Correio da Cidadania

De Kiev para Pequim: a crise (ou a guerra?) se alastra para a Ásia

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Foto: Reprodução Crítica da Economia.

Uma crise geral! Uma guerra! Pela primeira vez, no pós-guerra (1945), parece que começou a crise tão esperada pelos partidários da revolução proletária internacional. Para quem, como dizia o economista Karl Marx, “uma verdadeira revolução só pode acontecer na esteira de uma grande crise geral… e uma é tão certa quanto a outra”.

Demorou mas veio. Desde o início da Crítica da Economia, exatamente trinta e cinco anos atrás, o conteúdo de fundo dos mais de 1500 boletins publicados foi a procura obsessiva dos dois fenômenos estratégicos mais importantes para a possível ação política e revolução da classe proletária internacional: a eclosão de nova crise econômica geral e a consequente guerra entre as grandes potências militares do planeta.

Uma luta difícil e quase solitária em um ambiente real massacrante de contrarrevolução mundial. Em nenhum dos inúmeros ciclos econômicos dos últimos setenta e cinco anos a fase de desaceleração do ciclo evoluiu da crise parcial para a crise geral (ou catastrófica).

A consequência política mais importante desta ausência de uma crise completa foi o natural abortamento de nova guerra mundial entre as potências. A Pax Americana – com a parceria subalterna da Rússia até final dos anos 1990 – reinava até agora sobre todas as grandes e pequenas nações do mundo. Incontestavelmente. Paz dos cemitérios e da acumulação.

Entretanto, na medida em que cada choque periódico se mostrava sempre mais potente que o anterior e colocava à prova as redes protetoras anticíclicas dos governos – liberais ou burocráticos, de direita ou de esquerda – aquela busca obsessiva pelo ponto de fratura do regime também se intensificava com mais entusiasmo.

Valeu o esforço. No mais recente ciclo periódico de superprodução e crise do capital global – iniciado no 2º trimestre de 2009 e fechado com nova fase de desaceleração no 4º trimestre de 2019 – a teoria econômica dos trabalhadores (Marx e Engels) manifestou mais fortemente sua absoluta atualidade no dia a dia da dinâmica capitalista.

Esta atualidade foi registrada de maneira mais clara na virada de 2019 para 2020, quando o cenário de eclosão de uma crise geral também ficava cada vez mais provável. Qual seria sua forma? A de um Estado estacionário, de renitente e insuperável reprodução simples da produção industrial mundial. Expansão política do produto acompanhada de desfalecimento real da taxa de acumulação industrial. A macroeconomia dos governos e a fulminante globalização do capital do período pós-guerra (1945) esfacelam.

E a data para confirmar (ou não) este cenário mais provável? Cravado em inúmeros boletins, lives e outras postagens da Crítica nas redes sociais: a passagem da crise parcial para uma crise geral seria confirmada (ou não) na virada do último trimestre de 2021 para o 1º trimestre de 2022.

Foi confirmada! Já está a pleno vapor a incrível metamorfose da crise parcial para a crise geral (catastrófica). Sem tempo para acabar. Aliás, em uma crise geral o tempo desaparece junto com o capital. Sempre acontece. “Acho que o horizonte de tempo não é mais o que importa. São os dados que decidem”. – bradou Madame Christine Lagarde, diretora presidente do Banco Central Europeu (BCE) no último 10 de março, ao anunciar, além da elevação da taxa básica de juros na zona do euro, a retirada radical dos incentivos fiscais e monetários ao mercado concedidos nos últimos dois anos.

O desaparecimento do tempo é a morte dos cálculos, em geral. E dos banqueiros em particular. A derrocada econômica se manifesta primeiramente como uma crise financeira. Como uma súbita turbulência dos circuitos de crédito e de capitais. A incerteza toma conta dos banqueiros em todo o mundo. Dos europeus, em níveis mais alarmantes que alhures.

Então, o que os ilustres banqueiros do BCE podem fazer para administrar preços e taxa de juros neste ambiente de paralisante incerteza? Parece que Madame Lagarde já tem opinião formada a respeito. A mesma que, segundo ela, está rolando entre seus colegas da diretoria do BCE: “Houve alguns membros que disseram que, dada a incerteza que temos, deveríamos estar incertos também, e não fazer nada”.

Não fazer nada! Quando o tempo desaparece só dá para os “incertos” e “instáveis” burocratas keynesianos fazerem nada. Esta confissão de impotência da macroeconomia ou da ilusória invencibilidade da política econômica dos capitalistas para a estabilidade dos preços e da moeda já começou a ser precificada pelo mercado. Tudo se torna altamente volátil. A instabilidade e quebras de empresas no mercado de capitais (bolsas de valores) e de mercadorias (commodities) devem alcançar níveis inéditos nas próximas semanas.

