Correio da Cidadania

Corrupção no MEC: “a tolerância a este governo chegou a um nível absurdo”

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O clima de estupefação generalizada com os desmandos e mentiras do governo Bolsonaro, associado a uma espera cada vez mais ansiosa pelas eleições, parece gerar ondas de uma certa indignação paralisante. No caso do esquema de propina e distribuição de verbas em troca de favores, organizado por pastores evangélicos que operavam recursos do MEC sem nenhuma legitimidade para tal, e por fora da agenda oficial, a dinâmica aqui descrita se repete. O ministro da pasta se demitiu, o governo e seus aparelhos fazem de tudo para abafar investigações e a sociedade logo se vê enredada por novos capítulos de torpor coletivo.

Porém, após três ministros, muitas ofensas a professores e estudantes e cortes orçamentários, já é possível fazer um balanço do que foram os anos Bolsonaro no campo da Educação. E é sobre isso que entrevistamos Otaviano Helene, professor do Instituto de Física da USP.

Sobre o uso do MEC para atendimento de interesses religiosos, Helene fala em tom de perplexidade. “Não dá nem pra entender como chegamos a tanto. Não sabemos nem brigar neste campo, porque aprendemos a lutar, discordar, em questões de concepção política educacional. Neste caso não há o que debater ou discordar, pois não se trata de política cabível ao setor”.

Porém, destacou que diversas iniciativas contaram com apoio também da comunidade acadêmica, dentro do contexto de explosão de ódio, ressentimento e manipulações que marcou a ascensão do presidente da República. Sobre os resultados práticos deste governo, enfatiza o desmonte da pesquisa científica, cuja retomada entende como primeira missão de qualquer governo que assuma em 2023, e constata que se criaram mais barreiras para o acesso dos mais pobres à universidade.

“Abriram-se as portas do inferno. Posições de extrema-direita, inclusive com base religiosa, se fortaleceram, se sentiram mais livres pra manifestar seu pensamento, até em confronto com normas do sistema educacional, da Lei de Diretrizes e Bases, estatutos e mesmo a Constituição Federal (...) Precisamos lutar mais. O nível de tolerância a este governo chegou a um nível absurdo”.

A entrevista completa com Otaviano Helene pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como recebeu a notícia sobre o esquema de corrupção no Ministério da Educação, no qual um gabinete paralelo operava recursos e escolhas políticas à margem da agenda oficial?

Otaviano Helene: Estamos na barbárie completa, que chega à educação e à cultura. Pessoas que não têm ideia do que é política educacional usam o sistema e os aparelhos administrativos da área de forma corrupta pra passar seus projetos religiosos. É algo fora de qualquer proporção jamais vista. Nunca na história vimos uma situação, em especial em cultura, educação e ciência, tão maluca. É barbárie total.

Correio da Cidadania: O que comenta da condução do governo, que propagandeia um discurso anticorrupção ao passo que tentou dissimular o escândalo, e também do discurso de Milton Ribeiro em sua saída do ministério, após seis dias de movimentações de bastidores que tentaram sua preservação?

Otaviano Helene: A questão é que estão usando o sistema público em favor de interesses privados, inclusive religiosos, num nível de corrupção maluco. É assim desde o primeiro ministro, o Velez, que tentou aprovar manifestações religiosas em sala de aula. Se fosse num país de mínimo amor próprio, teria parado tudo no dia seguinte. É como se antes de entrar numa consulta do SUS fosse necessário fazer uma prece. Velez também sugeriu que estudantes denunciassem professores por doutrinação, lembremos.

Weintraub foi pelo mesmo caminho, acusou universidades de serem ambientes de balbúrdia, plantações de maconha, quando são o melhor ambiente possível para um jovem, principalmente a universidade pública. Mas é outro que não conhece o setor, pois sob todos os pontos de vista não há melhor ambiente pra jovens do que uma universidade pública.

Agora, o ministro que usou do posto, seus orçamentos e relações para favorecer os adeptos de sua religião. Não dá nem pra entender como chegamos a tanto. Não sabemos nem brigar neste campo, porque aprendemos a lutar, discordar, em questões de concepção política educacional. Neste caso não há o que debater ou discordar, pois não se trata de política cabível ao setor.

O sistema educacional deveria ter reagido a isso na primeira bobagem feita pelo primeiro ministro, mas lamentavelmente não fomos capazes.

Correio da Cidadania: Você puxou um retrospecto dos ministros da pasta ao longo de todo o governo. Como foram os reflexos cotidianos destes pouco mais de 3 anos de políticas públicas federais e seu ministério mais propriamente?

Otaviano Helene: Com certa dose de cinismo, digo que a pandemia acabou tirando o foco e até evitando certas iniciativas no ensino presencial, que seriam ainda piores com os jovens e crianças do que vimos até aqui.

