Correio da Cidadania

Nove massacres em duas semanas; a violência sacode a Colômbia

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A Colômbia vive uma de suas fases mais violentas e obscuras desde a assinatura do acordo de paz em 2016 entre o Estado e as FARC. Os massacres ressurgiram com força no país, e só nas últimas duas semanas deixaram um saldo de 45 mortos. Grupos armados que buscam controlar o negócio do narcotráfico e outras atividades ilegais recorrem às matanças de camponeses e indígenas para amedrontar e obrigar as populações, a ponta do fuzil, a um deslocamento forçado. “Os lugares onde estão ocorrendo os massacres são, paradoxalmente, aqueles onde se registra maior presença de forças públicas”, assegura Yesid Zapata, da Fundação Sumapaz.

O governo de Iván Dique se fecha em debates retóricos (o presidente fala de ‘homicídios coletivos’ ao invés de massacres), critica gestões anteriores e insiste na resposta militar como única saída.

Em 2017, segundo a ONU, se registraram 11 matanças. Em 2018 foram 29 e no passado 36. Os primeiros oito meses de 2020 revelam que o aumento é ainda mais pronunciado: os massacres ascendem a 46. A nona matança em duas semanas ocorreu na quinta à noite em uma localidade de Bajo Cañaveral, no departamento de Antioquia, onde foram baleadas três pessoas, entre elas um menino de 14 anos. Não é por acaso, já que entre as vítimas desta nova onda de violência ha muitos jovens e menores de idade.

Massacres como este haviam caído consideravelmente na Colômbia com a desmobilização das FARC e dos paramilitares. “Mas a partir da assinatura dos acordos de paz, outros grupos se interessaram em pontos estratégicos do país para se apossarem destes territórios. Na medida em que há vários grupos com o mesmo interesse e não existe a possibilidade de alianças, mas apenas a lógica de disputa territorial, são geradas estas formas de violência”, adverte Yesid Zapata em entrevista ao Página12, da Argentina.

Hoje operam na Colômbia o Exercito de Liberação Nacional (ELN), o Clã do Golfo – formado a partir de remanescentes paramilitares – além, é claro, de dissidentes das FARC [que foram contrários ao abandono da luta armada]. Entre os três grupos há cerca de 7600 membros que atuam em 240 dos 1100 municípios do país.

“O avanço da expansão paramilitar reflete não apenas o fracasso dos processos de justiça e paz, mas a falta de vontade do atual governo por desmontar as estruturas paramilitares, o que mostra a conivência de agentes do Estado em diferentes regiões do país”, sustenta Camila Galindo, advogada assistente do Observatório de Direitos Humanos da Coordenação Colômbia-Europa-Estados Unidos. “O partido do governo e seu grupo político evidenciaram estar comprometidos com a reativação da guerra”, agrega Galindo.

As vítimas das recentes matanças são em sua maioria jovens, camponeses, indígenas ou afrodescendentes. O primeiro massacre que sacudiu o país nestas semanas foi o de cinco menores entre 14 e 15 anos cujos cadáveres foram encontrados no bairro Llano Verde, no departamento do Valle del Cauca. Segundo o investigador geral, Francisco Barbosa, as vítimas iam com frequência comer cana-de-açúcar de uma plantação e no dia da tragédia, “os três adultos que trabalhavam como vigilantes dos arredores do canavial observaram os cinco menores se aproximando e sem medir palavras, em um ato de total barbárie, os assassinaram”.

“Além do disciplinamento, estes grupos querem impor uma cultura, uma estratégia política, incluindo estratégias de desenvolvimento e o farão a qualquer custo. Querem impor a lei através da força”, afirma Zapata. Assim como os massacres, também aumenta de maneira vertiginosa o deslocamento forçado, que é outro dos indicadores das disputas por controle territorial. Está crescendo no país e constitui outro sinal de alerta.

Acordo sem paz

Os organismos de direitos humanos coincidem que se tenha avançado muito pouco após o acordo assinado em 2016 durante a presidência de Juan Manuel Santos. “Essa lentidão se evidencia no tema da terra, que é o ponto principal do acordo: devolver terras e brindar possibilidades a camponeses, camponesas e ex-combatentes para que se tornem proprietários”, sustenta Zapata, da Fundação Sumapaz.

Com base no Censo Nacional Agrário, a organização internacional Oxfam realizou o informe. “Radiografia da Desigualdade”. Da análise se conclui que a Colômbia é o país da América Latina com maior concentração fundiária: 1% das maiores propriedades têm em seu poder 81% do total de terras colombianas. Outra conclusão é ainda mais potente: um milhão de lares camponeses na Colômbia têm menos terra que uma vaca dos latifúndios supracitados, proporcionalmente.

Quanto à prometida participação política, o governo de Iván Duque está fechando as portas para a presença de setores diferentes do oficialismo. “Lamentavelmente, pensar diferente continua sendo um delito e isto evidencia que não avançamos neste ponto”, diz Zapata. E agrega que “a nós, defensoras e defensores de direitos humanos que queremos elevar um grito e denunciar o que está sucedendo em nosso território, não estamos apenas sendo criminalizados, mas também ameaçados, agredidos e assassinados”.

Tampouco está sendo cumprida a saída política ao cultivo de ilícitos. Muitos camponeses que apostaram a deixar os cultivos têm de voltar ao plantio de coca como meio de subsistência, diante da inanição do governo.

“A Colômbia tinha uma oportunidade através do processo de paz, havia umas partes emperradas como o ELN e o Clã do Golfo, e este governo tinha duas opções: jogar água sobre o conflito através da implementação do processo de paz ou jogar combustível, que é o que vem fazendo, desconhecendo os pontos nevrálgicos do acordo”, resume Alejandro Restrepo, coordenador da área de investigação da Fundação Paz e Reconciliação.

O relato do presidente

Iván Duque prometeu justiça para os massacres. Mas quase ninguém ainda dá crédito a um presidente que diante das dificuldades sempre escolhe desculpar-se pela herança do governo anterior. Em uma recente visita à localidade de Samaniego, cenário de uma das matanças, o mandatário sustentou que, no lugar de massacres, deveríamos falar em ‘homicídios coletivos’.

“Através de uma narrativa própria, o governo tenta reduzir o impacto da violência diante da opinião pública. Massacre não é uma figura que esteja contemplada no direito internacional humanitário ou na legislação colombiana, mas se utilizou na academia, ONU e em distintas organizações sociais a fim de se ter uma leitura da intensidade da violência e da degradação da guerra e suas disputas”, explica Restrepo.

Além disso, a polícia e alguns funcionários do governo buscam relacionar as vítimas desses massacres como pertencentes ao narcotráfico e grupos armados sem apresentarem qualquer prova. “Isto nos recorda algo que já vivemos na Colômbia, que pode ser resumido em uma frase do ex-presidente Álvaro Uribe sobre o escândalo dos ‘falsos positivos’, eufemismo com o qual denominou as execuções extrajudiciais que eram apresentadas como baixas em combate pelo Exército. Naquele momento, disse: ‘Não estariam colhendo café’. Bom, esta ideia se transfere ao contexto atual. Tenta-se revitimizar as vítimas desses massacres”, afirma o pesquisador da Fundação Paz e Reconciliação.


O artigo foi retirado da Correspondencia de Prensa A L’Encontre, onde foi republicado em 31 de agosto.
Guido Miguel Vassallo é jornalista e colaborador do jornal argentino Página 12.
Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

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