Correio da Cidadania

Um negócio escuso é o único projeto para a região

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6. Um grande negócio escuso é o único projeto para todos na região? A sociedade adoece quando infernizada? Todo mundo é comprável? É enganável?

 

No rio Xingu, - que os Caiapó chamam de “Byti-re”, todas as pessoas percebem que estão sendo tratadas como “entrave” ou “interferência” nos negócios dos grandes, e não apenas os índios Mebengokré, que chamamos Caiapó, brabos mesmo, e que costumam de público nos tratar aos gritos. Na verdade, ninguém na região reivindicou esse mega-projeto, ele chegou de pára-quedas há trinta anos e até hoje se tenta convencer as pessoas a “reivindicá-lo” como se fosse a solução para todas as carências. As pessoas na região reivindicam sim, uma estrutura escolar decente inclusive na área rural, serviços de prevenção e de tratamento de saúde adequados para uma população carente e doente numa região extensa povoada por migrantes há quatro décadas, reivindicam uma Justiça acessível e que funcione com mais rigor e rapidez, bem como o asfaltamento da rodovia Transamazônica, pelo menos no trecho Altamira a Repartimento e Marabá para poderem se ligar por asfalto com a capital paraense e com o restante do pais. Nada disso vai sendo efetivamente atendido, e ficam só infernizando o povo com o onipresente fantasma Belo Monte, forçando todos a serem a favor mesmo sem saber direito do que se trata, e claro! fazendo a caveira de quem desconfia, questiona, critica ou tem a coragem de repudiar.

 

Enquanto isso, as relações sociais vão sendo estigmatizadas, esgarçadas por preconceitos de classe, de etnia, de origem geográfica, de crença religiosa. Manifestantes organizados pelos maiores fazendeiros, madeireiros e comerciantes nas ruas de Altamira em 2006 protestavam contra a paralisação do projeto Belo Monte pela Justiça, e na falta de melhor argumento, portavam uma faixa onde se lia: “Dom Erwin - lobo em pele de ovelha” , uma ofensa impensável em qualquer cidade de maioria católica! Afinal, ele é o bispo da cidade e de toda a região, a Prelazia do Xingu.

 

Na mesma Altamira, em Maio de 2008, realizamos o nosso encontro, Xingu Vivo para sempre! preparado desde vários anos antes, costurando interesses firmes com entidades que em geral tem poucos recursos, coordenados pelo Conselho Indigenista Missionário, pelo Instituto SócioAmbiental (sede em SP) e pelos movimentos das mulheres guerreiras de Altamira. O encontro foi montado para agregar mais gente, mais grupos, representando mais lugares da beira do Xingu, desde o Mato Grosso até a sua foz em Porto de Moz, chamando gente de Tucuruí para testemunhar o seu sofrimento e suas lutas, gente de Santarém, para se prepararem contra a próxima rodada de usinas, no Tapajós, enfim centenas de pessoas pelo único motivo comum de questionar e repudiar os projetos de usinas que ninguém pediu.

 

Foi também convidado a expor no evento o “pai” do Belo Monte, Muniz Lopes. Não quis correr novamente o risco de ser enfrentado pela índia Tuira, e designou o gerente do projeto na Eletrobrás, engenheiro Paulo Fernando Vieira Souto Rezende. Branco rico, da Zona Sul carioca, exalando preconceito, veio disposto a empurrar seu projeto goela abaixo da platéia, com argumentos inadequados, mostrando na tela quatro usinas no Xingu para depois reafirmar que só o Belo Monte ia ser feito. Mas... ia ser feito de todo modo, e nós é que éramos todos imbecis de não enxergar os seus benefícios, nem os cuidados com que estava sendo conduzido pelos iluminados como ele. O tom foi agressivo, mereceu vaias e intimidou muitos, especialmente alguns caciques e dezenas de índios Caiapó também dispostos a brigar, além de muitas mulheres lideradas pela Tuira, todos vindos desde a região de São Félix do Xingu em trajes de guerra e com instrumentos de guerra, terçados, tacapes, flechas, bordunas, bem visíveis e à mão.

