Correio da Cidadania

Fascismo e democracia liberal (3)

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Ugo Palheta: Fascismo e democracia liberal - Esquerda Online


Fascismo, “povo” e ação de massa

Se o fascismo é às vezes descrito falsamente como “revolucionário” devido a seus apelos ao “povo” ou porque interviria pela ação das “massas”, em uma analogia superficial com o movimento operário, é porque são misturadas coisas muito diferentes sob as denominações “povo” e “ação”.

O “povo”, como o entendem os fascistas, não designa um grupo que compartilha de certas condições de existência (no sentido em que a sociologia fala de classes populares), nem de uma comunidade política que inclui todas e todos unidos por uma vontade comum de pertencimento, mas sim uma comunidade etno-racial fixada uma vez por todas, reunindo aquelas e aqueles que procederiam “daqui mesmo” (que o critério de pertencimento ao “povo” seja pseudo-biológico ou pseudo-cultural). Isto equivale na realidade a um corpo social desprovido de inimigos (o “partido do estrangeiro”, como dizem Drumont e Zemour, propagandistas fascistas, o primeiro dos fins do século 19 ao século 20 e o segundo, atual).

No que diz respeito à ação propriamente fascista, ela oscila idealmente entre a expedição punitiva executada por grupos armados (bandos não estatais ou setores dos aparelhos do Estado autonomizados ou em vias de sê-lo (*3)) a marcha de tipo militar ou o plebiscito eleitoral.

Se a primeira atinge as lutas sociais e mais globalmente os subalternos (trabalhadoras e trabalhadores grevistas/os minorias étnico-raciais, mulheres em luta etc.), a fim de desmoralizar o adversário e de limpar o terreno para a implantação fascista, a segunda tem por objetivo produzir um efeito simbólico e psicológico de massa, para mobilizar as afeições em favor do chefe, do movimento ou do regime, enquanto que a terceira visa ratificar passivamente por um conjunto de indivíduos atomizados a vontade do chefe ou do movimento.

Se o fascismo apela efetivamente às massas, não é para estimular sua ação autônoma a partir de interesses específicos (política de classe), favorecendo por exemplo formas de democracia direta onde se discutiria e agiria coletivamente, mas para apoiar os chefes fascistas e dar-lhes um argumento de peso nas negociações com a burguesia para o acesso ao poder. A participação popular nos movimentos fascistas – e mais ainda nos regimes – é em sua maior parte comandada pela cúpula para seus objetivos e em suas formas e supõe a deferência mais absoluta em relação àqueles que seriam destinados pela sua natureza a comandar.

São encontradas, entretanto, formas de mobilização pela base no primeiro momento do fascismo, pelos ramos plebeus que fornecem suas tropas de choque ao levarem a sério suas promessas antiburguesas e seu pseudo-anticapitalismo. Quando, entretanto, a crise política se acentua e que a aliança entre os fascistas e a burguesia é efetivada, as tensões aparecem entre esta burguesia e a direção do movimento fascista. Esta última procurará sempre se desembaraçar da direção destas milícias (*4), enquanto procura canalizá-las integrando-as ao Estado fascista em construção.

Na realidade, no que diz respeito à ação, o fascismo nunca ofereceu às massas senão a escolha entre a obediência, passiva ou ruidosa, aos chefes fascistas e o Manganello (*5), a repressão, indo com frequência nos regimes fascistas até a tortura e o assassinato, inclusive de alguns de seus mais fervorosos partidários.

Uma contrarrevolução póstuma e preventiva

O fascismo é uma contrarrevolução ‘póstuma et preventiva’ (*6). Póstuma na medida em que se nutre do fracasso da esquerda política e dos movimentos sociais a se alçarem à situação histórica, a se constituírem em solução à crise política e a iniciarem uma experiência de transformação revolucionária.

Preventiva, porque visa destruir adiantadamente tudo o que poderia nutrir e preparar uma futura experiência revolucionária: organizações explicitamente revolucionárias, mas também movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI, lugares de vida autogestionários, jornalismo independente etc., ou seja, a menor forma de contestação da ordem das coisas.

