Correio da Cidadania

Arce: “Governo atrasa quarentena e alastra a fome na Bolívia”

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Leonardo Wexell Severo, especial para o Correio da Cidadania


O governo da autoproclamada presidenta Jeanine Áñez “entrou de forma errada e tardia no combate à pandemia”, denunciou Luis Arce Catacora, candidato à Presidência da Bolívia pelo partido Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP), em entrevista exclusiva.

Arce acrescentou que foi aprovado um minguado “bônus família” que não foi pago, apenas se obriga as pessoas a ficarem em casa passando fome. “Por isso vocês viram pela imprensa em Riberalta, cidade próxima ao Brasil, muitas pessoas terem de sair e romper o cerco das Forças Armadas e da polícia, porque a fome não pode ser combatida enviando pessoas para a prisão. Vão precisar mandar todos os bolivianos à prisão, porque o povo está faminto”, condenou o candidato do MAS, cobrando a ampliação do “bônus família” que “alcança no total a somente 22% das pessoas necessitadas”.

“Acredito que essa crise do Coronavírus revelou muito claramente que não se pode deixar a saúde nas mãos do setor privado, que faz dela um negócio, como ficou demonstrado pelos Estados Unidos, pela Europa e por vários países. É preciso uma participação cada vez maior e mais ativa do Estado”, afirmou ainda Arce. Conforme o ex-ministro da Economia de Evo Morales, “a pandemia revelou que a saúde é um tema que atinge e diz respeito a todos, e não é necessário apenas garantir todas as condições de atendimento humano e material à população, em clínicas e hospitais, mas também investir em pesquisas”.

Confira a entrevista na íntegra.


Como em todo o mundo, a chegada do Coronavírus põe em risco a vida de milhares de bolivianos. O que fazer quando o governo da autoproclamada presidenta Jeanine Áñez prioriza a repressão em vez de medidas efetivas de saúde e educação no combate à pandemia?

Primeiro, este é um tema que requer a participação de vários atores, dos meios de comunicação e dos governos das distintas esferas: nacional, estadual e municipal. É um tema que envolve a participação dos mais amplos setores. Para reduzir a taxa de contágio e achatar sua curva, reduzir o número de pessoas contagiadas e, consequentemente, reduzir a probabilidade de doentes, o mais acertado era termos realizado quarentenas imediatas, o que na Bolívia não se fez. Acredito que em muitos países também se demorou a tomar tais medidas e isso precisa ser dito.

Esse primeiro tipo de medida busca evitar o rápido contágio entre as pessoas, que é a característica do coronavírus, como sabemos. Embora não tenha uma letalidade muito grande, se comparado a outras enfermidades, tem uma velocidade extrema de contágio, o que assusta as pessoas, causa pânico, pois lota os hospitais e todos os serviços de saúde. Por isso, nós, enquanto MAS, enviamos uma proposta ao governo golpista que, infelizmente, ditou a quarentena e uma forma de enfrentamento à pandemia sem diálogo e, volto a repetir, com atraso.

A quarentena foi adotada com atraso, pois imagino que ficaram calculando qual seria a medida com menor impacto econômico, a que menos prejudicasse a economia e protegesse a saúde, o que é um equilíbrio complicado. Acredito que deveria ter sido priorizada a saúde. Assim, penso que as pessoas que entraram no país deveriam ter sido submetidas a estudos, o que não se fez, se postergou. Uma vez o vírus tendo entrado no país, defendemos a proteção dos mais pobres e vulneráveis, o que também não foi feito.

Aqui há dois temas importantes de atenção à saúde: o das pessoas mais velhas, que necessitam de um apoio sem precedentes para serem mantidas em casa, que lhes seja garantida atenção médica e recursos para os filhos. Esse trabalho deveria ter sido feito e não se fez. E também era preciso ter sido dada atenção aos pobres, porque na Bolívia, da mesma forma que em toda a América Latina, há muita gente que sobrevive com o que ganha diariamente. Necessita do trabalho diário, seja para comer ou para pagar o aluguel.

A parte mais débil de todas as medidas tomadas é que não se levou em conta a estrutura da sociedade e da economia boliviana. É como se as pessoas do governo não conhecessem o país, não vivessem no país. Não foram tomadas as medidas adequadas e, pior, oportunas.

Demoraram para agir?

Por exemplo, o governo aprovou o bônus família, mas não paga. As pessoas estão com fome e esse governo não tem a delicadeza de pagar. Está prometendo coisas e não cumpre, e nós estamos defendendo políticas sociais para atender com agilidade, principalmente as pessoas com baixos recursos, gente que vende o almoço para comprar o jantar.

