Correio da Cidadania

“O Sahel concentra todas as crises do mundo”

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Sahel significa “fronteira” e na África ganha a forma de gigantesco cinturão de aridez, onde cabem 22 países. Sinônimo de sofrimento prolongado, o Sahel é marcado pela seca, pela crônica falta de alimentos, por guerras e conflitos ancestrais. Para complicar, com a crise líbia, o deserto do Saara passou a esconder terroristas e gangues do crime organizado internacional. Dez milhões de pessoas, entre as quais 1,4 milhão de crianças, dependem 100% da ajuda internacional.

Em linha horizontal, o Sahel vai da Mauritânia à Eritreia e inclui países com títulos extremos, como o Níger (o país mais pobre do mundo) e o Mali (a maior taxa de natalidade do planeta). “O problema do Sahel é o nosso problema”, diz Ángel Losada, o embaixador espanhol que é o atual Representante Especial da União Europeia para o Sahel. Está a três horas da Europa e é um problema que só aumenta. Em 1950, havia 30 milhões de pessoas no Sahel e em 2000 havia 367 milhões. Hoje há quase 500 milhões e as previsões dizem que em 2050 o número vai duplicar.

Nesta segunda-feira, os chefes de Estado do G5, a recém-criada aliança que junta Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade, reuniram-se em Bamako para uma reunião extraordinária. O embaixador Losada esteve em Lisboa para um seminário no Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre o Sahel, que juntou vários embaixadores da União Europeia, e logo a seguir partiu para o Mali. Um dos planos do G5, que a UE apoia, é a criação de um exército comum regional para lutar contra o crime organizado e o terrorismo.

O Sahel é uma prioridade europeia recente. Quais foram os progressos nestes três anos da nova estratégia?

Primeiro, temos de colocar o Sahel no topo das agendas internacionais. Ou seja, explicar que a segurança na Europa depende muito da segurança no Sahel. Com a crise na Líbia, as relações de vizinhança mudaram. Mas a estratégia europeia para o Sahel não é nova. O posto só tem três anos, mas a política é de 2011. O posto foi criado depois da crise no Mali. O meu predecessor negociou o processo de paz no Mali e com isso ganhou uma visão mais alargada do problema. A União Europeia foi a primeira a adotar uma estratégia para o Sahel. Agora, há 16! A do FMI e muitas outras.

A nossa estratégia centra-se na ideia de que não há segurança sem desenvolvimento e não há desenvolvimento sem segurança. E dirige-se a cinco países, que para os europeus são o núcleo duro do Sahel: Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade. No G5, todos estão conscientes de que se não houver paz no Mali, não há paz no Sahel. Não se pode olhar de forma isolada ou nacional para questões como a segurança ou o contraterrorismo, a luta contra o tráfico de drogas.

Em termos de ameaça à segurança europeia, o Sahel é mais importante do que qualquer outra região em África?

O Sahel tem um impacto direto na nossa segurança. Nestes meses, visitei todos os países mediterrânicos e vários do centro e do norte: vejo que hoje todos compreendem isto. Aliás, os países europeus participam cada vez mais em missões da União Europeia e da ONU na região. Quanto a resultados: faço parte da mediação do processo de paz do Mali e do comité que segue a implementação do acordo assinado na Argélia.

Neste momento, estamos num ponto muito complicado, porque uma das partes abandonou a mesa das negociações e temos de ajudar a convencê-los a regressar. A Europa teve um papel muito importante em atrair apoio de vários países para ajudar no processo de paz no Mali. Mas também no processo de regionalização. O G5 decidiu juntar todos os seus meios, recursos e capacidades num projeto comum para garantir a segurança na região.

Que projeto é esse?

O G5 quer criar um exército comum. Na cúpula de chefes de Estado do G5 em Bamako vamos discutir segurança. Mas a União Europeia não dá apenas apoio político. Dá também apoio financeiro e de reforço das instituições. A UE é a principal organização doadora na região. Além da ajuda normal – 3,5 bilhões de euros em cinco anos – decidimos criar um fundo fiduciário de 1,8 bilhão para as causas profundas da migração: segurança, controle e gestão de fronteiras.

Além disso, temos a ferramenta institucional: as missões no terreno. A UE já deu formação a 70% do exército do Mali e há missões civis que fazem formação de polícias, juízes e de todo o aparelho judiciário. E também no Níger. O Sahel concentra todas as crises do mundo: a crise do terrorismo, a crise da migração, a crise econômica, a crise ambiental.



Como é que a estratégia europeia para o Sahel se cruza com a estratégia do contraterrorismo?