Apenas um exemplo: eram exatamente 5h42m da quarta-feira (8) em Londres, quando o mercado presenciou na London Metal Exchange (LME) o que a Bloomberg descreveu como “os 18 minutos de caos comercial que quebrou o mercado de níquel”. A indústria de metais mergulhou em turbulências não vistas desde a Crise do Estanho de 1985. As coisas mais sólidas da natureza tornadas capital se desmancham no placar da LME.

O mercado está mais do que ansioso nos EUA. Com a inflação furiosa ameaçando piorar nos próximos meses – no mês passado bateu em 7.9% / últimos 12 meses.

A não ser o que o BCE acaba de fazer aleatoriamente: Elevar a taxa básica de juros e aliviar o pé do acelerador de gigantescos estímulos fiscais e monetários dos últimos 24 meses. Um salto perigoso. As turbulências no mercado aumentarão, pois estarão sendo retirados exatamente aqueles estímulos recordes na história econômica mundial e as taxas de juros próximas de zero que prorrogaram a entrada da economia reguladora do mercado mundial na crise geral no primeiro trimestre de 2020 e seguintes.

Foi este “vento de Deus” carregado de maldades inflacionárias que manteve, nos últimos 24 meses, os valores do capital financeiro e dos lucros contábeis das empresas industriais crescentemente inflacionados e dissociados da deflação real da produção de valor e da mais-valia.

A elevação da taxa de juros pelo Fed na reunião que hoje se inicia servirá para uma coisa muito importante: soar as sirenes avisando que aquele escudo antiaéreo utilizado nos últimos dois anos não funciona mais e as tropas invasoras da lei da gravidade, quer dizer, do valor trabalho, estão virando a esquina de Wall Street.

Nada será como dantes. O mundo da economia capitalista precisa agora reconformar sua desgastada plataforma de acumulação. Quando a verdadeira crise chega para o capital e o tempo desaparece a política econômica tem que continuar por outros meios.

A guerra é a continuação da economia por outros meios. A economia do imperialismo se funde, neste momento, com a guerra imperialista, como ensinava a economista Rosa de Luxemburgo. E a análise vira suas lentes para novas formas da dinâmica econômica.

Nestas especialíssimas condições o que acontecerá doravante com a economia mundial? Qual será o tamanho da depressão econômica? De repente, para saber a resposta a estas perguntas é muito mais importante saber, de imediato, quais são as verdadeiras intenções do imperador Joe Biden e de seu valete Vladimir Putin com a guerra na Ucrânia e alhures do que as medidas inócuas que o Fed de Jerome Powel está tomando nesta semana para combater a hiperinflação e estabilizar a economia dos EUA.

No seu discurso na tarde de sexta-feira. 11 de março, por exemplo, Joe Biden, presidente dos EUA, falou três vezes da possibilidade de uma 3ª Guerra Mundial. O que seria considerado poucas semanas atrás uma completa insanidade ou, pelo menos, um delírio irresponsável, o mundo assiste na tela da CNN o presidente da maior potência econômica e militar do planeta afirmar com cara de bravo, como quem não está blefando, que não está falando por falar: “Se eles [os russos] se movimentarem contra a OTAN será a 3ª Guerra mundial”.

E completa: “quanto à ideia que nós [EUA] mandaremos ofensiva de aeronaves e tanques, pilotos e soldados à Ucrânia… se isso acontecer será a 3ª Guerra Mundial, não se enganem… a guerra da Ucrânia não deve ter vencedor… ”.

Falou o grande imperador! De repente, parece que os capitalistas de Washington ou de Moscou, tanto faz, resolveram colocar fogo na Europa e, na sequência, no mundo todo. Para não perder a propriedade privada os capitalistas não hesitarão em destruir o mundo. “Não se enganem”, ameaça o imperador aprendiz de Doctor Strangelove.

O fato é que a sucessão de acontecimentos econômicos e geopolíticos neste 1º trimestre 22 é uma gigantesca bola de fogo que só faz aumentar. Alastra-se a ingovernabilidade e enfraquecimento dos Estados nacionais imperialistas. No ocidente e na Ásia. E os capitalistas reagem jogando tudo no único caminho do confronto bélico.

A crise se alastra para a Ásia. De Kiev para Pequim. A nova cena mundial começa a mudar celeremente o comportamento dos seus principais atores. Nesta semana serão revelados, por exemplo, fatos importantíssimos a respeito dos impactos da crise na China. O chão de fábrica da globalização começa a apresentar rachaduras de incríveis dimensões.

Os primeiros sinais desta derrocada econômica chinesa aparecem primeiro, como sempre, em suas principais bolsas de valores. Uma fortíssima liquidação nas ações chinesas se aprofundou nesta terça-feira (15), com preocupações geopolíticas dos capitalistas com a aliança do país com a Rússia e a persistente pressão regulatória de Pequim sobre as gigantes da tecnologia, levando os índices das bolsas chinesas ao nível mais baixo desde a última crise periódica de 2008/2009.