Na Bolívia, se fez um bônus chamado “família” que até agora não foi pago. Estamos há mais de 15 dias em quarentena e ainda nada foi pago. Seriam pagos quinhentos bolivianos por criança em idade escolar (até 12 anos), o que é uma medida absolutamente restritiva porque há estudantes secundaristas ou adolescentes nas universidades que também precisam comer (o salário mínimo é de 2.150 bolivianos). Há pessoas que não têm renda própria e precisam sair para ganhar o pão de cada dia e que não estão recebendo os benefícios propostos.

É uma medida paliativa que não resolve o problema. Por isso vocês viram pela imprensa em Riberalta, cidade próxima ao Brasil, muitas pessoas tendo de sair de casa, inclusive rompendo o cerco das Forças Armadas e da polícia, porque a fome não pode ser combatida enviando pessoas para a prisão, como fez um ministro desse governo. Se é assim vai precisar mandar todos os bolivianos à prisão, porque o povo está faminto.

É um conjunto de erros que vêm sendo cometidos devido à incapacidade, à improvisação, por falta de conhecimento da estrutura social e econômica do país, como se vê em abundância. Temos ministros desse governo golpista que antes viviam na mídia dando opinião e hoje estão calados, porque não conseguem cumprir com absolutamente nada daquilo que se responsabilizaram e que os bolivianos tanto necessitam. A ineficiência, a falta de conhecimento, a improvisação das medidas de política econômica é algo visível e, isso nós economistas sabemos, têm um impacto na sociedade e na economia. São medidas que não estão resolvendo os problemas, mas agravando a situação.

Por isso, a Central Operária Boliviana (COB) anunciou um panelaço contra essas medidas, houve um pronunciamento do movimento social do campo e da cidade exigindo respostas, cobrando a resolução dos problemas, coisas que este governo não está conseguindo resolver. A quarentena exige respostas não apenas para os problemas de saúde e que necessitam vir acompanhadas de medidas de atenção aos mais pobres. O governo está fazendo parcialmente, tardiamente e mal.


Moradores marcharam pela cidade de Riberalta, em Beni, no dia 31 de março, e romperam o cordão de isolamento montado pela polícia e pelas Forças Armadas para exigir alimento: “Temos fome!” (TeleSur)

Há muitas críticas de que as medidas abrangem um pequeno percentual da população. Qual a sua opinião?

Como havia dito, as famílias com crianças acima de 12 anos e universitários não são contempladas. As medidas são restritivas também em relação aos idosos. Assim, alcançam no total somente 22% do total de necessitados. Em vez de resolver o problema, o governo tem tratado de imiscuir o MAS nos protestos de Riberalta, nos panelaços da COB e em outras mobilizações, tentando reduzir o significado destes protestos. É um ardil, porque por trás disso há um movimento real frente à incapacidade e à ineficiência do governo.

Por isso as pessoas não acatam as decisões, porque a fome dói e são obrigadas a ficar trancadas sem ter o que comer. Há um rodízio de segunda a sexta-feira, com as pessoas saindo conforme o número final da carteira de identidade. No sábado e domingo não podem sair. Claramente há uma pressão, inclusive sobre as pessoas que têm dinheiro, que fazem filas nos supermercados. Acabaram suas economias, se esgotaram as despensas. O desabastecimento vai se consolidando, o que amplia a pressão.

O governo está agindo de forma equivocada, pois não está levando em conta as necessidades da sociedade. Repito, novamente, e não vou cansar de dizer: estas pessoas que dependem do seu trabalho diário precisam ser atendidas com urgência, pois muitas vezes são as mais prejudicadas e não necessariamente são aquelas que têm as crianças menores. São famílias que podem ter crianças em séries mais avançadas ou na universidade e que acabam ficando sem o bônus.

Há um enorme contingente da sociedade que não está sendo coberto pelo benefício, elaborado de forma completamente improvisada. Isso é o que está gerando os protestos e não é de se estranhar que as pessoas ampliem as mobilizações, como vem ocorrendo. Nós não estamos inventando isso, não é um fato político pelo qual o MAS esteja por trás, é algo real, um grave problema econômico e social.

A Bolívia vive uma situação desesperadora.

O fato é que as pessoas não têm mais como subsistir, não têm o que comer e, evidentemente, buscam desesperadamente uma maneira de resolver os seus problemas. Neste caso, é sair para trabalhar. Obviamente, isso vai contra a política de saúde e queremos que se cumpra a política de saúde. É preciso que se deem as condições para que as pessoas possam subsistir, receber os recursos para que possam se alimentar e ficar em casa com as suas famílias.

Você lidera todas as pesquisas eleitorais com ampla vantagem, a que se deve esse reconhecimento?