A postura do governo frente a tudo que é cultural, científico, laico, tudo de interesse social, é totalmente destrutiva, como mostram as reduções orçamentárias na Capes e CNPQ, com cortes absurdos. No CNPQ uma figura totalmente estranha é responsável, no Capes é alguém vinculado à religião que coloca seus interesses privados na função pública... Um estrago muito grande que teremos de recuperar nos próximos anos.

O reflexo futuro é grave, pois reflete e dá corpo a certas ideias e setores sociais perigosos. A Damares escreveu artigo para jornal em que, para argumentar uma visão laica do sistema educacional, falava que o governo permitia o respeito a todos os feriados religiosos. Ela não entende que laico é aquilo que independe de crenças e religiões. Uma escola que leva em conta todas as práticas religiosas é o contrário de laica.

Bolsonaro nunca manifestou ideias significativas sobre educação, mas seus ministros e suas visões, além das decisões orçamentárias, manifestam uma péssima visão das coisas. Pior é praticamente impossível.

Correio da Cidadania: Apesar da paralisia gerada pela pandemia, como tem sido a vida universitária nesses anos de governo Bolsonaro, nas três pontas, isto é, ensino, pesquisa e extensão? Como você descreve o clima entre a chamada comunidade universitária?

Otaviano Helene: Abriram-se as portas do inferno. Posições de extrema-direita, inclusive com base religiosa, se fortaleceram, se sentiram mais livres pra manifestar seu pensamento, até em confronto com normas do sistema educacional, da Lei de Diretrizes e Bases, estatutos e mesmo a Constituição Federal.

Mas repito: houve muita tolerância a tais setores lá atrás. Quando as declarações do Velez não tiveram a repercussão que mereciam, ao não fazermos uma greve e parar tudo, deixamos rolar.

A verdade é que dentro da comunidade educacional este governo tem uma razoável base de apoio, na mesma proporção de outros setores e classes sociais. O ambiente criado no início, com todo o uso de fake news, a prisão de Lula, dificultou mobilizações.

Por exemplo, a redução de recursos do CNPQ e da Capes. Em 2010 houve ligeira queda em função de ajustes momentâneos, após anos de crescimento. Depois voltou a crescer. Essa queda, que foi localizada no tempo e teve razões mais ou menos claras, como a crise de 2008-09, recebeu uma crítica muito grande na universidade, discursos indignados etc. Agora que o orçamento caiu até pra menos da metade, os discursos foram muito menos indignados. No fundo, vemos uma reação e indignação pautadas pela grande mídia e suas escolhas editoriais. E somos afetados por isso.

Outro exemplo: logo no início do governo Bolsonaro, alguns estudantes entraram em sala, colocaram armas na mesa e fizeram um filminho que foi parar na internet. Isso foi relativizado de forma totalmente absurda. Documento da reitoria falou em “não se fazer esse tipo de brincadeira”. Editorial do Estadão falou que eram armas de brinquedo. Como se fosse o ponto a se debater.

Mas tudo passou batido, o ambiente era péssimo, a direita pôs as mangas de fora, professores foram ameaçados e tudo foi relativizado. Agora pagamos o preço. Eles seguem soltos por aí. Vamos ver o que acontecerá neste ano eleitoral. Tudo é possível.

Correio da Cidadania: Mas antes deste governo vimos a aprovação da EC 95, o chamado teto de gastos não financeiros, com limitação de investimentos públicos em áreas sociais, processo associado a um contexto econômico de recessão e consequente queda de arrecadação dos governos e orçamentos como o da Educação. Também vimos o governo enfraquecer o ENEM com reflexos mais severos nos estudantes mais pobres. Assim, surgiu uma crítica de que estamos diante de um processo de elitização do acesso à universidade. Isso já acontece? O que você pode comentar a este respeito?

Otaviano Helene: Ainda é cedo para afirmar isso. O efeito pandemia no desempenho dos estudantes foi gravíssimo, e claro que afetou os estudantes mais pobres. O problema não era ter celular ou computador pra acompanhar as aulas em casa. É muito maior: para estudar em casa é preciso espaço disponível, as pessoas improvisavam espaços para estudos. E no caso dos estudantes pobres não havia a possibilidade.

Estudar em casa é mais complicado, muitas coisas paralelas ao estudo chamam atenção, não é como a sala de aula em que você fecha a porta e se concentra duas horas no mesmo assunto. Houve uma piora significativa desses estudantes, já mensurável, a exemplo do ENEM. E até por isso o MEC tenta limitar acesso aos microdados, talvez pra evitar responder coisas como essa.

