Correio da Cidadania

México: novas informações colocam Forças Armadas no centro das suspeitas sobre o caso de Ayotzinapa

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Foto: PetroshW / Commons Wikimedia

Infiltrados do Exército em uma escola rural do México, simulacro de investigações e ocultação de informação. O lapidário terceiro relatório apresentado pelo Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) confirma a participação das Forças Armadas mexicanas no desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa e traz luz à tragédia quase oito anos depois.

Os pesquisadores do GIEI mostraram pela primeira vez ao público um vídeo feito em 27 de outubro de 2014, um mês depois do desaparecimento dos jovens mexicanos, no aterro sanitário do município de Cocula, onde supostamente foram incinerados os corpos dos 43 estudantes desaparecidos. Na gravação ficaria demonstrado que membros da Marinha do México foram parte ativa na manipulação das provas durante a investigação dos fatos.

O relatório também confirma que os estudantes de Ayotzinapa eram uma lacuna na inteligência militar. “Havia agentes do Exército em motocicletas ou vestidos de civis nas ruas de Iguala, vigiando o que estava acontecendo e reportando imediatamente a seus superiores. Sabiam muito bem o que estavam fazendo. Isto te deixa uma situação na qual entendes que tu também está sendo vigiado nesse momento, em qualquer momento da tua vida, e não é nada cômodo saber que o Estado está te vigiando”, assegura em conversa para a Página 12 Manuel Vázquez Arellano, ex-aluno da Escola Raúl Isidro Burgos que se identificou como ‘Omar Garcia’ durante muito tempo para proteger sua identidade.

Relembre o caso

O massacre dos estudantes de Ayotzinapa: terrorismo de Estado mexicano, por Diógenes Moura Breda (22/10/2014)

México: dois anos da matança de Ayotzinapa, por Eliana Gilet (26/09/2016)

Caravana por estudantes desaparecidos volta a expor falência do Estado mexicano, por Raphael Sanz, da Redação (10/06/2015)

O vídeo do lixão de Cocula

O GIEI foi criado em novembro de 2014 por um acordo entre a CIDH e o Estado mexicano para esclarecer o desaparecimento de 43 jovens, supostamente por mãos de policiais ligados a grupos de narcotraficantes. Prévio a este relatório, o GIEI já havia apresentado outros dois documentos nos quais considerou impossível o relato dos fatos da primeira versão oficial do caso, a chamada “verdade histórica” apresentada pelo governo do ex-presidente Enrique Peña Nieto.

Na semana passada o GIEI publicou um vídeo que pôde obter da Secretaria de Marinha (Semar) no qual podemos observar integrantes dessa força mexendo no aterro sanitário de Cocula. As imagens, tomadas por um drone entre 26 e 27 de outubro de 2014, mostram a chegada de duas camionetes da Marinha ao lixão. Em uma zona muito próxima se observa três pacotes brancos pendurados. Um grupo de umas doze pessoas começam percorrer essa zona e um pouco mais tarde é possível ver um incêndio que dura cerca de dez minutos. A visita nunca foi documentada em nenhum expediente do caso e era desconhecida até o momento. Nas imagens seguintes já não se observam mais os pacotes, e não se sabe o que poderiam conter.

Minutos mais tarde, vê-se chegar novas camionetes da Semar e da Procuradoria Geral da República (PGR) onde pode-se observar o então titular da Procuradoria, Jesús Murillo Karam, e o chefe da Agência de Investigação Criminal, Tomás Zerón. Este último se encontra foragido em Israel acusado de tortura e desaparecimento forçado. O México pediu sua captura e extradição, mas o pedido segue pendente.

“Este vídeo nos mostra que efetivamente nunca ocorreram os fatos no lixão de Cocula tal como o governo inicialmente quis dar a conhecer. Também confirma que houve participação de elementos da Marinha e do Exército, que urdiram ou tramaram toda essa armação”, explica Isidoro Vicario Aguillar, advogado do Centro de Direitos Humanos da Montaña Tlachinollan. Por sua parte, Ángela Buitrago Ruiz, uma das especialistas independentes do GIEI, adverte: “se já tínhamos nossas grandes oposições a respeito da obtenção de supostas provas mediante tortura, agora mais ainda quando descobrimos que as mesmas forças alteraram todo o cenário. É fácil ver como muitas pessoas transitam, levantam coisas, com os pés empurram coisas para os lados, e assim por diante”.

O terceiro relatório do GIEI ainda reconhece que “a identidade dos restos mortais de Alexander Mora Venancio é verídica”. Em um cenário de graves irregularidades foi produzida a identificação de Mora Venancio a partir de um fragmento ósseo em dezembro de 2014. O lugar oficial de encontro do fragmento, sobre o rio San Juan, foi fortemente questionado tanto pelo GIEI como pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF). A origem verdadeira do fragmento ósseo continua sendo desconhecida e é chave para a investigação.

A espionagem aos estudantes de Ayotzinapa

O informe do GIEI demonstra que a Secretaria de Marinha e o Exército ocultaram informação crucial, como que sabiam que os estudantes eram vigiados em tempo real e “tinham infiltrações” no ambiente estudantil. “Autoridades de segurança tinha em curso processos de inteligência, um em seguimento às ações do crime organizado na zona e outro sobre os estudantes”, indicam os investigadores. Inclusive existe evidência de que um dos estudantes desaparecidos formava parte das Forças Armadas.

“A vigilância sobre os estudantes era já um fato que havia sido ventilado pelos especialistas internacionais. As polícias municipais, estatais e federais, e o Exército compartilham informações no que se refere a delinquência, mas neste caso extrapolaram os limites e foram também contra os estudantes”, relata Vázquez Arellano, ex-aluno da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa.

Por sua vez, Buitrago Ruiz assinala que o Exército não só tinha informação em tempo real, mas que além disso “colhia diretamente a informação e ela era processada por seus órgãos de inteligência e operacionais”, mas “nada disso se incorporou à investigação”.

AMLO nega ocultar informação

Os investigadores da CIDH acusam as instituições mexicanas de resistirem à entrega de informação necessária para avançar nas pesquisas, incluídos dados de inteligência. A seu juízo, há ‘simulação’ por parte de algumas autoridades para fazer crer que cumprem a ordem do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, de facilitar as averiguações. AMLO negou dias atrás que seu governo oculte informação sobre o desaparecimento dos 43 estudantes.

O mandatário mexicano revelou que os líderes da Marinha que participaram nessa operação estão sob investigação e disse acreditar que o ex-presidente Peña Nieto sabia do caso Ayotzinapa, em particular da operação no lixão de Cocula. “Desde o início de mandato do presidente em 2018, foi ordenado mediante decreto outorgar informação a todas as dependências do Estado e não o fizeram. Então o tema não está no Executivo, está em outras forças que seguem colocando obstáculos”, coloca Vázquez Arellano, que lamenta contudo que não haja “avanços concretos, pois ainda não se sabe onde estão os companheiros e isso deixa muito a desejar”.

Na mesma linha, Aguilar destaca a “vontade” do governo para esclarecer o caso Ayotzinapa. “Mas também os pais e mães dos 43 manifestaram de que não basta a boa vontade e a disposição, mas deve haver um compromisso real do presidente e das instituições para que brindem toda a informação necessária para encontrar o paradeiro dos 43 estudantes, para saber o que aconteceu naquele dia 26 e madrugada de 27 [de setembro de 2014]”, adverte o advogado.


Guido Vassallo é jornalista argentino.

A matéria foi publicada originalmente no jornal Página 12 em 6 de abril de 2022 e retirada da página da Correspondencia de Prensa Al’Encontre.

Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

 

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