Correio da Cidadania

O fim da Ford: “os governos precisam assumir uma política de desenvolvimento industrial; só agronegócio não dá”

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Trabalhadores da Ford fazem passeata contra o fechamento da fábrica no ABC  | Bahia Ligada
Trabalhadores protestam em Camaçari, maior planta da empresa 

Depois de 100 anos do Brasil, um dos maiores símbolos do capitalismo industrial e do próprio século 20 abandona suas operações de montagens de veículos no Brasil e, de forma direita e indireta, destrói mais de 100 mil postos de trabalho. A saída da Ford enseja discussões de diversos matizes. No entanto, apesar de bilionários subsídios governamentais nos últimos anos, trata-se de mais um caso onde a busca por margens maiores de lucro define a mudança de local da empresa. O Correio da Cidadania conversou com Sidivaldo Borges, o Escort, dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté, que trabalhou 26 anos na multinacional.

“Eu entrei na Ford aos 20 anos. Logo depois, sofri um acidente de carro, no qual o cinto de segurança me deixou uma cicatriz no rosto. Começaram a me chamar de cicatriz. Eu não gostava, mas é isso que faz o apelido pegar. Depois falaram: tá bom, não é mais cicatriz, é um ex-corte. Logo, Escort, um carro tradicional da Ford”.

Pois enquanto o país passa uma por reorientação econômica que parece não ter nada a entregar a sua imensa massa de trabalhadores urbanos, são milhares de histórias como essa que vão desaparecendo junto com empresas que marcaram época em cidades e polos industriais inteiros.

“Os governos de todas as esferas precisam chamar a responsabilidade em relação ao desenvolvimento nacional e uma política neste sentido. Não dá pra fazer política só para o agronegócio e esquecer o resto. É obrigação do governo se debruçar sobre a questão do desenvolvimento nacional e industrial com vistas a erradicar a pobreza, fazer do Brasil um país melhor e mais desenvolvido. Mas o que vemos é o deboche do governo, a exemplo da sua atitude frente ao coronavírus”.

Na conversa, Escort também comenta a audiência pública desta semana na Assembleia Legislativa de São Paulo, fala do impacto da perda de empregos lembra dos acordos recentes em que trabalhadores abriram mão de direitos e lamenta que o governo federal tenha retirado a exigência de 60% da montagem dos carros em solo brasileiro para que possam vender em território nacional.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como vocês trabalhadores receberam a notícia do fechamento das operações de montagem de veículos da Ford no Brasil?

Sidivaldo Borges (Escort): Com estranheza. Ninguém imaginava uma decisão tão drástica como essa. Estávamos de licença remunerada e, por volta das 14h:30m do dia 11, a Ford anunciou a descontinuidade de sua produção no Brasil. Uma notícia muito ruim para os trabalhadores, as cidades afetadas e, na minha visão, para a economia do Brasil como todo.

Correio da Cidadania: Havia especulações que antecipavam o acontecimento? Entre empregos diretos e indiretos, quantas pessoas perderam seu trabalho?

Sidivaldo Borges (Escort): Não havia expectativa de fechamento, até fizemos recentemente um acordo de estabilidade de emprego por dois anos, abrimos mão de direitos, aceitamos congelamento de salário, diminuição de PLR e do plano médico, tudo pra diminuir custos da empresa. Sempre com o intuito e o compromisso da Ford de continuidade da produção. Não havia expectativa de fechamento, pelo contrário, esperávamos mais investimentos, mesmo porque a Ford detém 8% do mercado de carros no Brasil.

Aqui em Taubaté são cerca de 800 funcionários diretos, 400 terceirizados, fora os agregados, aquilo que gira em torno de nossa produção. Aqui em Taubaté são 32 empresas que trabalham pra Ford. Já em Camaçari falamos de algo muito maior: 5000 mil funcionários diretos e 2800 indiretos.

Pelo levantamento do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sociais e Econômicos) a finalização da produção da Ford no Brasil acaba com 120 mil empregos, diretos, indiretos e associados.

Correio da Cidadania: Como você compreende as alegações da empresa, que agora irá investir na produção de veículos na Argentina?

Sidivaldo Borges (Escort): A empresa ainda deixa incógnitas em suas justificativas. Primeiro disse que procurou o governo federal pra conversar sobre possibilidades de competividade, através de redução de impostos. Depois alegou que a pandemia afetou as vendas. Por fim, chegou a acordo com o governo argentino. Quer continuar no Brasil, mas só vendendo, o que para nós é muito ruim, pior ainda em meio à pandemia, um aspecto que torna tudo ainda mais relevante.

É uma decisão muito triste pra nós e ainda não conseguimos digerir.

Correio da Cidadania: Como foi a audiência pública desta quarta, 27, na Assembleia Legislativa de São Paulo? Os governos poderiam, ou ainda podem, ter alguma reação de amparo aos trabalhadores?

Sidivaldo Borges (Escort): Foi uma audiência de 4 horas de duração, mediada pelo deputado federal Vicentinho (PT), e tinha o intuito de explicar ao parlamento a saída da Ford do país, uma vez que o Congresso aprova desde 2014 incentivos fiscais para a fábrica para que gerasse emprego, inclusive crédito do BNDES, a fim de que ficasse no Brasil.

