Correio da Cidadania

O que a mídia hereditária não fala sobre a crise de violência no Equador

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Militares do Exército do Equador. Créditos: Carlos Silva-Presidencia Ecuador

A crise da escalada de violência que atinge o Equador tem estado na imprensa internacional desde o último ano quando uma série de ataques vitimaram candidatos, incluindo um à presidência, em plena campanha eleitoral. Ganhou um novo episódio quando o presidente Daniel Noboa declarou “conflito armado interno” no país, uma verdadeira guerra civil que busca “neutralizar” cerca de 20 facções criminosas que atuam em terras equatorianas.

Com a medida, Exército e Polícia Nacional ficaram autorizados a intervir em todo o território do Equador para conduzir operações militares. O decreto ainda identifica como inimigos internos 22 organizações apontadas como facções criminosas. Entre elas estão os grupos Los Lobos e Los Choneros, que em simbiose com o próprio Estado e setores da economia são protagonistas das recentes fugas de prisões e do quadro de violência endêmica que vive o país.

Desde então, ainda que em doses homeopáticas, os principais meios de comunicação do Brasil têm noticiado episódios hediondos de ataques de facções criminosas e operações espetaculares das forças de segurança equatorianas contra esses grupos. A cada novo tiro e a cada nova explosão, uma nova manchete sem grandes novidades, só mais sangue.

O bang-bang editorial da imprensa hereditária, no entanto, acaba por simplesmente mobilizar seu leitor pelo legítimo medo da violência urbana e do crime organizado, uma questão muito mais antiga no Brasil que no Equador, enquanto alguns aspectos centrais da crise equatoriana passam longe do debate público.

Um deles foi levantado pela reportagem publicada nesta Revista Fórum que noticiou a declaração de “conflito armado interno”. Àquela altura já apontávamos que a “guerra civil” do bilionário Noboa poderia se voltar contra os movimentos sociais.

“Além do crime organizado, o Equador também tem movimentos sociais extremamente organizados, como a poderosa Conaie (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador), que protagonizou as revoltas de 2022 contra o ajuste neoliberal do então presidente Guillermo Lasso. Existe a preocupação de que o novo decreto também atinja movimentos como a Conaie e as próprias comunidades por tabela”, dizia um trecho da matéria.

E o que era uma preocupação se tornou realidade e foi documentado nos escritos de dois intelectuais: o cientista político equatoriano Luis Cordova-Alarcon e o jornalista uruguaio Raul Zibechi.

Em artigo publicado no site Desinformemonos, do México, Zibechi aponta que a “guerra civil equatoriana” é, também, uma guerra contra o movimento indígena. Ele recupera um texto publicado por Pablo Dávalos, economista equatoriano, que aponta que a nova “guerra civil” equatoriana se insere na chamada “Doutrina do Choque”, que prevê a instalação de uma crise sem precedentes para criar as possibilidades de um ajuste econômico neoliberal.

A partir das reflexões de Dávalos, Zibechi relembra a grande revolta de 2019 contra o ajuste neoliberal do governo de Guillermo Lasso (que voltaria a se repetir em 2022) e aponta o advento das facções criminosas no âmbito da repressão aos movimentos sociais, o que inclui, por sua vez, a desarticulação do Estado-nação. A situação pode ainda desembocar em um processo de simbiose entre essas facções e o próprio Estado como o registrado com as milícias no Rio de Janeiro e com os paramilitares em Medellín, na Colômbia.

“Não foi apenas mais um levante organizado pela CONAIE em 2019. Após treze dias de confrontos no centro histórico de Quito, o governo teve que recuar em suas principais propostas. No entanto, dois elementos decisivos marcaram a luta. O primeiro é o envolvimento massivo de jovens urbanos de origem indígena que se juntaram ao levante em milhares e desempenharam um papel crucial nos confrontos. Eles são filhos e filhas de migrantes andinos, especialmente do sul, que transformaram seus bairros em fortalezas contra o regime pela primeira vez na história recente. O segundo é que as organizações indígenas implantaram suas próprias forças de autodefesa, impediram a ação de infiltrados e detiveram mais de 200 policiais entregues a organizações internacionais como a Cruz Vermelha. A polícia foi completamente derrotada, algo que as classes dominantes não podem tolerar. Na verdade, nos meses seguintes, houve uma compra em massa de equipamentos antidistúrbios e uma tecnificação e militarização das forças repressivas”, escreveu Zibechi.

Havia toda uma nova geração de militantes formada que agora se vê de mãos atadas com a declaração de conflito armado e o estado de exceção. Após a tomada de um canal de televisão ao vivo (“que alguns analistas acreditam ter sido uma operação de bandeira falsa", frisa Zibechi), foi imposto um toque de recolher das 23:00 às 05:00, proibiram-se reuniões públicas, autorizou-se a violação de domicílio, o país foi militarizado e a educação e as atividades públicas retornaram ao formato digital, como aconteceu durante a pandemia de Covid-19.

