso da relação de forças, com uma viragem à direita muito significativa, é um procedimento necessário.

3) A votação do CH, em torno de 18%, acompanha a tendência internacional do trumpismo e está longe de ser uma originalidade lusitana. Esta extrema-direita exalta o nacionalismo reacionário, a xenofobia e o descrédito nas democracias. É um processo impulsionado por uma fracção da burguesia negacionista das alterações climáticas, protecionista do comércio, que promove o autoritarismo social e de gênero. Este fenômeno desenvolveu-se a partir da crise do capitalismo de 2007/8, condenando a "globalização", e constitui uma forte atração ideológica, reproduzida e ampliada nas redes sociais. Em Portugal, o descontentamento face às políticas dos governos pós-geringonça (2019-2024) inchou a base de massas do CH. Uma base heterogênea de saudosistas do colonialismo, gente despolitizada e muito povo zangado com a falta de oportunidades, em especial nos mais jovens. Parte destes eleitores eram votantes de PSD e CDS, outros vieram da abstenção e de novos eleitores.

A afirmação dos Direitos Humanos é todo um programa ideológico e político a contrapor, quer no feminismo, quer na diversidade cultural, quer nos direitos LGBTQI, quer na escolarização democrática. Mas ninguém se iluda. Sem respostas sociais a sério, sobretudo para a juventude, não será possível travar esta onda reacionária. O diálogo com estes setores populares é importante, sem jamais ceder na política migratória ou securitária. Os partidos socialdemocratas que na Europa tentaram apaziguar a extrema-direita por esta via acabaram por perder os seus governos e as suas razões.

4) Sem acentuar outros fatores, é visível que uma tomada de posição ambígua, para dizer o mínimo, sobre a invasão russa da Ucrânia prejudicou muito quem o fez. Este fato merece registro pelo conjunto de repetidas críticas feitas ao Bloco de Esquerda por tomar o lado do agredido. Demonstrar coerência na defesa dos povos, seja na Ucrânia, seja na Palestina, ou em qualquer outro lado, é a pedra de toque de qualquer política internacionalista.

À esquerda do PS, nos vários partidos, há propostas diferentes nas políticas sociais, na abordagem da União Europeia, nas articulações partidárias europeias, nas propostas ambientais, entre outras áreas. Identificar claramente essas diferenças pode proporcionar leituras de posicionamento a setores mais jovens. Essas diferenciações não são impeditivas de convergências na oposição e são importantes para desfazer amálgamas sobre as posições dos partidos.

5) O continuísmo costista do PS foi o seu principal adversário. Não seria possível enfraquecer o CH e superar a AD sem uma autocrítica séria da governação entre 2019 e 2024. A continuada lamúria pela pandemia, pela guerra, pela inflação, sendo real, não pode servir de desculpa para as rupturas de serviços públicos, para o empobrecimento e para o aprofundamento de desigualdades. Os ziguezagues em torno da TAP, que acabaram na proposta de privatização contida no programa eleitoral, demonstram bem o predomínio do apregoado legado de Costa, aliás exaltado em autossatisfação pelo próprio em plena campanha. Esta nota serve de aviso para quem pense em lançar este legado em novos voos.

6) O propósito de Montenegro, como se sabe pouco acompanhado no PSD, é tentar, ao jeito de Cavaco, na eventualidade de derrube de um governo minoritário, apelar a uma maioria absoluta. "Deixem-nos trabalhar" foi a palavra de ordem cavaquista. Para isso, Montenegro enfrenta uma luta e ensaios de compromisso com o CH enquanto uma parte do PSD pede osmose de políticas à direita. Este corrupio caracteriza a instabilidade política. Os rumos das atitudes do Presidente da República são um fator adicional de imprevisibilidade. Em todo o caso, se o governo PSD/CDS diz que "não é não", Montenegro poderá desfazer-se do todo e incorporar o CH peça a peça, lei a lei. Nesta fase, há que fazer da unidade a força da resposta dos movimentos sociais à política da direita. Toda a resistência auxiliará fortemente a oposição a cavar a base de apoio do governo PSD/CDS.

7) As próximas eleições europeias, marcadas para 9 de junho, continuam este ciclo eleitoral. As discussões em torno da governabilidade e de quem aprova o orçamento vão contaminar essa campanha. É um momento importante para as forças da esquerda portuguesa salientarem os seus contributos na oposição e explicar claramente que Europa queremos.

Sem concessões a monstros como o Pacto das Migrações, de exclusão de imigrantes, ou o Tratado Orçamental que estrangula o investimento público para a transição energética ou para o emprego, cabe defender o europeísmo de esquerda.

Luís Fazenda é dirigente do Bloco de Esquerda de Portugal e professor.

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