Visamos chamar a Ford para a discussão, envolver o Ministério Público do Trabalho, o Congresso e seu líder, David Alcolumbre, para fazer o debate em relação ao programa das automotivas no Brasil. Tivemos o InovarAuto que vigorou até 2017, no qual se obrigava as empresas a produzirem 60% do conteúdo no Brasil. Depois esse item foi tirado e permitiram às empresas produzir fora e vender aqui dentro, o que é péssimo para nós.

Queremos levar ao governo federal a responsabilidade de discutir um programa nacional de industrialização, já que vemos todo dia mais empresas e empregos saindo do Brasil, sem que haja nenhuma resposta.


Sidivaldo Borges, cuja identidade pessoal se confunde com a própria empresa à qual se dedicou por 26 anos  

Correio da Cidadania: Como enxerga esse acontecimento na conjuntura econômica brasileira dos últimos anos?

Sidivaldo Borges (Escort): Os governos de todas as esferas precisam chamar a responsabilidade em relação ao desenvolvimento nacional e uma política neste sentido. Não dá pra fazer política só para o agronegócio e esquecer o resto. É obrigação do governo se debruçar sobre a questão do desenvolvimento nacional e industrial com vistas a erradicar a pobreza, fazer do Brasil um país melhor e mais desenvolvido. É isso que o povo espera, ainda mais no contexto da pandemia. Mas o que vemos é o deboche do governo, a exemplo do coronavírus, sobre o qual várias declarações de menosprezo pela situação são dadas.

Não podemos ter um presidente que brinca com as situações, fala que o país está quebrado e, se as empresas vão embora, tudo certo. O governo tem obrigação na geração de emprego, renda e riqueza. Precisamos defender nossa economia. Não da pra achar que é assim, “se der lucro deu, se não der, tudo bem, podem ir embora”. A Ford teve lucro muito tempo. Não pode dar as costas no primeiro momento de adversidade, abandonar trabalhadores e consumidores e falar “se virem aí”.

Vamos cobrar as autoridades e exigir intervenção.

Correio da Cidadania: De toda forma, haveria como se aproveitar as plantas industriais e a estrutura básica deixada nos locais onde a Ford deixa de operar? Há possibilidades de algum novo capital investir nisso?

Sidivaldo Borges (Escort): Condições existem. Para se ter ideia, a Ford inaugurou duas linhas de produção em Taubaté em 2016, de alta tecnologia, novos maquinários e capacidade de produção elevada. Em Camaçari também, em 2015. Inovaram a tecnologia e capacidade de produção.

Encontrar uma empresa que queira assumir as plantas foge um pouco do nosso alcance, mas o sindicato sempre esteve aberto à discussão com qualquer empresa, para viabilizar emprego e renda, em Taubaté, Camaçari ou Horizonte. Abrimos a porta para qualquer esforço que nos ajude a reverter o que aconteceu e trazer investimentos.

A questão é muito abrangente. Como disse, só aqui em Taubaté são 32 empresas que vivem em função da Ford. O efeito cascata é forte. É necessária uma contribuição geral dos brasileiros, na defesa do emprego e da renda, na defesa da indústria de uma das maiores economias do mundo, e também um dos maiores produtores e consumidores de veículos do mundo.

Correio da Cidadania: Independentemente de juízo de valores, não estamos falando de uma indústria inexoravelmente decadente, tanto em termos de geração de empregos, por conta da automatização cada vez maior, como por mudanças culturais na sociedade, que talvez já não enxergue a compra de um carro e o uso do veiculo individual como se enxergava no passado?

Sidivaldo Borges (Escort): Certamente. As coisas vão mudando, a tecnologia traz novas possibilidades e produtos, hoje falamos do carro elétrico, menos poluente e mais econômico. Precisamos dessa produção no Brasil.

Não dá pra comparar os mercados brasileiro e argentino. São coisas bem diferentes. A Ford resolveu ficar na Argentina, algo contraditório na aparência, diante dos governos dos dois países, porque aqui estamos vivendo debaixo de falácias, afirmações e proposições sem lastro de verdade. Precisamos nos preocupar com o desenvolvimento do Brasil.

A empresa tem um mercado de 120 mil veículos por ano no Brasil, não vai desprezar isso. Ela quer continuar vendendo aqui, mas produzindo fora, já que suas margens de lucro são maiores. E as empresas visam cada vez mais exclusivamente isso e ignoram sua responsabilidade social. Pagamos o preço de tirar do programa de incentivo às montadoras a obrigação de produzirem no Brasil pelo menos 60% dos carros. Bom pra empresa, pior para o assalariado, o trabalhador brasileiro. Precisamos de governo que olhe para o povo e seu desenvolvimento, sua população, sua economia, tanto faz se de esquerda ou direita.

A vacina é um exemplo. Milhares de famílias perdendo seus entes queridos e o governo debatendo que a vacina tem de vir deste e não daquele país. A vacina tinha que ser feita no Brasil, pois temos capacidade e profissionais habilitados a desenvolvê-la. Mas pra isso precisamos de políticas públicas que deem conta dos interesses do Brasil, não de grupos políticos e econômicos específicos.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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