“Por que o governo de Guillermo Lasso (2021-2023) permitiu que os grupos de crime organizado se consolidassem e ampliassem seu controle sobre os territórios? Com um crime organizado ativo e poderoso, o poder se consolida, com pouca legitimidade, mas com toda a força maciça do aparato armado do Estado. Se o governo não tivesse ‘libertado’ o crime organizado, teria de optar por um golpe de Estado [para fazer seus ajustes], algo politicamente mais custoso e com grandes chances de fracassar”, escreveu Zibechi.

O uruguaio finaliza seu artigo citando o Gerard Szalkowicz, jornalista argentino, que aponta que “a trama que está destruindo o Equador tem peculiaridades locais, mas responde a um modelo que foi fortemente estabelecido nos anos 80 no México e na Colômbia”.

O tema será aprofundado pelo artigo “Equador, o plano de Washington”, escrito pelo cientista político Luis Cordova-Alarcon, da Universidade Central do Equador, e publicado também no site Outras Palavras, já traduzido em português.

Alarcon começa seu artigo informando a total falta de qualificação do ministro da Defesa, Giancarlo Loffredo, nomeado por Noboa, que é instrutor de defesa pessoal e tik toker. Já para dirigir o sistema penitenciário, importante pivô da crise com as facções criminosas, a escolha foi por um general reformado do Exército. Também nomeou amigos pessoais para chefiarem a Segurança Pública nacional e os serviços de inteligência. Ou seja, o novo presidente não apresentou qualquer ideia de projeto para contar a escalada de violência.

Em seguida o pesquisador dá maiores detalhes da trama envolvendo as facções. Neste contexto, explica Alarcon, ocorre a fuga de Alias Fito, o líder dos Los Choneros e, provavelmente, o mais famoso criminoso vivo do país. Detido desde 2009 por assassinar a diretora da Penitenciária do Litoral (a prisão mais conflituosa do Equador), ele fugiu em 2013, quando foi transferido para La Roca, prisão de segurança máxima inaugurada pelo ex-presidente Correa, e foi recapturado meses depois. Fito torna-se o maior líder criminoso do país, de vez, em dezembro de 2020 após a morte de Jorge Luis Zambrano. No entanto, a passagem de bastão causa uma fragmentação na facção e uma série de massacres pipocam nas prisões do Equador.

“Em 12 de agosto de 2023, para desviar a atenção do assassinato do candidato presidencial Fernando Villavicencio ocorrido três dias antes, o governo Lasso decidiu transferir Fito de volta para La Roca. Mas não demorou dez dias para retornar ao Presídio Regional de Guayaquil graças a uma ordem judicial. Em seguida, lançou um videoclipe com um narcocorrido composto em sua homenagem. Mais uma vez, Fito mostrou seu poder ao pais a partir da prisão.

Portanto, quando a notícia da sua fuga se tornou pública – em 6 de janeiro – o governo ficou nu diante de um país estupefato. Nenhuma autoridade se atreveu a reconhecer a evasão do veterano criminoso, enquanto mais de 3.500 soldados entraram nas prisões de Guayaquil para encenar diante das câmeras de televisão que o Estado ‘recuperou o controle’ dos presídios”, escreve Alarcon.

“Encorajado, na tarde de segunda-feira, 8 de janeiro, o presidente decretou estado de emergência em todo o território nacional, e à noite estourou o turbilhão: carros queimados em via pública, agentes penitenciários sequestrados, incêndios dentro e fora dos presídios. Sob a luz do dia, o espetáculo criminoso ganhou mais visibilidade e, ao mesmo tempo, ficou evidente a incompetência do Estado: Fabricio Colón Pico, um dos cabeças de Los Lobos, também havia fugido, junto com dezenas de outras pessoas, do Presídio de Riobamba. Colón Pico foi capturado 48 horas antes de sua fuga, depois que o Procurador-Geral do Estado o identificou como o executor do assassinato de Villavicencio e organizador de um ataque contra ele.

Tudo isto aconteceu durante o estado de emergência. Na terça-feira, durante o noticiário do meio-dia, a TC Televisión sofreu uma agressão criminosa que foi transmitida ao vivo, tendo sua equipe jornalística subjugada e assediada por criminosos armados diante da comoção generalizada. Tal como aconteceu com o assassinato de Villavicencio, as imagens deste acontecimento correram o mundo. À tarde, o governo emitiu outro decreto executivo declarando o ‘conflito armado interno’ e convertendo 22 grupos criminosos num ‘objetivo militar’. Assim, Noboa começou a sentir o calor escaldante do inferno homicida que se converteu este país andino”, prossegue.

