Correio da Cidadania

Por que o Líbano está em transe

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O ministro das Comunicações do Líbano, Mohammad Choucair, decidiu em 17 de outubro do ano passado introduzir um imposto equivalente a 2 dólares por mês – o “imposto Whatsapp” – em todos os aplicativos grátis para celulares. Naquela noite, centenas de jovens, muitos deles entre os setores mais empobrecidos do país, manifestaram-se nas grandes cidades.

No dia seguinte, bloquearam as principais estradas e realizaram sit-ins simbólicos em pontos emblemáticos, como a Praça dos Mártires de Beirute. O governo fechou edifícios, universidades e escolas públicas, paradoxalmente encorajando-os ainda mais a tomar as ruas. O fechamento dos bancos por duas semanas, a partir do início dos protestos, serviu de combustível para a raiva, já que a população não pôde acessar seus depósitos.

Três meses depois, o movimento continua. Os manifestantes seguem exigindo o fim de um regime baseado na partilha de poder entre políticos xiitas, sunitas e cristãos. O primeiro ministro Saad Hariri renunciou em 30 de outubro, e em 19 de dezembro o presidente Michel Aoun pediu ao ex-ministro da Educação, Hassan Diab, que formasse um governo de tecnocratas. A tentativa não teve o consenso das ruas.

À beira da falência

A economia libanesa está próxima do colapso e há severa desigualdade: o 1% mais rico controla 42% da riqueza nacional e 23% da renda, segundo um relatório do Laboratório Mundial de Desigualdade. O país está também à beira da falência, com uma dívida pública equivalente a 150% do PIB e um déficit fiscal de 11%. O custo dos juros é de quase 4 bilhões de dólares anuais.

O crescimento estancou – cerca de 0,2% em 2018. O Líbano é cada vez mais incapaz de atrair os capitais externos de que precisa para cobrir importações (em especial, petróleo, trigo e medicamentos), que são quatro vezes maiores que as exportações. As remessas dos emigrados e os investimentos de fora já não são suficientes para sustentar o sistema: agora, as saídas de divisas superam as entradas. Em meados de dezembro, o governo restringiu o acesso a moedas estrangeiras.

A guerra civil na Síria, desde 2011, provocou impacto na produção agrícola libanesa, já frágil, especialmente em regiões periféricas como o Vale de Bekaa e o distrito de Akkar, que estão entre as localidades mais pobres do país e sobreviviam graças ao comércio com cidades sírias como Homs. Desde a queda dos preços do petróleo, em 2014, o fluxo de fundos dos países do Golfo Pérsico secou, assim como a entrada de turistas da Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes.

E desde que Donald Trump tornou-se presidente dos EUA, sanções mais duras contra os bancos libaneses, suspeitos de ligação com o Hezbollah (o partido xiita contra o qual Israel guerreia), pesaram sobre uma economia em que o setor bancário é essencial. Em agosto de 2019, o departamento de Tesouro dos EUA acusou o Jammal Trust Bank (JTB) de apoiar o Hezbollah e o Irã, congelou seus ativos nos Estados Unidos e o proibiu de realizar transações em dólares. O JTB foi liquidado em setembro.

Em abril de 2019, Hariri lançou medidas de “austeridade” inéditas, prometendo que estabilizariam a economia. Também queria atender as demandas dos principais credores externos do Líbano. Para assegurar US$ 11,2 bilhões em empréstimos e apoio à infraestrutura, oferecidos na Conferência para o Desenvolvimento Econômico por meio de Reformas e com Empresas (Cedre), em Paris, em abril de 2018, o governo comprometeu-se a reduzir seu déficit orçamentário em 1% do PIB anuais, ao longo de cinco anos – uma promessa praticamente impossível.

O orçamento de 2019, só aprovado em julho pelo parlamento, atingiu o setor público com um congelamento de contratações (incluindo nas Forças Armadas), um veto de três anos às aposentadorias antecipadas e redução dos subsídios aos gastos dos filhos dos servidores públicos com escolas infantis.

Houve certos abusos nos últimos anos – inclusive o pagamento de benefícios a servidores falecidos e favorecimento político nas contratações. Mas os servidores públicos – 40% dos trabalhadores libaneses – também sofrem com aumento da inflação e com a queda da libra libanesa diante do dólar. Veem a si mesmos como parte da classe média empobrecida. O setor público tem muitos terceirizados, inclusive parte do pessoal na Universidade Libanesa (UL), que não são protegidos pela seguridade social, despesas de viagens ou aposentadorias. O déficit orçamentário impede contratá-los, algo que muitos esperam há anos.

Mobilização contra a “austeridade”

A “austeridade” provocou protestos que levaram a preparar para a revolta de outubro. Os servidores da Seguridade e os trabalhadores da universidade fizeram greve durante a primavera e o verão (nórdicos). Porém, quem mais se mobilizou foram os veteranos das Forças Armadas: o orçamento de 2019 previa um imposto mensal de 1,5% em suas aposentadorias. Em 20 de maio, os veteranos tentaram entrar à força no prédio do parlamento, contra o qual protestavam. Ao longo do verão, bloquearam ruas em Beirute, eventualmente entrando em confronto com as forças ativas de segurança encarregadas de proteger edifícios públicos. Uma semana depois do levante popular de 17 de outubro, eles estavam no ministério das Finanças protestando contra um atraso de nove meses no pagamento de pensões para os recém-aposentados.

