Correio da Cidadania

De Mianmar Ao GameStop

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Blog de Geografia: Mapa de Mianmar, a antiga Birmânia
Há algo nos mares agitados da globalização além dos navios carregados de mercadorias. Alguma coisa absolutamente nova acontecendo na velha ordem mundial dos últimos setenta e cinco anos.

Golpes de Estado pipocam em várias partes do mundo. Na Ásia em maior número. Como sempre. Depois de Hong Kong, na segunda metade do ano passado, na manhã desta segunda-feira (1º fevereiro) foi a vez de Mianmar.
A fila de espera é enorme: Filipinas, Malásia, e outros asiáticos “altamente improváveis” como Coréia do Sul, Indonésia, Taiwan, até a Austrália etc. Logo o mundo todo estará testemunhando este dominó geopolítico. Não sem um grande espanto, off course.

Mas, afinal, corriqueiros golpes na periferia não deveriam ser considerados coisa sem muita importância? Sim. Pelo menos foi assim até agora. O problema é que placas tectônicas estão se movendo nos alicerces da velha ordem geopolítica do pós-guerra. E o mundo está ficando, como se diz, cada vez mais esquisito. Vejamos a coisa deste outro ângulo e novo compasso.

Os militares da antiga colônia britânica da Birmânia (até 1948) tomaram o poder em um clássico golpe de Estado da periferia mundial e declararam estado de emergência, após deter a popular aliada dos EUA, a senhora Aung San Suu Kyi, e outras figuras importantes do partido ocupante da presidência do país desde as recentes eleições gerais em novembro de 2020.

As primeiras informações indicam que a China, que compartilha uma extensa fronteira de 2185 km com Mianmar – e nada sutil cumplicidade com seus aliados militares do país – teve importante participação no golpe. Israel também estaria presente nesta pouco usual confraria.

Essa cumplicidade com Pequim já seria um ingrediente suficientemente explosivo para uma pronta reação das potências imperialistas, principalmente EUA. Foi o que aconteceu.

É por isso, também, que a volta dos militares ao poder na antiga e conturbada Birmânia, depois de curto período de liberdade constitucional, desemboque com uma guerra civil e um banho de sangue em um dos países mais ricos do mundo em termos de recursos minerais.

Mas a maior e mais cobiçada “riqueza” do país é sua posição geográfica absolutamente estratégica. Não é por acaso que por décadas, desde a independência do país, o governo sempre foi na forma de ditadura militar aberta.

Mianmar é um país do sul da Ásia continental limitado ao norte e nordeste pela China; a leste pelo Laos; a sudeste pela Tailândia; ao sul pelo Mar de Andaman; a oeste pelo Golfo de Bengala; e a noroeste pelo Bangladesh e Índia.
O que isto quer dizer? Simples. Sem controlar politicamente Mianmar nenhuma potência imperialista – antiga ou ainda em crisálida, como seu mastodôntico vizinho ao norte – controlará a fronteira sudeste da China (região da Indochina) e, consequentemente, o Mar do Sul da China.

Neste esquadro de uma potente bomba geopolítica, o golpe de Estado em Mianmar é o primeiro grande teste de realpolitik a ser enfrentado por Joe Biden, novo presidente dos EUA. Seu secretário de Estado, Antony Blinken, já mostrou suas garras de falcão imediatamente após a notícia do golpe.

Como informa o The Guardian, Blinken exigiu a libertação de sua grande aposta liberal e protegida Aung San Suu Kyi e outros detidos, afirmando que os Estados Unidos se opõem a “qualquer tentativa de alterar o resultado das recentes eleições ou impedir a transição democrática de Mianmar e agirão contra os responsáveis se essas medidas não forem revertidas”.

Washington tenta manter a pose musculosa de sempre e fazer de conta de conta que nada aconteceu nem está rapidamente mudando a velha ordem. Acontece, por exemplo, que para justificar seu golpe de Estado os militares de Mianmar afirmam que o exército deteve líderes do governo e assumiu o poder em resposta à “fraude durante as eleições gerais do ano passado”.

Ora, essa nem um pouco original justificativa dos milicos de Mianmar deve ter soado bastante familiar aos ouvidos presentes nos corredores da Casa Branca e do Capitólio, em Washington. Afinal, a tentativa de golpe de Estado dos partidários de Donald Trump, na maior democracia do mundo, não utilizou o mesmo argumento de que as recentes eleições estadunidenses vencidas por Biden e o Partido Democrata foram fraudulentas?

É essa banalização das regras e instituições democráticas solidamente operantes no pós-guerra, atingindo também os Estados dominantes da área euro/norte-americana, que chama a atenção nesta quadradura do circulo capitalista e imperialista mundial.

Este recado do golpe de Estado em Mianmar pode parecer até enigmático e irracional para a opinião pública. Normal. Mas para as poucas pessoas que ainda conseguem pensar por si mesmas a coisa é muito clara: os EUA e outras grandes potências imperialistas podem deslizar com rapidez para a mesma forma de ingovernabilidade política e golpes que até agora eram privilégio das “repúblicas de banana” da periferia do sistema.

Não se trata de mero enfraquecimento moral ou de imagem desgastada das grandes democracias centrais, democracias dominantes. É certo que as coisas ainda estão em movimento. E as placas tectônicas ainda fazem apenas pequenos movimentos.

De todo modo, esses movimentos são muito objetivos. Assim, nos próximos trimestres deste ano já se poderá enxergar com toda a clareza que o que impulsiona as placa tectônicas para este deslizamento catastrófico do regime político da totalidade dos Estados nacionais é o que se passa neste exato momento, por exemplo, com os alucinantes e inacreditáveis preços da GameStop e da prata em Wall Street.

A nova secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, convocou uma reunião com os principais reguladores financeiros do país para discutir os tumultos dos mercados financeiros iniciada após movimentos especulativos com ações da GameStop. Sentiu o golpe. Os alicerces do sistema financeiro estadunidense estão podres. Desabamento na primeira esquina.

E na Europa? A comissão da União Europeia anunciou ontem que a economia do bloco se encaminha para um “duplo mergulho na crise”. Pode existir uma notícia mais perturbadora para a governabilidade burguesa que uma possível derrocada econômica nos próximos meses?

A Europa pode presenciar nos próximos trimestres uma explosão de desemprego e de grande parte da população falida se dirigindo aos postos de alimentos que os governos devem espalhar pelos países. Na Inglaterra, este espectro do desemprego em massa e da fome já se apresenta como uma realidade.

Enquanto este curso a uma depressão global germina e se avoluma em todo o mundo, os militares que tomaram o controle de Mianmar foram recebidos com condenação universal e vociferante. Pequim e Telavive foram as notáveis exceções.

Em Mianmar existe um profundo sentimento de incerteza e medo com o que pode vir pela frente. Mais do que incerteza e medo! No próprio dia de ontem, no dia em que os assustadores gorilas do passado voltaram a controlar o governo do país, um dos mais brilhantes intelectuais do país, o historiador Thant Myint-U resumia a situação com raríssima inteligência: “As portas acabam de se abrir para um futuro muito diferente”, escreveu.

E completou: “Tenho a sensação de que ninguém será realmente capaz de controlar o que vem a seguir. E lembre-se de que Mianmar é um país repleto de armas, com profundas divisões entre linhas étnicas e religiosas, onde milhões mal conseguem se alimentar”.

É a partir deste insight de Myint-U que procuraremos esclarecer melhor essas portas que acabam de se abrir no democrático cemitério da Pax Americana que encarcera e sufoca o mundo desde 1945.

José Martins é economista e editor do Crítica da Economia, de este artigo foi retirado.

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