Correio da Cidadania

Caso Enel: “Sem mudança no modelo regulatório, teremos problemas muito graves”

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De acordo com os bombeiros, não houve vítimas
A tempestade com vendaval em 3 de novembro foi um cataclisma que causou estragos inéditos no serviço de energia elétrica de São Paulo. Parte da cidade passou dias no escuro, em alguns casos até uma semana. O desastre colocou a nu toda a fragilidade do modelo de concessão do serviço público essencial orientado pelo lucro, processo radicalizado quando o governo estadual repassou a AES Eletropaulo à Enel, que demitiu funcionários em massa e praticamente abandonou a manutenção preventiva da rede elétrica. Um modelo antissocial e tecnicamente ineficaz, como explica Eduardo Annunciato, o Chicão, técnico de sistema elétrico e presidente do Sindicato dos Eletricitários do Estado de São Paulo, na entrevista que o Correio da Cidadania publica.

“O problema é falta de gente e falta de investimento correto na rede. O investimento até ocorre, no entanto, não é investido em manutenção preventiva, mas forma de aumentar o capex (Capital Expenditure, que significa “despesas de capitais”) da empresa. Isso aumenta o custo na tarifa sem acabar com o problema na rede, pois apenas isola o defeito. É um erro estratégico da empresa”, explicou.

Além de atacar a atuação da empresa voltada ao lucro rápido, Chicão lembra como a Enel falha sistematicamente na entrega de um serviço de qualidade e desperdiça recursos ao atuar somente no socorro de problemas. Pra completar, o eletricitário aponta a cumplicidade das agências reguladoras, a começar pela Arsesp, já historicamente sequestradas pelos interesses empresariais, a ponto de alguns representantes políticos parecerem advogados de defesa de seus negócios.

“A Enel fica tentando atender números de DEC-FEC (Duração Equivalente de Interrupção e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora, medidas observadas por agentes reguladores) e assim criou um verdadeiro apartheid energético em sua área de concessão. Ou seja, a população que mora nas periferias, nas regiões mais pobres, fica no escuro, apagada, isolada por religadores automáticos, para manter a média do resultado do DEC-FEC, que é o número desejado pela Enel. Isso daí é só a ponta do iceberg. Se não for tomada uma medida para mudar o modelo do setor, nós vamos ter problemas muito mais graves daqui para frente”, explicou.

Na entrevista, Chicão ainda destaca a dedicação dos funcionários da empresa, que mesmo precarizados fizeram longas jornadas de trabalho pela restauração da rede, inclusive aqueles que se encontravam de férias, e explica a inviabilidade do enterramento de fios como solução de curto prazo. Quanto à excepcionalidade do evento climático que destruiu a rede, já não se pode tratar exatamente como surpresa. O ponto é que tal realidade exige gastos com prevenção e manutenção que afetam a lucratividade de acionistas.

“Tudo indica que o Estado tem melhores condições de tocar o processo de melhoria de qualidade, como eu vivenciei no passado, eu trabalhei nas estatais na época e vi como funcionava. Saíam equipes a levantar defeitos na rede e depois outra equipe consertava. Periodicamente. Isso não se vê mais. Hoje só tem equipes de ação corretiva, manutenção corretiva. Para mim, não importa se vai ser privado ou estatal, desde que entregue energia confiável, de qualidade, com tarifa baixa. Se alguém conseguir fazer algo diferente disso, vou ser muito claro, não me importa. Desde que funcione. O que está aí hoje não funciona”, resumiu.

Confira a entrevista completa a seguir.

Correio da Cidadania: Como analisam os acontecimentos na rede elétrica de São Paulo diante da tempestade de 3 de novembro, que deixou grande parte da cidade sem luz por 1 ou 2 dias, alguns até por 3 ou 4 dias, e destruiu inúmeros postes, fiações e árvores?

Eduardo Annunciato: Na verdade alguns lugares ficaram de 5 a 6 dias sem luz, e alguns poucos até 7 dias sem energia, demorou muito para restabelecer. A questão da confiabilidade da rede elétrica na área de concessão da Enel está muito precária e energia elétrica não pode abrir mão da confiabilidade, falta manutenção preventiva. O povo está pagando o preço da falta de manutenção, da falta de trabalhadores especializados nessa atividade, de pessoas capazes de percorrer trechos, identificar problemas e dar soluções rápidas.

O problema é falta de gente e falta de investimento correto na rede. O investimento até ocorre, no entanto, não é investido em manutenção preventiva, mas forma de aumentar o capex (Capital Expenditure, que significa “despesas de capitais”) da empresa. Isso aumenta o custo na tarifa sem acabar com o problema na rede, pois apenas isola o defeito. É um erro estratégico da empresa.

Correio da Cidadania: Como o sindicato analisa a reação imediata do poder público, tanto prefeitura como governo do estado?