Nosso sistema educacional é elitista e excludente. Pessoas de segmentos menos favorecidos estudam poucos anos em escola precária, com professores sobrecarregados, com estrutura insuficiente para responder as necessidades gerais de um aluno. Os pobres são rapidamente excluídos da escola. Antes da pandemia, já havia evasão de pelo menos 10% no ensino fundamental. E até metade do ensino médio, metade dos alunos saem do sistema. Dos que completam o ensino médio, cerca de 80% frequentam escolas públicas, com problemas de todo tipo, que afetam o desempenho e, portanto, sua competividade no prosseguimento dos estudos.

Outra coisa muito importante. Um estudante de universidade pública custa menos que um estudante de instituição privada, de níveis equivalentes. Custa menos formar um estudante na USP do que numa instituição privada de nível semelhante.

Temos cerca de 25% dos estudantes de ensino superior em instituições públicas. Os recursos se direcionam mais as instituições privadas, uma burrada que desperdiça recursos. Nosso sistema educacional superior é um dos mais privatizados do mundo, e isso custa caro na medida em que não aproveitamos integralmente nossa capacidade, tanto em disponibilidade de professores como em geração de interesse nos estudantes. Isso tem consequências no futuro.

O setor privado é péssimo em geral, os bons lugares de ensino são exceções. Mesmo assim, somos recordistas em privatizações. E são privatizações de má qualidade. Portanto, elitização e exclusão dos mais pobres começam no primeiro dia do ensino fundamental.

Correio da Cidadania: O que ficará deste governo? O que você espera ver nos programas políticos dos opositores do presidente que se apresentarem nas eleições?

Otaviano Helene: A recuperação dos orçamentos em ciência e tecnologia é algo a ser feito muito rapidamente, antes que o sucateamento comece a deixar algumas coisas irreversíveis. Com um, dois, três anos de sucateamento os próprios equipamentos se deterioram, fica mais difícil manter a motivação dos estudantes e perdemos a chance de formar quadros profissionais de diversas áreas. Ao não se fazer manutenção, diversos equipamentos vão se perdendo. Precisamos de um programa emergencial de recuperação dos equipamentos, bibliotecas, laboratórios.

Há também o problema dos cortes orçamentários, a partir da EC 95, que vincula investimentos em áreas sociais à arrecadação fiscal, ainda que parecesse que pensionistas e aposentados fossem o alvo da EC 95, como vimos na massacrante propaganda da reforma previdenciária, que nunca ouviu o contraditório. Quando falavam que o governo economizaria determinado valor, significava que pensionistas e aposentados perderiam este valor. A propaganda foi tão massiva que até quem perderia apoiou a proposta.

Assim, me parece que as grandes vítimas desse processo são aposentados e pensionistas. Mas vai sobrar pra todos os outros setores sociais sobre os quais os “gastos” são calculados a partir da arrecadação.

Correio da Cidadania: Apesar da importância das eleições, a luta exclusivamente institucional não mostrou limites muito claros e, neste contexto, não estaria bastante longe de ser o suficiente para alterar toda uma estrutura?

Otaviano Helene: Precisamos lutar mais. O nível de tolerância a este governo chegou a um nível absurdo. Cheguei a participar de mesas com pessoas que participaram de governos como o de FHC e elas fingiam não ver o que se passava. Davam desculpas, falavam que eram ajustes pequenos, quando é um desmonte total.

A resposta só pode ser na rua, em especial dos estudantes, que desanimaram. Está tudo muito devagar. O último movimento estudantil de peso que tivemos foi dos estudantes de ensino médio de São Paulo em 2016, mas infelizmente não houve continuidade. E as barbaridades institucionais que estamos vendo precisam de respostas como essa.

Depois da ditadura, houve uma recuperação do protagonismo das lutas sindicais e estudantis, mas ainda sem o vigor anterior. Acho que houve, sim, um anestesiamento das lutas sociais.

Sei que extrapolo um pouco a pergunta aqui, mas o desmonte da ditadura teve muito alcance. Houve uma retomada sindical nos anos 80, mas a configuração da sociedade mudou. Eram 5 milhões de trabalhadores na indústria de transformação na região metropolitana de São Paulo. Hoje são algo em torno de 2 milhões, mais dispersos, inclusive pela automatização do trabalho e da produção.

Já os estudantes, não me cabe aqui esgotar o assunto, não retomaram o mesmo nível de mobilização que a UNE teve antes da ditadura. Alguns DCEs tiveram importantes recuperações, mas não chegamos ao nível necessário. Tem todo um processo histórico global, o fim da União Soviética, um capitalismo/liberalismo que migrou pra extrema direita, a socialdemocracia que migrou ao centro e depois para a direita...

De toda forma, é hora de retomar lutas.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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