Só com a queda de segunda-feira, os 76 bilionários chineses entre as 500 pessoas mais ricas do mundo perderam US$ 228 bilhões – um quinto de sua fortuna combinada. E continuaram perdendo. O Hang Seng China Enterprises Index, que acompanha as ações chinesas negociadas em Hong Kong, caiu 6,6% em 15 de março, após uma queda na sessão anterior que foi a maior desde a crise de 2008. As big techs Alibaba e Tencent lideraram o declínio.

O capital está pulverizando na China. As ações daquela enorme economia montadora das grandes empresas globais de EUA, Europa e Japão parecem cada vez mais arriscadas devido a preocupações de que os laços de Pequim com a Rússia possam desencadear novas sanções dos EUA.

O fantasmagórico “eixo euroasiático” está na mira dos EUA, o que aumenta as preocupações do mercado. Some-se tudo isto ainda com aquela persistente repressão dos burocratas de Pequim sobre as gigantes chinesas da tecnologia, o que está levando até uma possível saída das bolsas dos EUA.

Este cancelamento das ações chinesas de Wall Street – e suas providenciais IPOs para financiar as empresas do “socialismo de mercado” – jogaria a economia chinesa para a companhia da Rússia na vala comum das novas párias da desglobalização.

“A liquidação é exagerada, mas o resto também”, disse Andy Maynard, chefe de ações da China Renaissance Securities. “O mercado está louco – não há mais fundamentos. Isso pode ser pior do que a crise financeira de 2008.”

No vazio do capital a política externa do sacrossanto Politiburo chinês começa a mudar de pele com fulminante rapidez. Os burocratas de Pequim estão apavorados com a repentina ameaça de serem triturados por sanções econômicas parecidas com as aplicadas pelos EUA sobre a Rússia.

Neste sentido, ocorreu importante reunião de alto nível entre o governo estadunidense e chinês no luxuoso hotel Rome Cavalieri, na manhã de 14 de março, segunda-feira, em Roma, capital da Itália. De um lado, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan; de outro, o principal diplomata da China e membro do Politiburo, Yang Jiechi.

A reunião de sete horas em Roma entre Sullivan e Jiechi, planejada há várias semanas, ganhou maior urgência à medida que a guerra da Rússia contra a Ucrânia se arrastava para sua terceira semana completa sem nenhum sinal de fim.

Autoridades de Washington se recusaram a divulgar oficialmente qualquer informação específica sobre o que Sullivan possa ter transmitido a Jiechi sobre oferecer assistência à Rússia. Mas, segundo o jornal Washington Post, alto funcionário do governo Biden revelou sob condição de anonimato que “os Estados Unidos têm profundas preocupações com o alinhamento da China com a Rússia neste momento” e que “Sullivan foi direto com os chineses sobre as implicações e consequências potenciais de certas ações”.

Por seu lado, a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, disse na mesma segunda-feira que as consequências para a China seriam “significativas”. Falando em vários programas de domingo no dia anterior, Sullivan fez discurso semelhante, dizendo na CNN que “comunicamos a Pequim que não vamos ficar parados e nem permitir que algum país compense a Rússia por suas perdas com as sanções econômicas”. Mas se recusou a dizer se Washington acredita que a China já forneceu assistência militar ou financeira à Rússia.

Quanto aos chineses, divulgaram apenas um breve e vazio comunicado após a reunião no Rome Cavalieri, dizendo que Yang deixou claro que Pequim não está satisfeita com o conflito Rússia-Ucrânia. “Yang Jiechi apontou que a situação hoje na Ucrânia atingiu um estágio que o lado chinês não quer ver”, disse o comunicado.

Falando abobrinhas: “A China sempre defendeu o respeito à soberania e integridade territorial de todos os países e o cumprimento dos propósitos e princípios da Carta da ONU.”

Mais cedo, Zhao Lijian, porta-voz do governo chinês, foi um pouco mais explícito. Negou os relatos de que a Rússia pediu ajuda militar e econômica à China, chamando-os de “informações falsas” que não são “nem responsáveis, nem éticas” e acrescentando: “Recentemente, os EUA espalharam informações falsas contra a China sobre a questão da Ucrânia, com intenções sinistras”.

Logo, logo, a opinião pública mundial será informada destas “intenções sinistras”. “Não se enganem”, como diria o Napoléon le Petit da Pensilvânia.

Não é demais repetir: nada será como dantes nesta passagem da crise parcial para a crise geral. Alerta máximo nos acontecimentos desta semana. Muita coisa cuidadosamente escondida por décadas começa aflorar na superfície do mundo capitalista em chamas.


José Martins é economista.

O artigo foi originalmente publicado no Crítica da Economia. Colabore com o projeto para que continue oferecendo análises como essa.
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