Correio da Cidadania

Autoritarismo e indulto: um ano de governo Boluarte

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Manifestantes y PNP se enfrentaron en marcha contra indulto a Alberto Fujimori (VIDEO)
Reprodução TV

"O nefasto trabalho obstrucionista da maioria dos congressistas, identificados com interesses racistas e sociais em geral, conseguiu criar o caos para assumir o governo à margem da vontade popular e da ordem constitucional." Com estas palavras, Pedro Castillo começou sua mensagem à nação em 7 de dezembro de 2022, em Lima. Dez minutos de intervenção que serviram ao então presidente do Peru para anunciar a dissolução do Congresso, decretar um governo de emergência excepcional e prometer a convocação de novas eleições legislativas em menos de nove meses.

Deputados de diferentes partidos, o Poder Judiciário, vários ministros e embaixadores que acabaram renunciando classificaram isso como um "golpe de Estado". Castillo decidiu tomar essas medidas no mesmo dia em que uma terceira moção de censura contra seu mandato estava sendo debatida, aprovada pelo Congresso com 101 votos a favor dos 87 necessários, de um total de 130, incluindo vários votos do partido Perú Libre, o mesmo que o levou à presidência.

Preso desde 7 de dezembro, Castillo continua se considerando o presidente legal do Peru. Ele exige um processo constituinte para seu país e denuncia a repressão conduzida por Dina Boluarte.

Ele chegou ao Palácio do Governo graças ao voto popular e camponês das regiões andinas, apesar dos numerosos recursos apresentados pela direitista Keiko Fujimori, que pretendia anular os resultados eleitorais de 6 de junho de 2021. Seu mandato durou menos de um ano e meio. Em 7 de dezembro de 2022, após a mensagem à nação, Castillo foi detido a caminho da embaixada do México e acabou na sede da prefeitura de Polícia de Lima. Poucas horas depois, o Congresso o destituiu por "permanente incapacidade moral", e Boluarte, que era vice-presidente, foi eleita a nova chefe de Estado. Hoje, ele permanece preso em Barbadillo, a prisão de segurança máxima onde também estava Alberto Fujimori até esta semana, libertado na quarta-feira após um indulto do Tribunal Constitucional "por razões humanitárias", apesar do apelo da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para que ele não fosse indultado nas condições atuais.

Primeiras horas de um governo impopular

Lourdes Huanca nasceu em Tacna, e sua família é de Moquegua. Ela é a presidente da Federação Nacional de Mulheres Camponesas, Artesãs, Indígenas, Nativas e Assalariadas do Peru. Ela não pode retornar ao seu país porque teme por sua vida; enquanto isso, ela aproveita sua estadia na Europa para viajar e denunciar o que está acontecendo no Peru. A ativista, que ainda considera Castillo como presidente, participa de reuniões da ONU em Genebra, bem como de encontros nos bairros com organizações da sociedade civil.

Em 7 de dezembro, quando Castillo se dirigia à nação, Huanca estava em uma reunião no Ministério da Cultura com diferentes organizações. "Nunca deixaram ele governar. Cada insulto ao presidente era um insulto aos povos indígenas originários, era um desprezo pelos provincianos. Derrubaram o ministro da Saúde porque era do interior. Todos pediam que o Congresso fosse fechado. Ele nem sequer tinha chamado o Exército, não tinha feito nada. Para nós, ele tomou uma decisão sábia", conta a ativista.

Anahí Durand também não ficou surpresa com o que aconteceu. Meses antes, ela havia deixado a assessoria da Presidência do Conselho de Ministros, cargo que ocupou depois de sair do movimento Novo Peru. Durand foi ministra da Mulher e Populações Vulneráveis de julho de 2021 a fevereiro de 2022, durante o governo de Castillo. Esta professora titular de Sociologia na Universidade de San Marcos se identifica com um "feminismo popular de base" e se afasta do que considera o "movimento feminista branco cooptado por ONGs".

"Aquela tarde votava-se a vacância [moção de censura] e não havia boas previsões. Havia convocações na manhã de organizações sociais para apoiar o presidente naquela votação do Congresso. A decisão dele foi um escapismo que permitiu enfrentar uma situação em que já era impossível governar. O presidente foi censurado por 18 ministros em um ano; ninguém em 200 anos de república havia feito esse boicote. O equilíbrio de poderes havia sido rompido alguns meses antes no Congresso. Eles transformaram o Peru em um parlamentarismo, e via-se o jogo político do Ministério Público e do Poder Judiciário", explica a ex-ministra.

Para a socióloga Ivette Zevallos, ativista do coletivo Peruanxs em Madri, o governo de Boluarte é ilegítimo. "Não chega ao poder nas urnas, mas por meio de artimanhas. Mantém um Congresso totalmente corrupto, são abutres que distribuem o orçamento como querem, fazem seus lobbies internos para conseguir milhões para eles. Há um regime instalado pela força, porque só à força de balas pode se sustentar e precisou de tantos mortos para se perpetuar. Não a chamamos de presidente, chamamos de ditadora".