De certo modo, o documento estratégico europeu não interessa. O que interessa é o Plano de Ação Regional para o Sahel, que tem quatro prioridades: juventude, luta contra a radicalização – luta e análise, porque nós não sabemos muito sobre radicalização –, migração e gestão de fronteiras, e luta contra o tráfico ilegal. Este último é muito importante. A criação do G5 permite aos cinco países trabalharem de forma conjunta no controle das suas fronteiras.

O G5 está a construir um novo conceito de segurança no qual os exércitos dos cinco países relacionam-se entre si e trabalham juntos contra o terrorismo. O G5 criou uma estrutura de segurança regional e quer até criar escolas comuns de segurança. A UE vai apoiar a Escola de Segurança do Sahel, criada pelo G5, com o novo fundo fiduciário.

O Sahel não está no nosso radar e até a palavra é desconhecida nas elites europeias.

O Sahel é a três horas de Roma, de Alicante, de qualquer lugar. O Sahel está mesmo aqui ao lado e com a crise líbia tudo se complicou muitíssimo. Se não prestarmos atenção ao que está a acontecer no Sahel, vamos ter um problema muito maior no futuro.

O ministro do Interior do Níger disse-me que, há uns anos, o deserto do Saara era para eles um tampão de segurança, tudo parava quando chegava ao Saara; mas hoje, como é impossível controlar as fronteiras com a crise líbia, o Saara tornou-se um problema real.

Ninguém consegue controlar o que se passa no deserto. Todo o tipo de traficantes e criminosos se esconde lá. Estamos a falar de países com áreas imensas, como o Níger ou o Mali. A França cabe no Norte do Mali. É por isso que a União Europeia está a ajudar estes países nas suas estruturas de segurança.

Por que vir a Lisboa fazer um seminário com os embaixadores europeus sobre o Sahel? Os europeus estão a subestimar a região?

Não acho que se esteja a subestimar. Mas as populações do Sahel estão a aumentar muito. Em alguns países vão duplicar em 18 anos e no Níger a média de filhos é de sete crianças por mulher – a média! Se não os ajudarmos a absorver a sua própria população, em 20 ou 40 anos o Sahel vai ter um problema ainda mais sério. E o problema do Sahel é o nosso problema. O seminário de Lisboa é o terceiro do gênero. Fizemos em Madrid e em Berlim. Servem para afinar a estratégia neste novo contexto do G5.

Os seus colegas europeus não lhe dizem que estão demasiado ocupados para falar sobre o Sahel porque Donald Trump está a desfazer a ordem internacional e o Reino Unido está de saída da União Europeia?

Não, isso não me acontece. Eu respondo a uma necessidade identificada pela União Europeia e o meu mandato acaba de ser renovado. Nenhum país pode enfrentar sozinho estes problemas. Se nos juntarmos, podemos pelo menos fazer parte do que acontece na região.

Mas disse que a sua primeira preocupação é “colocar o Sahel no topo das agendas internacionais”...

Sim, mas em nível mais alargado, aos países de Leste e ao centro da Europa. O objetivo da reunião de Lisboa não é chamar a atenção para o Sahel. Isso já existe. O objetivo é estruturar e articular a resposta aos problemas e ajudar-me a fazer o meu trabalho como representante europeu.

O que mais o surpreendeu neste primeiro ano de trabalho no Sahel?

O processo de paz no Mali e a reação dos diferentes movimentos, que lutavam uns contra os outros e agora estão sentados à mesma mesa. É o nosso maior desafio. Como surpresa positiva, foi a vontade política dos chefes de Estado do G5 para trabalharem juntos. Eles também já perceberam que sozinhos não resolvem nada. Trata-se de gestão de fronteiras, luta contra traficantes e contra o crime organizado, que está a gangrenar, literalmente, o poder do Estado.

Esses são problemas de muitos países africanos. O que tem o Sahel de particular?

O Sahel tem características muito próprias. É o fim de uma parte da África e é o princípio de outra parte da África. E há dicotomias importantes. Árabes e tuaregues versus negros, que lutam há séculos; Norte versus Sul; Leste versus Oeste; agricultores versus pastores; terras onde há água versus terras secas; centro versus rural. Lutam pela água ou lutam porque um animal comeu a produção e o agricultor matou o animal do pastor e a seguir há uma vingança. O Sahel é um lugar onde estão concentradas as maiores crises do mundo.

É um cinturão de 5700 quilômetros de comprimento, que vai do Atlântico ao Mar Vermelho, e mil quilômetros de largura. A palavra Sahel vem do árabe e significa “fronteira”. É um lugar onde duas culturas embatem há séculos. São um pouco Magreb e um pouco África negra. São como o ponto de encontro de duas placas tectônicas. Só isso seria relevante em qualquer lugar do mundo. Mas quando vemos que esta junção de placas é ali, com uma população a crescer em enorme velocidade, percebe-se porque a qualquer momento pode explodir.

Por Bárbara Reis; retirado do Diário Público.

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