 

Com o cenário armado no ginásio municipal do bairro Brasília, a violência não surpreendeu quem conhecia os dois lados: alguns poucos índios cercaram a mesa dos palestrantes e atacaram o engenheiro, rasgaram sua camisa, o derrubaram no chão, cutucaram seu corpo com as bordunas. Quando ele estava caído, apesar de alguns índios o estarem protegendo, outro deles conseguiu desferir um corte cirúrgico, bem calibrado, contido mas firme no braço da vitima. Estava a três metros de distancia, pressenti mas não pude ver o detalhe; confirmando depois pelas filmagens, o objetivo não era decepar nem furar o adversário, e sim, castigá-lo, deixar uma marca para sempre. A cena de sangue interrompeu a sessão e rodou o pais e o mundo, quase sempre na versão que mais interessava à máfia do projeto; mas nada podia esconder a covardia do ato. E quem lá estava lá, viu que o gerente chamou a platéia para a briga.

 

Interessante também foi conferir que muitos políticos paraenses fugiram da raia e não apareceram para o seu eleitorado no Ginásio de Altamira. Gente como o ex-deputado federal Paulo Rocha, conhecido por ter embolsado uns trocados na época do “mensalão”, outros deputados que ali tem o seu curral eleitoral como José Geraldo e Ailton Faleiros, todos do PT e que foram durante anos contrários ao projeto das usinas no rio Xingu. Isso, naturalmente...até janeiro de 2003, quando os petistas chegaram ao poder em Brasília, e especialmente depois de janeiro de 2007 quando chegaram ao poder em Belém, graças à insuspeita aliança da senadora Ana Júlia Carepa com o antigo coronel paraense Jader Barbalho. As empresas ficaram assustadas com a agressão dos Caiapó contra o engenheiro, sentiram o golpe. Um mês depois, com a intermediação serviçal da FUNAI - Fundação Nacional do Índio, ensaiaram uma re-conciliação na aldeia Kikretum, próximo de São Félix do Xingu. A julgar pelo que dizem os índios em sua nota pública, não funcionou:

 

“Reunidos em assembléia extraordinária, nos dias 17, 18, 19 de junho, conversamos bastante sobre a barragem de Belo Monte.

Finalizando a assembléia após a explanação por parte dos representantes da FUNAI de Brasília e dos engenheiros da Eletronorte, nos posicionamos mais uma vez com toda determinação contra a barragem de Belo Monte.

Como em fevereiro de 1989 e em maio de 2008 em Altamira.
 
Ngôbêjé két. Byti-re tin rã·ã rã·ã (Não à barragem! Xingu vivo para sempre!) [seguem as assinaturas de 94 caciques]

 

Para dobrar os renitentes, além das campanhas de opinião, com seu conteúdo de terceira linha, argumentações chatas, monótonas, experimentam também uma trama de cooptações jeitosas dos indígenas, elevados à condição de único “problema” para o prosseguimento da negociata. Vão por isso instalando placas foto - voltaicas e antenas parabólicas, prometendo grana e já adiantando uma parte, pagando contas nas lojas, é o que dizem por lá, que assim fizeram os emissários das empresas, ajudados por indigenistas experientes como os Srs. Porfírio Carvalho, da Eletronorte e Benigno Pessoa Marques, da FUNAI. Por isso talvez uma liderança urbana dos índios Xipaia, dona Elza, que mora em Altamira, e lideranças das aldeias na Terra Indígena Trincheira – Bacajá tenham mudado sua disposição anti-barragem. Também vão prometendo ajudar a delimitar a terra reivindicada por outros grupos, a Eletrobrás assim fez com os pobres Arara do Maia, na barranca direita da Volta Grande, e com os Yudjá / Juruna do km 17 da rodovia Altamira a Vitória do Xingu. E algo do tipo podem também ter feito com os Yudjá / Juruna da T.I. Paquissamba, na margem esquerda da Volta Grande do Xingu. No projeto anterior Kararao, sua aldeia iria para baixo d’água; no atual, não seriam inundados, mas sua aldeia fica em frente ao trecho do rio que estaria com pouca vazão d’ água o ano todo, e praticamente seco no “verão”, de junho a outubro. Suas constantes viagens a Altamira ficariam bem mais custosas e arriscadas, seus lençóis freáticos iriam baixar e sua terra já homologada ficaria praticamente cercada por trás, pelo Norte, por grandes canteiros de obras, estradas, canais, represas menores interligadas.