Eduardo Annunciato: Foi como aquelas brincadeiras de batata quente, todo mundo jogando a batata quente para o lado para fugir da responsabilidade. Na verdade, a Enel tem responsabilidade por não ter feito a manutenção, a prefeitura de São Paulo tem responsabilidade por não ter feito a zeladoria da cidade no momento correto para evitar maior dano e o governo do estado de São Paulo tem culpa, porque tem a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), a quem cabe fiscalizar as redes e não fiscaliza.

A Arsesp fechou um convênio com a Aneel, que é a federal, disse que fiscalizaria São Paulo, mas nem a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e nem a Arsesp cumprem seus papeis. É uma vergonha o que o poder público fez nesse momento de crise.

Correio da Cidadania: O que isso revela das condições da Enel, que adquiriu a antiga AES Eletropaulo em 2019 e desde então cortou um terço de sua mão de obra?

Eduardo Annunciato: Na verdade, a Eletropaulo foi privatizada em 1998, a transferência da concessão ocorreu em 2018, quando a AES, que detinha essa concessão desde 2002, a adquiriu de um consórcio; esse consórcio adquirira a antiga estatal em 1998 e era formado pela CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), VBC (Votorantim, Camargo Correa e Bradesco), a francesa EDF e a Hilton, detentora da AES. Num acordo de acionistas, todos saíram e ficou a AES com o controle da Eletropaulo. Em 2018, tomou-se a decisão de vender os ativos para a Enel, por um período de concessão de 10 anos, até 2028, o período que sobrou da concessão de 30 anos iniciada em 1998.

A Enel entrou, pagou um valor pela aquisição da empresa e nesse período já teve resultados polpudos. No último período, ela chegou a reverter, na última distribuição de dividendos, R$ 1,4 bilhão. E o investimento na rede não está sendo feito da forma correta. Isso apesar de a empresa, desde quando entrou, ter revertido para a rede R$ 5,7 bilhões em investimento. Mas esses valores não são investidos em manutenção preventiva, e sim em mitigação de dano.

Portanto, a empresa isola os defeitos, deixa muita gente no escuro e manda uma equipe lá, igual bombeiros, apagar incêndio. Ela fica tentando atender números de DEC-FEC (Duração Equivalente de Interrupção e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora, medidas observadas por agentes reguladores) e assim criou um verdadeiro apartheid energético em sua área de concessão. Ou seja, a população que mora nas periferias, nas regiões mais pobres, fica no escuro, apagada, isolada por religadores automáticos, para manter a média do resultado do DEC-FEC, que é o número desejado pela Enel.

A Enel, além de não fiscalizar, gere um modelo falido do setor elétrico, que propicia investimentos equivocados, que geram problemas como esse que nós estamos vendo. Isso daí é só a ponta do iceberg. Se não for tomada uma medida para mudar o modelo do setor, nós vamos ter problemas muito mais graves daqui para frente.

Correio da Cidadania: Depois desse desastre, como o sindicato analisa o trabalho de reparação da Enel?

Eduardo Annunciato: Só tenho uma coisa a dizer. Se não fosse o esforço dos trabalhadores próprios e terceirizados na solução do problema, a coisa estaria muito mais grave. Teve trabalhadores cancelando folga para vir atender, trabalhando mais de 12 horas para atender as deficiências da rede, outros cancelando as férias, deixando suas famílias para vir atender a rede.

O ponto é que a empresa não estava preparada para o problema que veio. Temos de reconhecer que foi um cataclisma, um problema muito grande, mas uma empresa do porte da Enel não pode abusar da sorte. Até porque quando assumiu a concessão, tinha 8.050 trabalhadores na Eletropaulo. Hoje tem 3.900. E se somar a força de trabalho das empreiteiras com o quadro próprio, não dá o número de trabalhadores que tinha no período em que ela adquiriu a concessão, principalmente na área operacional, os que atuam diretamente em campo.

Correio da Cidadania: Considerando a excepcionalidade do evento climático, o que poderia ter sido feito como prevenção?

Eduardo Annunciato: Prevenção. A palavra-chave é essa. Faltou manutenção preventiva. Há muito tempo a empresa, e não é só a Enel, todas as distribuidoras, por conta desse modelo nefasto aplicado no setor elétrico brasileiro na privatização, vêm negligenciando a prevenção e a confiabilidade da rede. Abusam da sorte mesmo, mudam graduação de relés diferenciais de subestação (dispositivo de proteção de transformadores, que ajudam a evitar curtos-circuitos ou explosões), trocam elo fusível, mudam as modalidades de proteção e manobra da rede, e assim colocam tecnologia para segregar a rede e não para resolver o problema. Dá nisso.

