Correio da Cidadania

Às favas com a economia! (1)

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A crise do coronavírus expôs algo que passava despercebido pelos desavisados: a incapacidade de a economia fundada na forma-valor resolver problemas sociais relativos à sustentação humana fora de sua lógica oportunista da necessidade de consumo.

A mercadoria é algo que tem dupla personalidade:

— uma concreta, o objeto ou serviço sensível ou visualmente existente, com valor de uso;

— e a outra abstrata, o valor de troca.

É aí que está contida a sua negatividade intrínseca, apesar de parecer aos olhos dos leigos como inofensiva.

A dita cuja usa o valor de uso para viabilizar o segregacionista valor de troca, meramente abstrato; uma descoberta que foi capaz de manter o execrável regime de escravidão milenar de uns sobre outros (o homem é o lobo do homem, já dizia Plauto dois séculos antes de Cristo), de modo mais sutil na chamada modernidade, e desenvolver os mecanismos jurídico-políticos de manutenção de uma ordem social que lhe é coincidente.

Como tudo que é sólido desmancha no ar (Marx), eis que bastou um microscópico vírus causador de uma tragédia sanitária mundial para que entendêssemos quão utilitária, oportunista, insensível e, enfim, inviável no longo prazo é a lógica da economia sob a égide do capital.

Diz a regra econômica: há que se manter as finanças públicas dentro da capacidade orçamentária estatal sob pena de se explodir a dívida pública e inviabilizar as relações mercantis, o próprio Estado e até a vida das pessoas.

Diz a vida social natural: o mais importante são as vidas das pessoas, portanto, apropriemo-nos, para garantir a sobrevivência, de tudo que estiver ao alcance de nossas mãos, e que se dane o Estado (tido enganosamente como nosso protetor, mas que não passa de nosso opressor)!

Diz a regra econômica: mesmo com a pandemia virótica assassina, é necessária a circulação de mercadorias e de pessoas para que a economia se mantenha viva e, com ela, a vida social mercantil.

Diz a vida social natural: a prioridade, diante da propagação do vírus e das mortes por ele causada em percentagem, e de letalidade cada vez mais acentuadas, é que nos mantenhamos reclusos, e que adotemos estratégias lógicas e humanas de sobrevivência no isolamento.

Diz a regra econômica: a lei da oferta e da procura (pretensamente reguladora das relações de mercado com sua mão invisível) está elevando os preços das vacinas e medicamentos atenuantes a patamares insuportáveis, portanto, o governo deveria intervir para inibir os abusos.

Diz a vida social natural: que se danem os lucros dos laboratórios, com os meios de produção de medicamentos (fábricas dos laboratórios de produção dos insumos das vacinas e seus envasamentos e equipamentos de aplicação) passando a produzir para distribuição gratuita os itens socialmente imprescindíveis para a sobrevivência da população economicamente exaurida!


O bezerro de ouro foi atualizado: ele agora exige sacrifícios humanos!

Vale acrescentar: em cada vacina não há um grama sequer de dinheiro, sendo desumano e imoral reduzi-las a meras mercadorias como quaisquer outras que servem para escravizar a parte majoritária da população e proporcionar vantagens econômicas ao capital.

São apenas alguns exemplos, muitos outros poderiam ser acrescentados.

A incompatibilidade entre a vida das pessoas e a dinâmica social da economia no atual estágio do desenvolvimento da forma-mercadoria explicita todas as contradições previstas por Karl Marx, queiram ou não os seus detratores. Já não podemos permanecer engessados numa camisa de força, conformados em viver sob um regime social que nega a própria vida!

Isto não significa que devamos cometer todos os erros dos ditos marxistas tradicionais, que se fixam na parte menos científica da obra de Karl Marx, ignorando (por desconhecimento ou oportunismo) a parte verdadeiramente científica.

Afinal, até por ser adepto do materialismo dialético, ele não era nem queria ser um teórico infalível, que estivesse imune aos erros. Mas, os acertos analíticos e prognósticos resultantes da profundidade dos seus estudos são evidentes para quem mergulha na sua obra sem os costumeiros preconceitos.

A indústria cultural tanto martelou na cabeça de seus públicos que o rótulo de comunista passou a ser tido como tão negativo quanto o de terrorista islâmico, por exemplo. Mal sabem os mesmerizados por essa lavagem cerebral que o comunismo era, para Marx, um objetivo a ser atingido adiante (até agora não o foi em nenhum país), assim como muitos cristãos acreditam que uma segunda vinda de Cristo concretizará o Paraíso na Terra.

Nem mesmo marxista tradicional Marx se considerava, e foi ele mesmo quem o afirmou.

Muitos supõem que Lula seja comunista, por desconhecerem que não passa de um socialdemocrata que, por ignorância, atribui aos comunistas tradicionais (a quem detrata constantemente e expulsou do PT) os horrores de Stalin e Mao, sem saber que as teses marxianas da crítica do valor estão na contramão de tais marxistas.

E também são visceralmente contrárias ao capitalismo que Lula defende, como ex-sindicalista de resultados que ele é: deseja que os trabalhadores continuem escravos do salário e dependentes de proteção (do sindicato e do partido), nem sequer cogitando sua própria superação enquanto tal.

O destino e desgaste de nacionalistas conservadores, de liberais ortodoxos, de socialdemocratas que querem humanizar o capitalismo e de marxistas tradicionais estatizantes é irem juntos para a lata de lixo da História juntamente com todas as categorias capitalistas que preservaram e querem preservar.

Dalton Rosado é economista.
Publica seus textos em Náufrago da Utopia.

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