 

Sem esquecer de mencionar a recente mudança de posição, agora pró-negociacão com as empresas, operada pelo cacique caiapó Paulo Paiakan, que foi o principal “pop star” do Encontro de Altamira de 1989. Na mesma época em que outro cacique, Raoni havia feito um tour musical com o cantor pop inglês Sting, Paiakan havia ido junto com outro cacique, Kube-I ao exterior para angariar fundos e apoio para realizar esse primeiro grande encontro indígena. Por isso chegou a ser processado pelo governo Sarney, ameaçado de “extradição” !!! como se fosse um estrangeiro infrator. Durante aquele encontro em Altamira, em fevereiro de 1989, deu-se a cena famosa de sua prima Tuira esbravejando com o engenheiro Muniz Lopes e roçando o facão em seu rosto.

 

Pois bem, diante dos eventos controversos e emocionados das Audiências Públicas do IBAMA em setembro de 2009, Sua Excelência o Ministro perde as estribeiras e mata saudades dos tempos em que ajudava a reprimir subversivos: O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, afirmou nesta terça-feira que o governo vem encontrando grande dificuldade para obter licenças ambientais para iniciar o processo de venda da concessão da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que vai gerar 11 mil megawatts. "Às vezes tenho a sensação que tem uma força demoníaca puxando para baixo o país, não querendo que o país avance. Não desejando que tenhamos a segurança energética de que tanto precisamos", disse Lobão em evento de energia no Rio de Janeiro [agencia Reuters/Brasil on line, de 29.09.2009 “Lobão diz que "forças demoníacas" prejudicam Belo Monte”, por Denise Luna]. Lobão fez carreira no Maranhão, é conhecido na crônica política por sua fidelidade aos ditadores militares e por sua propensão ao dedo-durismo. No livro de Palmério Dória, pag.67: “Já a fama de delator é reforçada por sua atitude em uma sessão da Câmara dos Deputados em que se homenageava o líder guerrilheiro Carlos Marighela (obs.:assassinado em SP pela Oban) ... Inopinadamente, totalmente fora de tom, Edison Lobão ocupa a tribuna munido de uma série de documentos e passa a acusar Marighela de assaltos, seqüestros e outros crimes que nem havia praticado. Para Sarney, esse é o cara.”

 

Os índios Caiapó ficaram sabendo e, mesmo não sendo católicos nem sendo obrigados a acreditar na existência do diabo, entenderam a hostilidade e chamaram o ministro para o desafio. Eis o que divulgaram na internet duas semanas depois, a partir do povoado de Piaruçu, MT: “O povo Caiapó, liderado pelo Cacique Raoni Metuktire, em repúdio às declarações ofensivas do Ministro Edson Lobão, convida todas as lideranças Indígenas, Ministério Publico Federal, Entidades de Direitos Humanos, Ambientalistas, Organizações não Governamentais e Imprensa em geral, para manifestação contra a construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, a ser realizada de 28/10 a 04/11/2009 no PIV Piaraçú, TI Capoto/Jarina, entroncamento entre o rio Xingu e a MT 322, antiga BR 80. Estará sendo aguardada a presença dos Ministros de Minas e Energia e Meio Ambiente, alem dos Governadores dos Estados do Mato Grosso e Pará. O não comparecimento dessas autoridades implicará no fechamento da Balsa da travessia do Rio Xingu na MT 322 antiga BR 80, trecho que liga os Municípios de Matupá e São José do Xingu no Estado do Mato Grosso.”

 

Nas regiões brasileiras assim eleitas, a implantação de obras como o Belo Monte não admite nada que preexista. A propaganda da máfia sarneysista usa o mito da terra prometida, mas os mega-projetos só vicejam em terra arrasada, com seres humanos dobrados, flexibilizados. Promessas nunca cumpridas, miragens na imensidão verde da selva ameaçada. Os jovens grafiteiros de Altamira, contemporâneos como os anti-globalização de Seattle e Genova, inverteram o logotipo da “Eletromorte” e rebatizaram a coisa de “Belo Monstro”. Em trinta anos, ele já havia morrido duas vezes, prosseguimos preparando sua terceira morte.

 

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