As ações dos veteranos tiveram a simpatia do público e os tornaram líderes da luta contra a “austeridade”. Nos conflitos políticos que dividem o Líbano, o exército é sempre visto como neutro, menos suscetível aos conflitos entre grupos religiosos e uma garantia da precária segurança nacional. O movimento dos veteranos também colocou o presidente Aoun, ele próprio um general da reserva, em posição difícil. Ele ainda tem o apoio de muitos oficiais e veteranos das forças armadas. Mas seu partido, o Movimento Patriótico Livre (CPL), é acusado de incapaz de realizar as reformas necessárias para combater a corrupção e o dinheiro sujo na política. O CPF foi duramente atingido pelos eventos de 17 de outubro.

Uma semana depois dos protestos, dois deputados retiraram-se do bloco parlamentar que apoia o presidente. Um deles é Chamel Houkoz, filho adotivo de Aoun e também ex-general, popular no exército.

O movimento que começou em outubro responde diretamente às medidas de “austeridade” e seu impacto no setor público e na classe média; mas também à contínua alta de impostos, que afeta especialmente os trabalhadores. O governo recuou do “imposto Whatsapp” após os protestos, mas o aumento do tributo sobre o consumo, em 2017, e as elevações das alíquotas sobre álcool e fumo continuam vigentes. O movimento também é resultado da condenação unânime à corrupção entre as elites e à falta de serviços públicos de qualidade: 20% da população não tem acesso à água potável e cortes de eletricidade frequentes costumam estender-se por até 3 horas em Beirute e 12 horas no restante do país.

Os protestos também criticam o poder da elite financeira libanesa. Um de seus slogans é “Lutar contra o poder dos bancos”. De Beirute a Nabatieh, no sul do Líbano, e a Trípoli, no norte, houve repetidas manifestações diante dos escritórios do Banco do Líbano e das principais instituições bancárias privadas, que detêm respectivamente 35,3% e 40,1% da dívida do Estado. Desde a guerra civil (1975-90), o ex-primeiro ministro Rafik Hariri (assassinado em 2005) e a elite política buscaram financiar a reconstrução por meio de empréstimos do Estado junto aos bancos (alguns dos quais são propriedade de políticos), que se aproveitaram das taxas de juros.

Os protestos suscitaram novas demandas: a renegociação da dívida libanesa junto aos bancos, a redução do peso dos juros e a realocação de parte do orçamento em benefício doas maiorias e dos trabalhadores. Num país sob comando do neoliberalismo, são ideias de forte sentido contestador. Têm o apoio dos setores mais à esquerda no Hirak (o movimento): o Partido Comunista Libanês; o grupo Cidadãos no Estado, liderado por Charbel Nahas, ex-ministro do Trabalho e um dos únicos políticos não rechaçados pela população; o movimento Jovens pela Mudança; o Movimento do Povo, liderado pelo ex-deputado nacionalista árabe Najah Wakim; e a Organização Nasserista Popular, liderada por Oussama Saad, um deputado de Sidon.

Estes partidos também se opõem à política de privatizações do governo, que visa vender barato as últimas empresas estatais. Em 21 de outubro, Saad Hariri, então ainda primeiro ministro, respondeu positivamente às exigências dos manifestantes, prometendo eleições gerais antecipadas e anunciando que os bancos libaneses ajudariam a reduzir o déficit do Estado. Mas também anunciou a privatização total ou parcial da empresa aérea libanesa, das telecomunicações, do porto de Beirute e do Cassino do Líbano, sem nenhuma medida de redistribuição de riqueza.

As ideias do movimento de protesto – uma reestruturação da dívida pública, rechaço às privatizações, mudança da economia, hoje rentista e baseada em importações, com ênfase na produção e a redistribuição de riquezas em favor das classes empobrecidas – avançaram muito desde 17 de setembro, mas há limites. Alguns membros do movimento ficariam satisfeitos com uma versão “limpa” do capitalismo libanês, em que uma nova lei eleitoral e o combate à corrupção sanariam todos os males. E diversos partidos confessionais, inclusive o Hezbollah, opõem-se ao Hirak.

O Hezbollah retira-se

A prioridade para o Hezbollah é defender o presidente Aoun, seu aliado mais fiel desde 2006. Aoun dá ao Hezbollah proteção, num contexto das sanções norte-americanas contra o grupo xiita e das frequentes tensões com Israel no sul do país. Diferente do Hezbollah e de seu aliado, o movimento Amal, ou do CPL, outros grupos políticos baseados em comunidades religiosas adotaram algumas das propostas do movimento, como a ideia de um governo de tecnocratas. Entre estes, estão as Forças Libanesas (um grupo cristão) e o Partido Socialista Progressista (druso), dirigido por Walid Jumblatt.

O Líbano tem três escolhas. Ele pode caminhar para maior justiça social, sob impulso dos setores mais à esquerda no movimento. Pode retornar aos princípios de solidariedade entre as comunidades religiosas. Na hipótese de um colapso econômico total, é possível que os partidos confessionais façam, enfim, um retorno triunfante: na ausência de um Estado para assegurar a redistribuição, eles tentariam ocupar o espaço e garantir por si mesmos algum apoio aos mais pobres.

Ou o Líbano pode pedir um pacote de resgate ao Fundo Monetário Internacional. O custo seria “austeridade” ainda maior e venda das empresas estatais e outros ativos públicos na bacia das almas. Mas esta saída despertaria provavelmente uma radicalização dos movimentos de protesto.

Publicado originalmente no no Le Monde Diplomatique e traduzido por Antonio Martins, editor do Outras Palavras.

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