Em Andahuaylas, a cidade onde ocorreram os primeiros protestos contra o governo de Boluarte, a notícia do fechamento do Congresso foi recebida com alegria "porque há muitos corruptos lá, muita máfia trabalha lá", diz Dany Quispe, pai de Beckham Romario Quispe, uma das primeiras vítimas da repressão desencadeada pelas forças de segurança após a destituição de Castillo, segundo investigações de organismos nacionais e internacionais. "Pedro Castillo veio a Andahuaylas oferecer irrigação tecnificada para todas as comunidades, ele tinha esse compromisso conosco, dez dias depois foi sequestrado. Quando soubemos, ficamos tristes, como todo o Peru", enfatiza Quispe.

Protestos contra Boluarte

Após o anúncio de Castillo, que caiu como um balde de água fria em uma Lima que estava prestes a receber o verão, centenas de pessoas saíram para a histórica Praça San Martín e de lá marcharam em direção à sede do Congresso para pedir a renúncia dos congressistas, novas eleições gerais e uma Assembleia Constituinte. Foi no sul do Peru que se gestou a revolução popular de organizações camponesas, sindicatos, federações e mulheres organizadas, que no mesmo dia mostraram sua rejeição à prisão do ex-presidente e convocaram mobilizações para os dias seguintes.

Arequipa, Cusco e Puno, cidades onde o Peru Libre obteve a maioria dos votos, convocaram greves regionais pelo que chamaram de "sequestro do Peru". Mas foi em Apurímac onde ocorreram as primeiras repressões. Em 10 de dezembro, pelo menos 3 mil pessoas, incluindo centenas de mulheres camponesas, tiveram um confronto violento com a polícia que terminou com várias feridas e a detenção de dois membros das forças da ordem, que foram libertados horas depois. Devido à resposta policial, a população que se manifestava acabou se declarando em "insurgência popular".

No dia seguinte, os protestos se transferiram para o aeroporto de Huancabamba, onde ocuparam as instalações. A polícia, ao se ver superada em número, abriu fogo com balas de borracha e munição real. "Naquele dia, 11 de dezembro, a polícia matou meu filho no aeroporto. Ele foi apenas para ver a manifestação por curiosidade, não para participar", relata Dany Quispe.

O pai estava trabalhando no campo quando recebeu uma mensagem pelo WhatsApp no momento em que alguns manifestantes tentavam socorrer seu filho. "Nas províncias, nos mataram como se fôssemos criminosos, como animais, não nos respeitam. Boluarte diz que nossos filhos se mataram, não há respeito pelo povo. O governo e a polícia nos discriminam", enfatiza.

Beckham, de 17 anos, que treinava futebol e sonhava em jogar na liga profissional, não foi a única vítima naquele dia. Outro menor, David Atequipa, de 15 anos, estudante, também sofreu traumatismo craniano causado por tiros dos agentes antidistúrbios.

A partir desse momento, a chamada insurgência popular avançou de cidade em cidade e sofreu a mesma repressão que em Andahuaylas. Desde que Boluarte assumiu a presidência até 20 de fevereiro de 2023, o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (Oacnudh) registrou 1.327 protestos no país, 882 mobilizações, 240 bloqueios de estradas, 195 concentrações e 60 marchas pela paz, sem contar os apelos e ações da população peruana no exterior.

"Com um saldo de 48 pessoas mortas pela repressão estatal, 11 em bloqueios de estradas e um policial, além de centenas de pessoas feridas em um trágico período de violência estatal, as autoridades peruanas permitiram que, por mais de dois meses, o uso excessivo e letal da força fosse a única resposta do governo ao clamor social de milhares de comunidades que hoje exigem dignidade e um sistema político que garanta seus direitos humanos", declarou Erika Guevara, diretora para as Américas da Anistia Internacional, após apresentar um relatório sobre a situação em fevereiro de 2023.

Segundo o relatório da Oacnudh, foram contabilizadas 62 mortes que continuam exigindo justiça, como afirmou um grupo de familiares e afetados na audiência pública de acompanhamento do caso peruano, realizada no início de novembro pela CIDH. "As organizações e as vítimas expressaram sua preocupação com o descumprimento a partir da erosão das instituições democráticas, a falta de investigação dos fatos relatados no relatório, a ausência de reparação às vítimas da repressão estatal, incluindo pessoas indígenas, e a discriminação estrutural. Eles solicitaram a criação de um grupo interdisciplinar de especialistas independentes ou de um mecanismo de acompanhamento", informaram.