A empresa joga com a regra do jogo para aumentar a tarifa e não investe na qualidade e na confiabilidade, está aí o apagão para dizer exatamente que rumo o setor elétrico está tomando. É uma vergonha. Ou inverte-se isso, ou a Enel começa a atuar adequadamente e muda-se esse modelo falido, ou nós vamos ter problemas mais graves no futuro muito próximo.

Correio da Cidadania: O que deve ser feito para melhorar a capacidade de resistência da rede elétrica de São Paulo? O que pensa da proposta de se enterrar fios, uma das promessas feitas há anos, inclusive como argumento favorável à privatização?

Eduardo Annunciato: Foram aproximadamente dez minutos de vento e chuva, e aconteceu tudo isso. E aí vêm os salvadores da pátria, para tirar os holofotes de cima do problema, da sua inobservância de responsabilidade. No caso da Prefeitura, não cuidou da zeladoria da cidade; no caso do governo, a Arsesp não cuidou da fiscalização adequada da empresa, no sentido de apertá-las para cumprir o seu objetivo social, de atender bem a energia elétrica, de fazer as manutenções. Agora vem com essa desculpa de salvador da pátria.

Todo mundo sabe que o enterramento de cabos é melhor, mas custa caro. Hoje, o custo de se colocar rede reticulada, isto é, o sistema que a Eletropaulo utiliza de rede subterrânea, é de R$ 12 milhões por quilômetro. Chega a ser inestimável. Se fizer a conta e considerar enterrar os 42 mil quilômetros de rede aérea da área de concessão, ficaria mais de meio trilhão de reais. Ou seja, não há capacidade financeira para isso.

O que existe são leis, como teve na prefeitura de São Paulo, pedindo para enterrar alguns quilômetros por ano, fazer a conta-gotas para que a longo prazo as coisas se acomodem. Mas nem o que está previsto na legislação municipal, que não é obrigação da empresa cumprir, por ser uma legislação municipal, mas deveria ser um dever moral da empresa, foi feito nesse período, que é o enterramento dos cabos.

Assim, não venha o prefeito agora querer apagar incêndio e colocar a cortina de fumaça sobre um debate que deve tratar de negligência, imperícia, imprudência e falta de vontade política de resolver os problemas de uma grande cidade como São Paulo.

Correio da Cidadania: O que pensa da privatização em si e que comparativo faz entre a atual empresa e a antiga Eletropaulo?

Eduardo Annunciato: A privatização já se demonstrou nefasta e ruim, principalmente no modelo do setor energético. Porque uma empresa, sendo estatal ou privada, não importa, tem um custo de operação, um custo de pessoal, um custo de manutenção. Ela precisa de uma verba, uma reserva de contingência para contar com verba emergencial para problemas que possam surgir no decorrer das suas atividades.

Qual a diferença da privada para a estatal? A estatal não precisa auferir lucros exorbitantes, ela precisa deixar em funcionamento e, se tiver um superávit, distribuir para os seus acionistas. Se precisar fazer um investimento, emite debêntures conversíveis, capta dinheiro no mercado, faz investimento, paga, remunera as pessoas que investiram nas debêntures conversíveis e vida que segue nas suas ampliações.

A privada, além de tudo isso, visa o lucro do mercado, que é voraz e gosta de ganhar dinheiro. Para lucrar mais, tem de escolher de onde vai cortar e o setor privado, via de regra no setor elétrico, vem cortando na mão de obra e na manutenção. O resultado é que a conta de luz fica cada dia mais cara e a qualidade cada vez menor. Portanto, a privatização se demonstrou ineficiente, totalmente ineficiente, no que promete e não cumpre. Prometeram conta de luz mais baixa e a qualidade maior. Entregaram tarifas altíssimas e a qualidade baixa, rala, muito ruim.

Correio da Cidadania: Para finalizar, o sindicato defende a reestatização da Enel? Por quê?

Eduardo Annunciato: Olha, não me importa se vai ser público ou privado, o que a gente quer e precisa é de confiabilidade, precisamos poder confiar na rede de energia elétrica. E precisávamos que eles entregassem o que prometeram, tarifas mais baixas e qualidade alta. Não me importa quem vai tocar.

Tudo indica que o Estado tem melhores condições de tocar o processo de melhoria de qualidade, como eu vivenciei no passado, eu trabalhei nas estatais na época e vi como funcionava. Saíam equipes a levantar defeitos na rede e depois outra equipe consertava. Periodicamente. Isso não se vê mais. Hoje só tem equipes de ação corretiva, manutenção corretiva. Manutenção preventiva é pouquíssimo feita no setor elétrico hoje, o que nos levou a esse caos.

Para mim, não importa se vai ser privado ou estatal, desde que entregue energia confiável, de qualidade, com tarifa baixa. Mas me parece que empresa estatal tem muito mais condição de entregar isso do que o setor privado. Se alguém conseguir fazer algo diferente disso, vou ser muito claro, não me importa. Desde que funcione. O que está aí hoje não funciona.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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