Milei contra a história argentina
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- Pedro Brieger
- 07/05/2024
Foto: Emiliano Lasalvia/AFP
A Argentina marchou massivamente pela educação pública, um dos orgulhosos pilares deste país que agora é atacado por Javier Milei. O epicentro, como costuma acontecer, foi a cidade de Buenos Aires, mas em todo o país centenas de milhares de pessoas saíram às ruas.
Milei despreza tudo que é público, inclusive a educação. No seu dogma, o Estado não deveria existir e alguns dos seus principais dirigentes ousam mesmo dizer que a educação nem deveria ser obrigatória, em prol de uma suposta “liberdade”.
Isto foi afirmado abertamente por um dos seus deputados mais próximos quando disse “liberdade é que, se você não quer mandar seu filho para a escola porque precisa dele na oficina, você pode fazê-lo”. Este pensamento, mais típico do século 18 ou 19, é o que acompanha aqueles que hoje dirigem os destinos da Argentina. Incrível, mas certo.
Dias antes das mobilizações, as redes sociais foram inundadas com depoimentos de quem cresceu em lares muito humildes e conseguiu um diploma universitário, ao qual só puderam ter acesso graças à universidade pública gratuita. Basta um exemplo: um psicólogo disse que seu pai, filho de imigrantes italianos, trabalhou como lavrador desde os oito anos de idade. Para fugir da miséria, mudou-se para a grande capital onde trabalhou como operário e se casou com uma mulher cuja história era muito parecida. Com esforço conseguiram ter um pequeno armazém em sua casa, num bairro periférico e pouco atraente da classe trabalhadora, porque era um dos locais onde o lixo da cidade era queimado. A filha mais velha é engenheira agrônoma e a mais nova psicóloga. Ambos se formaram na Universidade de Buenos Aires. Eles nunca teriam conseguido isso sem a educação pública gratuita.
É preciso lembrar que em 1918 houve uma revolta estudantil na cidade de Córdoba contra as estruturas conservadoras da época para abrir as universidades às classes médias. Este movimento, conhecido como “Reforma Universitária”, permaneceu na memória coletiva como o primeiro grande passo para a inclusão educacional e social.
No seu Manifesto Liminar foi dito que a “última corrente que no século 20 nos
prendia à antiga dominação monárquica e monástica” foi quebrada. O peronismo em 1949 deu um passo além e eliminou as taxas para que a universidade fosse gratuita, deixasse de ser elitista e pudesse ser acessada por trabalhadores e setores populares. O impacto foi imediato e o resultado produziu uma mobilidade social que praticamente não existia. Hoje, quase 80% dos que estudam licenciaturas o fazem em universidades públicas e apenas 20% em universidades privadas.
A educação pública e gratuita faz parte do DNA argentino, embora talvez muitos dos que saíram às ruas não conheçam o documento da Reforma Universitária, nem a lei da liberdade de 1949. Além disso, talvez tenham votado em Javier Milei cansados da política “tradicional”, a mesma que, paradoxalmente, permitiu o acesso gratuito à educação. Pouco importa o voto de quem foi às mobilizações, todos sabem que a Argentina tem cinco ganhadores do Prêmio Nobel, formados em universidades públicas.
Ao contrário de quase todos os países da América Latina e do Caribe, a universidade argentina não se caracteriza por ser elitista. Por ser gratuito e aberto, em princípio, é acessível a toda a população. É sempre curioso ouvir comentários de responsáveis de organizações internacionais perguntando sobre cotas de inclusão para minorias e tentando promover a chamada “ação afirmativa” ou “discriminação positiva”. Eles geralmente não entendem quando lhes dizem que na Argentina NÃO são necessárias “cotas” porque a universidade é de acesso gratuito. Todos entram, independentemente da origem ou nacionalidade.
Há uma frase cunhada por milhares de imigrantes espanhóis, italianos, polacos e muitos outros imigrantes – muitos deles analfabetos – que fugiram da pobreza europeia entre as duas grandes guerras: “o meu filho, o médico”. Aqueles que chegaram à Argentina com pouca ou nenhuma escolaridade repetiram essa frase em espanhol rústico, típico de um analfabeto, para se referir aos seus filhos universitários formados no ensino público. Poucos sabem, e também é irrelevante, que a frase é o título de uma peça de teatro de 1903 que conta a história de um fazendeiro cujo filho volta da cidade grande com diploma universitário. Lá você pode ver os conflitos que surgem como resultado do choque cultural entre pai e filho. Para a memória coletiva, a frase “meu filho médico” é uma síntese do que representa o avanço social, como pode ser visto na foto que ilustra esta nota.
Milei despreza a educação pública, da mesma forma que despreza a saúde pública e não esconde isso. Ele já disse repetidas vezes: “O melhor sistema educacional possível é aquele em que cada argentino paga pelos seus serviços, isso é verdade, não é discutível”.
O seu dogmatismo leva-o a pensar que aqueles que saíram em massa às ruas no dia 23 de abril em defesa da educação pública são todos comunistas, embora tenham participado milhares de pessoas que votaram nele. A mensagem nas ruas era clara como cristal: a educação pública e gratuita não é tocada. Milei é hoje uma anomalia que vai na direção oposta da história argentina. E as ruas já estão lhe dizendo.
Pedro Brieger é jornalista, sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires.
Traduzido pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.
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