Acredito que todos os bolivianos se deram conta que estávamos crescendo, reduzindo a pobreza, que vivíamos felizes e melhorando. Veio o golpe de Estado e a economia começou a entrar em colapso. E faliu por dois elementos fundamentais: porque este governo retomou a aplicação do velho modelo neoliberal, por uma questão puramente ideológica, descartando tudo aquilo que havia sido feito até então, e gerou uma psicologia, expectativas na sociedade – que é o segundo fator que move tudo isso – sem nenhuma sustentação.

Logo vieram à tona contradições entre os ministros da área econômica, um dizendo que era preciso desvalorizar a moeda, outro dizendo que não. O ministro da economia quando assume a pasta fala que está tudo bem e termina a semana falando que está tudo mal. Contradições que vão sendo expostas, e as pessoas percebem que as coisas não estão nada bem, que não há seriedade nem responsabilidade.

Começa uma caça às bruxas a todos os dirigentes do MAS, à gestão do presidente Evo, e tentam encontrar casos de corrupção para corroborar o que estão dizendo. Mas, até agora, não acharam um único caso de corrupção. O fato é que hoje as pessoas não confiam neste governo. Há claramente uma total insegurança e desconfiança.

A isso se acrescenta que em menos de quatro meses, por razões de corrupção, foi necessário trocar duas vezes o gerente da Empresa Nacional de Telecomunicações (Entel), nacionalizada pelo presidente Evo. Tiveram que mudar o gerente da aviação BOA, importante linha aérea estatal criada por nós, por corrupção. Também tiveram que trocar o presidente da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), primeira empresa do país, que é a estatal petroleira. Há muitas denúncias de empresários, pequenos e micros que vêm sendo extorquidos por membros do atual governo. Em menos de quatro meses esse governo mostrou sua cara totalmente corrupta. Isso somado ao fato de que a economia afunda.

Há desconfiança pelas contradições entre as expectativas geradas e o que se tem, mais a corrupção, tudo isso faz com que as pessoas valorizem mais os anos em que o presidente Evo esteve à frente do governo. Foi um período em que havia uma luta diuturna contra a corrupção, com resultados concretos, e inquestionáveis avanços econômicos e sociais. Tudo isso se traduz hoje no fortalecimento da nossa candidatura do MAS-IPSP. As pessoas não só estão se dando conta do que tínhamos antes, mas do tanto que perdemos com o golpe de Estado, do ponto de vista econômico as pessoas já estão conscientes.

Com o Coronavírus, a economia é ainda mais golpeada e se vê que este governo não tem nenhum plano, que não há luz no fim do túnel. Por isso o voto “duro” no MAS, maciço, mais coeso do que nunca. O voto será contra este governo de repressão, que persegue os masistas, que persegue os dirigentes sindicais e dos movimentos sociais. Este é um voto fechado. Mesmo em localidades em que a nossa própria gente havia deixado de votar em nós, agora retomou, voltando a desejar o MAS, para fazer do partido um instrumento de transformação. Todos esses elementos reais, sociais e políticos que menciono são os que estão fazendo com que o voto seja direcionado para a nossa candidatura.

O Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), indicado pelos golpistas, anunciou que em vista do alastramento do Coronavírus é necessário prorrogar as eleições programadas para 3 de maio. Quais são os riscos para a democracia?

Temos sido absolutamente transparentes em relação a isso, nossa posição como MAS tem sido clara em defesa do povo boliviano. Não podemos falar de data de eleições quando o tema central é o da vida diante dos riscos do coronavírus. Fomos à reunião de partidos e dissemos: para que fixaremos data? Para que vamos discutir temas eleitorais agora? Porque a sociedade quer é resolver o problema do enfrentamento à pandemia, da quarentena. Uma vez que tenhamos clareza e o Ministério da Saúde mostre quais as projeções, as perspectivas, a estratégia e os resultados de tudo o que se fez até agora, e que se diga de forma bem clara, aí devemos colocar uma data e que seja, evidentemente, o mais breve possível. Mas só quando concluída a quarentena.

Não é esta a posição dos sete partidos políticos de direita. Neste momento, temos um único partido de esquerda, o MAS, que representa os interesses dos operários, professores, e de todos os setores humildes e populares da Bolívia. Nosso partido defendeu e exigiu que o melhor era não colocar uma data para o tema eleitoral até que se tenha resposta para a quarentena. Havia partidos de direita que queriam empurrar para novembro deste ano, outros que se identificam com o presidente do TSE, indicado pelos golpistas, que querem definir uma data a ser encaminhada à Assembleia Nacional. Para o MAS, reafirmamos, a prioridade é resolver o problema do Coronavírus. Primeiro vamos resolver essa questão, depois data para a eleição.

Há muitas denúncias de que o jornalista Erick Foronda, secretário particular de Jeanine Áñez, é na verdade um membro da Agência Central de Inteligência (CIA). Qual a sua opinião?

