Correio da Cidadania

A reforma da Previdência em 2007: orquestração e despolitização

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Claramente o sistema de poder visa apropriar-se dos recursos da seguridade social em direção à pátria financeira. Principalmente, operam para despolitizar o debate previdenciário.

 

 

A heterogeneidade do Sistema Previdenciário Brasileiro

 

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o sistema de poder, sob coordenação das altas finanças, vem propondo e impondo, em cada início de mandato presidencial, uma nova reforma previdenciária, com caráter geralmente restritivo àquela realizada no próprio texto constitucional original. Para 2007, também esse sistema planeja uma nova reforma – agora destinada explicitamente a cortar, restringir e/ou postergar direitos sociais no regime básico da Previdência (Regime Geral de Previdência Social), administrado pelo INSS. Nas suas vezes anteriores – Emenda Constitucional nº. 20/98 (remetida mensagem ao Congresso no primeiro governo FHC, em 1995) e Emenda Constitucional nº. 41/2003 (remetida mensagem ao Congresso em março de 2003, já no governo Lula) -, não se discutiu nos programas de campanha dos candidatos presidenciais os termos substanciais das reformas então encaminhadas ao Congresso.

 

O sistema previdenciário brasileiro contém três subsistemas, independentes, e orientados a públicos e funções distintas: 1) um Regime Geral da Previdência Social (GPS), administrado pelo INSS, compulsório até um limite de remuneração (atualmente R$ 2.580,00), com normas e princípios hoje orientados à seguridade social; 2) várias administrações independentes de regimes próprios de Previdência, na União, 27 estados e DF e mais de três mil municípios, dirigidos especificamente ao funcionalismo público; 3) um sistema privado de capitalização – com fundos fechados e fundos abertos de poupança de longo prazo, denominado Previdência Complementar Privada.

 

A esses três subsistemas ter-se-ia na verdade que agregar um quarto – a Previdência Complementar Pública, que, embora criada com tanta urgência pela Emenda 41/2003, até hoje não foi regulamentada.

 

Toda essa estrutura institucional cobre cerca de 61% da população ocupada do país (ou 51% da população economicamente ativa), deixando ainda fora de qualquer tipo de seguro previdenciário quase 40% da população ocupada ou 50% da População Economicamente Ativa (a PEA, no conceito previdenciário, envolve hoje 80 milhões de pessoas).

 

Aqui, como no mundo inteiro, os sistemas previdenciários são afetados por regras previdenciárias, que aplicam diferenciados princípios securitários e que, portanto, afetam condições de acesso, percepção de benefícios, definição de valor, formas de financiamento etc. Mas também afetam os sistemas previdenciários condições independentes e externas ao sistema como, para citar três vetores significativos, a evolução do perfil demográfico, a estrutura ocupacional e de relações de trabalho e a base de financiamento público-privado desses sistemas.

 

Como se pode depreender, há uma realidade complexa, multifacetada e profundamente heterogênea no sistema previdenciário brasileiro. Está ainda sujeita a mudanças e adaptações históricas. Mas, se não houver clareza sobre os rumos que se perseguem nessas mudanças ou reformas, o destino dessas mudanças será em grande medida um esforço de Sísifo.

 

A reforma pretendida pelo sistema financeiro

 

Observe que, como dissemos no início, os três subsistemas de Previdência têm, na verdade, funções e objetivos muito distintos, aos quais estão associados leituras políticas, interesses e perspectivas de proteção social diversos – até opostos.

 

O primeiro, o RGPS, é um sistema de direitos sociais universais – herdeiro de uma Previdência restrita ao setor formal (CLT), mas com pretensão, após 1988, à universalidade do atendimento.

 

O segundo é um subsistema exclusivo para o funcionalismo público; não se rege pela teoria da seguridade social, mas por um certo approach brasileiro de reprodução dos estamentos burocráticos. Esse sistema foi reformulado em 2003 pela Emenda 41/2003, cujo principal mérito é o estabelecimento dos tetos às aposentadorias e pensões.

 

O terceiro subsistema, a Previdência Complementar Privada, é, na verdade, um sistema de capitalização privada, do presente para o futuro, que, na realidade, não tem cobertura adicional de população – já que os dois outros sistemas são compulsórios.

 

Quanto à reforma que o sistema de poder pretende realizar em 2007, a pretensão clara dos arautos do sistema financeiro (apoiados no Ministério da Fazenda) é restringir as regras constitucionais de direito social vigentes para o RGPS – com nova elevação de idade para aposentar-se, desvinculação do salário mínimo do piso de benefício, uniformização dos tempos de aposentadoria de homem e mulher e uniformização dos tempos rural-urbano.

 

Tudo isso vem inscrito como se fora imposição da "transição demográfica" ou da "realidade fiscal de longo prazo", calcada em forte manipulação empírica – burocrática, acadêmica e midiática.

 

Claramente, o sistema de poder visa apropriar-se dos recursos da seguridade social em direção à pátria financeira. Os seus arautos promovem manipulações e falsificações dos argumentos da transição demográfica e/ou da explosão de gastos do RGPS. Principalmente, operam para despolitizar o debate previdenciário. Pois, se reforma é necessária no RGPS, o é na linha de inclusão dos cerca de 40% da população ocupada, excluída de qualquer previdência ou cobertura de seguridade social razoável. Isto sim, seria o destino aceitável em duas ou três décadas de um sistema de seguridade, caminhando para atender 100% da população.

 

Resta finalmente saber como os movimentos sociais, setores de partidos políticos, personalidades públicas, mídias etc. podem colocar na campanha eleitoral de 2006 os termos de uma reforma universalizante, contra a reforma esterilizante que ora vem sendo preparada nos escaninhos do sistema financeiro.

 

Guilherme C. Delgado é economista do IPEA e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

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