Correio da Cidadania

Mulheres muçulmanas importam

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A história do feminismo, quando contada, está quase sempre pautada nas mulheres ocidentais e suas lutas, como se as mulheres não ocidentais não tivessem pautas que justificassem suas lutas e agendas.

É importante considerar que, mesmo se essas não derem o nome de ‘feminismo’ para suas lutas, não significa que não estejam lutando. Convenhamos, não é o nome que determina o movimento, mas é a luta por direitos que deve prevalecer. O que quero dizer é que o nome pode se configurar de outras formas em diferentes tempos e contextos.

Venho há tempos refletindo a respeito da dificuldade de determinadas intelectuais ou políticas em incluir mulheres muçulmanas, que usam lenço e outras vestimentas islâmicas, como mulheres que também lutam por igualdade de direitos, mesmo não atrelando a luta ao termo ‘feminismo’.  

Aliás, muitas até desconhecem o termo e consideram, à primeira vista, ir contra a religião, até que conhecem o significado real do conceito e, então, ‘tomam partido’ – ou não. Entretanto, elas/nós estão/estamos a defender suas/nossas pautas. Isso não implica, a meu ver, ser mais ou menos feminista, mas conceber de forma plural a luta das mulheres.

Considero importante olhar para além das ondas do feminismo e ver outros substratos dessa luta que tanto mexem com essas mulheres. Não se enganem, estamos todas na luta, talvez não com os mesmos objetivos e formas, mas é preciso reconhecer que são lutas e que elas também importam.
            
Outro dia vendo uma postagem de uma amiga, Carla Mustafa, senti-me contemplada pelo termo que ela utilizou. Mustafa disparou: isso é ‘feminismo sinhá’. Segundo ela o termo explicita o autoritarismo "que as sinhás tinham com relação a sua propriedade, como algo que pudessem dispor e subjugar da maneira que convém, sem reconhecer naquelas mulheres escravizadas a dignidade delas, elas como pessoas e não objetos. E esta relação colonial ultrapassa gênero porque o corporativismo branco/ocidental coisifica quem não é padronizado, por isso se sentem no direito de impor regras e dominar aquele corpo não ocidental. Isso é tão orgânico que as pessoas nem se dão conta que aquela "opinião/comentário" na verdade é uma opressão".

Esta semana vimos a vitória da Mangueira – escola de samba carioca – que contou/cantou lindamente em seu refrão:

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.
 
Fiz questão de ressaltar nos meus comentários em redes sociais que Malês significa muçulmanos (1). Mas vale pontuar ainda que Mahins remete ao nome de Luiza Mahin, também personagem da história do Brasil, que participou da articulação das revoltas e levantes de escravos na Bahia do 19, inclusive da Revolta do Malês.

A história de Luiza Mahin foi narrada em um lindo e forte romance escrito por Ana Maria Gonçalves ‘Um defeito de cor’, publicado em 2006. O apagamento do papel das mulheres na nossa história seja nas revoltas, nas religiões, na ciência, na vida pública de modo geral, é bastante comum. Sempre indico a leitura do livro de Fatima Mernissi El poder olvidado - Las mujeres ante un Islam en cambio, no qual a autora também aproveita para fazer sua crítica ao feminismo ocidental;

“Uma mulher que se considera feminista, ao invés de se vangloriar de sua superioridade sobre as mulheres de outras culturas e por ter consciência de sua situação, deveria se perguntar se é capaz de compartilhar isso com as mulheres de outras classes sociais de sua cultura” (pág. 47).
            
Por isso, desconsiderar que outras mulheres têm outras lutas e reivindicações que não são as nossas, e que não apresentam a mesma forma de proceder, não as invalida em nada. E pode nos acarretar sempre um ‘roubo’ neste lugar de fala, pois não basta saber teoria ou ‘lacrar’, como se diz com frequência sobre textos de algumas mulheres que pensam ‘representar todas as mulheres e suas demandas’, mas no fundo estão a reproduzir o feminismo sinhá.

Há alguns anos participei de um evento da comunidade muçulmana, no qual um interlocutor me apresentou como representante de mulheres muçulmanas, algo que corrigi de imediato. Não represento mulheres muçulmanas, porque o que são ‘as mulheres muçulmanas’ e suas demandas é algo muito variado, e seria uma pretensão me colocar neste lugar. O meu lugar será sempre o de buscar compreender os múltiplos significados desta luta por dentro e por fora da comunidade muçulmana.