Este é um tema extremamente delicado do qual não temos provas, mas que existem fatos objetivos e concretos. O fato de que ele trabalhou durante 13 anos na Embaixada Americana é algo incontestável, que ninguém no governo boliviano poderá negar. Para ninguém no país é desconhecido que no golpe de Estado os EUA tiveram uma aproximação muito clara com o governo Áñez.

Portanto, não descartamos que tenham voltado a existir relações como as do passado e é sabido que este governo está rodeado de pessoas que atuaram em anteriores governos neoliberais, muito comprometidos e muito vinculados aos interesses norte-americanos e estrangeiros.

Temos um grande contingente de bolivianos no Brasil e na Argentina. Como podem acompanhar sua luta se os meios de comunicação no seu país montaram um monopólio da desinformação?

A primeira questão que nossos compatriotas precisam se dar conta é que os meios de comunicação do nosso país são instrumentos dos golpistas. Todas as vozes estão alinhadas com o atual governo, não há nenhuma voz em contradição.

Portanto, não são fontes de informação. Neste momento as melhores fontes são as redes sociais e algumas rádios com linha mais crítica e objetiva, como a Causachun Coca, que vem mantendo uma linha ideológica e política mais independente. São meios nos quais se pode escutar muitas denúncias sobre tudo o que acabo de mencionar e que a população conhece. Porque os fatos de corrupção são tão grandes e grosseiros que veem à tona e o governo não pode contestar.

Lamentavelmente, as fontes confiáveis de informação estão restritas a estas rádios, redes sociais e meios de comunicação internacionais.

Existe grande expectativa, principalmente da juventude, em um futuro governo do MAS, de que o fortalecimento da soberania e do papel do Estado gere empregos e fortaleça direitos. Quais as medidas chaves para a retomada do desenvolvimento?

Nós temos um programa de desenvolvimento e propusemos várias políticas para os jovens, principalmente para a geração de empregos. Acredito que todas as políticas que apresentamos para as eleições marcadas para o próximo mês de maio ficaram obsoletas frente à nova realidade da conjuntura do coronavírus, que se impõe não só perante a Bolívia como a todo o mundo. Estamos falando da necessidade da reconstrução da economia boliviana, algo que esse governo já vinha manejando muito mal e todos já vinham sentindo no próprio bolso.

O investimento público será um ponto fundamental da reconstrução, para retomarmos o nosso próprio modelo econômico. Até este momento o neoliberalismo tem ditado as decisões políticas e econômicas, o que demonstrou não ser em nada favorável ao país. Se em 20 anos não deu resultado, como queriam agora que desse em quatro meses? Esse modelo não funciona.

Vamos fazer a reconstrução com base na produção. Temos afirmado que o nosso modelo econômico e social é fundamentalmente baseado na produção e é isso o que vamos fazer. Tal política de reconstrução vai gerar crescimento econômico, emprego e renda para as pessoas. Assim, pouco a pouco, iremos retomar o desenvolvimento e ser referência no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da região. Com os golpistas, a Bolívia só andou para trás.

Que lição nos deixa o Coronavírus?

A crise do Coronavírus nos revelou muito claramente que não se pode deixar a saúde nas mãos do setor privado, que faz dela um negócio, como ficou demonstrado pelos Estados Unidos, pela Europa e por vários países. Que é preciso uma participação cada vez maior e mais ativa do Estado. A pandemia revelou que a saúde é um tema que atinge e diz respeito a todos, que não é necessário apenas garantir todas as condições de atendimento humano e material à população, em clínicas e hospitais, que é preciso também investir em pesquisas.

Não podemos deixar para os laboratórios privados a produção de remédios e vacinas, que façam disso um negócio e não sejam algo em benefício de toda humanidade. Vejam o exemplo de Cuba, que é uma referência para o mundo inteiro, que compartilha os conhecimentos adquiridos para beneficiar a humanidade.

É muito importante registrar esses países que se opõem à estrutura tradicional mundial que é o sistema capitalista, como China, Cuba, Rússia e Irã, exemplos que têm obtido melhor êxito no controle do Coronavírus. São países que vêm obtendo resultados melhores do que aqueles que deixaram a saúde largada à sua própria sorte, em mãos do mercado, como os Estados Unidos e os países europeus. Vejam o que está passando a Itália, a Espanha, a França, países que têm grandes quantidades de recursos e que poderiam tê-los destinados à saúde. A saúde não pode mais ser um negócio privado. A saúde é uma necessidade pública. Essa é a grande lição que nos ensinou a pandemia do Coronavírus.

Leonardo Severo é jornalista.

Leonardo Wexell Severo, especial para o Correio da Cidadania

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