Outro relatório da Anistia Internacional, "Racismo letal: execuções extrajudiciais e uso ilegítimo da força pelos corpos de segurança do Peru", denuncia que a polícia e o exército usaram balas e armas proibidas para controle da ordem pública de maneira ilegítima, além de gás lacrimogêneo de maneira excessiva e desproporcional. A organização classificou a repressão do governo de Boluarte como "crimes contra o direito internacional" e denunciou que teve "um viés racista". 80% das mortes totais registradas desde o início dos protestos foram de população indígena e camponesa.

O extrativismo e as elites

Na década de 1990, o governo de Fujimori implantou o modelo neoliberal no Peru, que contribuiu para originar a atual economia extrativista. Para Zevallos, há uma participação indireta de empresas e elites peruanas nos processos políticos, "empresas como Odebrecht, Graña y Montero ou Telefónica fazem parte do monstro. Os braços operacionais são a Procuradoria. As pessoas já perceberam isso e querem um processo de participação real. Para que serve votar se vão tirar o presidente que escolhi?"

Segundo a ex-ministra Durand, "os grupos empresariais financiaram os melhores escritórios de advocacia de Lima para impugnar 200 mil votos rurais de indígenas. Financiaram toda a campanha pelo impeachment. Todos os domingos tínhamos manifestações com carros superluxuosos. Criaram um clima de desestabilização. E não apenas por três ou quatro concessões, era para salvar todo o modelo. Formou-se uma coalizão golpista entre a Procuradoria, o Congresso, o poder econômico, os grandes meios de comunicação, as forças armadas e policiais".

Huanca também denunciou que o objetivo de Boluarte é a renovação das concessões de mineração e petróleo. "Castillo disse que não as renovaria, mas as revisaria e cobraria todos os impostos devidos pelas grandes empresas. A qualquer momento, quando tudo estiver assinado, eles mesmos vão tirar Boluarte, não nós". Durand afirmou que "o triunfo de Castillo não foi apenas um tapa no clasismo e racismo das elites peruanas, mas em seu modelo. Ele foi transparente em sua proposta como candidato: nova Constituição e revisão de contratos. As elites não o queriam no poder porque era um indígena e deveria estar na chacra (rancho)"

Voltar à chacra

No Peru, uma crise política crônica se estabelece, com já cinco presidentes em cinco anos. A direita liderada por Keiko Fujimori, a serviço das elites econômicas e empresariais, governa junto com Boluarte, diante de uma esquerda de partido cada vez mais desintegrada.

Quase um ano após a morte de seu filho, Dany Quispe conta que sua família continua trabalhando na agricultura, "colhemos batatas, vendemos nossos animais para educar e alimentar nossos filhos. Quando descemos do campo para a cidade para protestar, dizem que somos financiados pela mineração artesanal ou pelo presidente Castillo, mas quem nos financiará? Nós contribuímos com uma cota cada um para comida ou gasolina", afirmou, lamentando a esperança gerada pelas promessas do antecessor de Boluarte, que além de professor trabalhava na agricultura e, diz, entendia suas necessidades.

Em 7 de dezembro de 2023, um ano após a destituição de Castillo e a entrada de Boluarte no poder, as demandas fundamentais dos protestos são: um processo de reparação integral, investigação e punição dos responsáveis pelas vítimas dos protestos iniciados em dezembro de 2022; um processo constituinte para um referendo em que a população possa decidir se quer ou não alterar a Constituição vigente, de 1993, redigida durante o governo de Fujimori; a renúncia de Dina Boluarte e a convocação de novas eleições.

Às manifestações já previstas agora se soma o perdão a Alberto Fujimori. Em 5 de dezembro, o Tribunal Constitucional do Peru ordenou a libertação imediata do ex-presidente, apesar de a CIDH ter decidido o contrário em 2022. "Estamos indignados, apoiamos as associações de vítimas do fujimorismo. Sua luta por mais de 30 anos não pode ficar impune. Este precedente expõe o Peru internacionalmente, pois estamos descumprindo a CIDH. O Congresso escolheu esses juízes [membros do Tribunal Constitucional] para libertar seu líder. A justiça deve reparar integralmente as vítimas, genocidas não podem ser perdoados", denuncia Zevallos.

Para Huanca, no Peru, a mudança não se limita à presidência do governo, mas sim ao retorno à chacra e ao foco nas comunidades. "Temos que nos desvincular e pensar de baixo para cima. O poder legislativo não pode ser apenas de terno e gravata. Para eles, os povos indígenas sempre serão a chacra, não apenas no Peru. Essa luta é geopolítica. Será que os brancos não comem o que produzimos como camponesas e indígenas? Temos que nos levantar porque somos milhões e milhões. Sabemos que vão nos matar, mas, caramba, somos camponeses. Sempre dizemos que estamos plantando sementes autóctones porque nos matam. Mas uma primavera seguirá a revolução de nossos filhos e filhas, porque eu sou bisneta e neta de lutadoras", afirma.

Publicado originalmente por El Salto . Editado pelo jornal uruguaio Brecha e pelo boletim Correspondencia de Prensa.
Tradução ao Português de Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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