A escuta atenta aos diversos níveis de apropriação da luta de mulheres que se recusam o termo de ‘salvação’, porque já se consideram libertas pela religião que professam. Eis o refinamento que busco diariamente em minhas pesquisas.

Na mesma linha faço uso do texto de 1992 de Lila Abu Lughod – Writting Against Culture: ela compreende a importância de se repensar a separação entre o eu e o outro, entre o antropólogo ocidental e o pesquisado não-ocidental, sendo esta uma das estratégias para escrever contra a cultura.

Abu Lughod utiliza o conceito feminista de Liana Lewis de posicionalidade, um conceito que retoma de forma bem apropriada o relativismo. O termo Halfies cunhado por Kirin Narayan e emprestado por Abu Lughod é utilizado pela autora para se referir a pessoas com identidade múltiplas devido a fatores como migração, filiações etc.

Essa multiplicidade de identidades contribui para escrever contra a ‘cultura’, pois esta é construída sob vários aspectos, contextos e pertencimentos, uma diversidade de configurações, que acabam reforçando as separações entre “eu” e o “outro”.

Houria Bouteldja em seu texto Raça, classe e gênero: uma nova divindade de três cabeças vai apontar as nuances que estão por trás dos termos raça, classe e gênero para aquelas que descobriram a interseccionalidade na França. Ela diz que a teoria da interseccionalidade colide com o muro da realidade.

Bouteldja adverte que é complexo que a teoria dê conta da realidade, pois há fatores que devem ser levados em conta, tais como: 1) o contexto; 2) a dialética entre opressões diferentes; 3) a estratégia política.

Em outras palavras, a perspectiva decolonial a partir da qual o discurso de Houria Bouteldja se anuncia compreende que a colonialidade global a que este processo se iniciou em 1492 com a chegada dos europeus à América permanece atuante nos dias de hoje. Basta compreender, por ora, que em uma hierarquia de opressão a mulher negra é mais oprimida que o homem negro. É preciso balizar sempre na hierarquia os lugares ocupados por homens e mulheres, sejam brancos ou negros.

Se localizarmos nesta hierarquia mulheres muçulmanas negras, que usam lenço, serão elas ainda mais vilipendiadas pela estrutura de poder ou aquilo que poderíamos chamar de machismo estrutural. Isso pode ser mais facilmente identificável quando se trata de uma mulher branca bem situada nesta estrutura de poder, mas será certamente muito mais difícil se esta mulher for negra, indígena, berbere, enfim, quanto mais longe de um determinado padrão, mais longe estará dos direitos e dos lugares de fala que lhe deveriam ser atribuídos.

Precisamos descolonizar os discursos quando se tratam de mulheres muçulmanas, negras, estrangeiras, brasileiras e outras, a fim de que o processo de mudança seja para todas. O fim do machismo estrutural deve ser uma meta que compreenda as lutas dessas mulheres em relação as suas próprias opressões, histórias e narrativas.

O movimento feminista é um grande mobilizador de todas essas observações, mas não é o único, pois há outras formas de se compreender a realidade vivida. Por fim, não se pode ficar preso a um recorte de luta ou de mulheres. Precisamos abandonar nosso feminismo sinhá e ampliar nossa escuta para outras dores, outras opressões, se quisermos dar fim ao machismo estrutural que também está presente em nós, mulheres.

As demandas estão além dos nossos movimentos acadêmicos, elas acontecem nas próprias comunidades, contextos diversos. É preciso compreender e respeitar essas formas de mobilização que são pouco visibilizadas, mas que no fundo são as que fazem a estrutura ruir, a estrutura do machismo, do patriarcado, das violências cotidianas a que as mulheres são cotidianamente submetidas.
 
Nota:

Conferir o documentário que produzi em 2015 Allah, Oxalá na Trilha Malê. https://vimeo.com/135997120

Francirosy Campos Barbosa é Antropóloga, livre-docente no Departamento de Psicologia, FFCLRP/USP, pós-doutora pela Universidade de Oxford, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes. Autora do livro: Performances Islâmicas em São Paulo: entre arabescos, luas e tâmaras. São Paulo, Edições Terceira Via, 2017.

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