Alarcon então analisa a interação entre três variáveis dependentes: violência letal, as economias ilícitas (especialmente o narcotráfico) e os grupos de crime organizado no Equador. Ele menciona a relação entre a quebra das redes de proteção contra extorsão patrocinadas pelo Estado e o aumento da violência letal. O autor cita exemplos de líderes criminosos que prosperaram durante o governo Correa, apesar dos supostos "melhores resultados" na luta contra o narcotráfico.

Também destaca a expansão da "zona cinzenta da criminalidade" durante esse período e a falta de ação subsequente para abordar a situação. O texto menciona a queda na taxa de homicídios entre 2009 e 2016, seguida por um aumento a partir de 2019, e sugere que a ruptura das redes de proteção pode explicar essa mudança. Ele aborda eventos violentos, como ataques de grupos criminosos e sequestros, durante os anos subsequentes ao governo de Correa. Além disso, menciona casos de corrupção e tráfico de influência em entidades públicas, incluindo a indústria de exportação de bananas, a principal do país e a mesma que fez a fortuna do atual presidente Daniel Noboa.

“No mesmo período em que o governo de Correa e o vice-presidente Jorge Glas Espinel alcançaram os ‘melhores resultados’ na luta antinarcóticos – segundo a DEA -, a organização criminosa de Los Choneros também conseguiu se expandir e consolidar-se até se tornar a maior organização equatoriana de tráfico de drogas. Um dos melhores pesquisadores do problema carcerário no Equador, o antropólogo Jorge Núñez, argumenta no mesmo sentido. Segundo suas investigações, os Los Choneros se fortalecem dentro das prisões graças ao fato de a inteligência policial trocar informações com membros de gangues em troca de vantagens. A Unidade de Inteligência Penitenciária, criada em 2014, tornou-se uma peça-chave da inteligência antinarcóticos para a Polícia Nacional. Eles recrutaram líderes de organizações criminosas como informantes e Fito foi um deles”, escreve Alarcon.

E a simbiose entre o narcotráfico e a classe dominante equatoriana seu deu para além da indústria bananeira e da inserção de traficantes em meios policiais. O próprio ex-vice-presidente Glas Spinel, preso múltiplas vezes por crimes de corrupção, acabou solto em 2022 graças à colaboração do traficante Leandro Norero. O próprio advogado de Glas, Harrison Salcedo – assassinado em 2021 por matadores de aluguel – também atendia Zambrano, o histórico líder dos Los Choneros.

Nesse sentido, o cientista político descreve a desarticulação do Estado-nação equatoriano, dialogando com a questão da Doutrina do Choque apontada por Zibechi. A total falência da segurança pública do Equador seria, no seu ponto de vista, a porta de entrada para o controle dos EUA nos processos de militarização e securitização do país.

“A declaração de ‘conflito armado interno’ do presidente Noboa enquadra-se como uma luva na estratégia que o Pentágono preparou desde que o ex-presidente Lasso propôs à Casa Branca a necessidade de um 'Plano Equador' em 8 de junho de 2022”, aponta Alarcon.

Em dezembro do mesmo ano, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a “Lei de Associação Equador-Estados Unidos” para que no prazo de 180 dias o Departamento de Estado pudesse desenhar uma estratégia de intervenção para o país sul-americano. Nesse contexto, em 2023 foi estabelecido um Grupo de Trabalho Bilateral de Defesa entre os dois países, que resultou num acordo para investir mais de 3,1 bilhões de dólares nas Forças Armadas Equatorianas. Algo semelhante ocorreu na Colômbia nos anos 90 e no México nos anos 2000 e bem, a violência não diminuiu. Pelo contrário, aumentou junto com os lobbies das polícias (que também vemos no Brasil) e os lucros das indústrias correlatas.

Alarcon aponta que o acordo para o Plano Equador deve ser implementado até 2030. Em outubro passado o chanceler equatoriano e o embaixador dos Estados Unidos assinaram o “Acordo sobre o Estatuto das Forças”, que estabelece os privilégios, subsídios e condições que terão o pessoal do Departamento de Defesa e seus contratantes estrangeiros no território equatoriano.

“Assim, o último ciclo de violência criminal abriu uma janela de oportunidade para que o alto comando das Forças Armadas e a Embaixada dos Estados Unidos modificassem o cenário estratégico a seu favor. Com a declaração de ‘conflito armado interno’, as Forças Armadas assumem a direção do Estado, subordinam a Polícia Nacional e fecham caminho aos questionamentos sobre os seus membros devido à infiltração do crime organizado. Nestas circunstâncias, a declaração de “conflito armado interno” está gerando o efeito desejado pelas elites econômicas e pela direita neoliberal de ancorar a governabilidade numa liberalização total da economia, no quadro de uma militarização progressiva da sociedade”, finaliza Alarcon.

Raphael Sanz é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter da Revista Fórum, onde esta entrevista foi originalmente publicada.

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