Fascismo, neofascismo e violência

É inegável que a violência extraestatal sob a forma de organizações paramilitares de massa desempenhou um papel importante, embora sem dúvida superestimado, na ascensão dos fascistas – o que os distingue de outros movimentos reacionários que não procuraram organizar militarmente as massas. Ocorre que, ao menos no momento atual, a grande maioria dos movimentos neofascistas não se constrói a partir do acionamento de milícias de massa e não dispõe de tais milícias (com a exceção do BJP indiano e, em menor grau, em termos de implantação de massa, do Jobbik húngaro e da Aurora Dourada na Grécia).

Há diferentes hipóteses para explicar porque os neofascistas não conseguem ou não querem construir tais milícias:

– A deslegitimação da violência política, particularmente nas sociedades ocidentais, que levaria à marginalidade eleitoral os partidos políticos que constituíssem estruturas paramilitares;

– A ausência de uma experiência equivalente à Primeira Guerra Mundial, em termos de brutalização das populações, ou seja, o hábito do exercício da violência, que disponibilizaria para os fascistas massas de homens dispostos a se inscreverem numa perspectiva de exercício da violência através das milícias fascistas armadas;

– O enfraquecimento da capacidade dos movimentos operários de estruturar, organizar e fiscalizar, sindical e politicamente, as classes populares, o que faz com que os fascistas de nosso tempo não tenham mais diante de si um adversário que realmente seria imprescindível quebrar pela força para se imporem, o que exigiria um aparato de violência em massa;

– O fato de os Estados serem muito mais poderosos hoje e possuírem instrumentos de vigilância e repressão de uma sofisticação incomparável à dos Estados do período entreguerras, e assim os fascistas atuais podem sentir que a violência do Estado é suficiente para aniquilar, fisicamente, se necessário, qualquer forma de oposição;

– Finalmente, o caráter estrategicamente crucial para os neofascistas se distinguirem das formas mais visíveis de continuidade com o fascismo histórico e, em particular, com essa dimensão da violência extraestatal. É preciso lembrar, sob esse ponto de vista, que o “Front National” foi criado em 1972 na França a partir de uma estratégia de respeitabilização desenvolvida e implementada pelos líderes da “Nova Ordem”, uma organização inegavelmente neofascista.

Essas hipóteses nos permitem insistir no fato de que a constituição de milícias de massa foi tornada necessária e possível para os movimentos fascistas no contexto muito particular do período entreguerras.

Mas nem a constituição de bandos armados, nem mesmo o uso da violência política, constituem a peculiaridade do fascismo, seja como movimento ou como regime: não que não estejam presentes centralmente, mas outros movimentos e outros regimes, não pertencentes à constelação do fascismo, recorreram à violência para ganhar ou manter o poder, às vezes matando dezenas de milhares de oponentes (sem falar no uso legítimo da violência pelos movimentos de libertação).

Dimensão mais visível do fascismo clássico, as milícias extraestatais são, na realidade, um elemento subordinado à estratégia das lideranças fascistas, que as utilizam taticamente de acordo com as demandas impostas pelo desenvolvimento de suas organizações e pela conquista legal do poder político, que supõem, desde o período entreguerras, e ainda mais hoje, parecer um tanto respeitável, mantendo as formas mais visíveis de violência à distância. A força dos movimentos fascistas ou neofascistas é então medida por sua capacidade de lidar – conforme a situação histórica – com táticas legais e violentas, ‘guerra de posição’ e ‘guerra de movimento’, usando as categorias de Gramsci.

O processo de fascistização

A vitória do fascismo é o produto conjunto de uma radicalização de setores inteiros da classe dominante, por medo de que a situação política lhes escape, e de um entrincheiramento social do movimento, das ideias e dos afetos fascistas. Ao contrário de uma representação comum, bem adequada para absolver as classes dominantes e as democracias liberais de suas responsabilidades na ascensão dos fascistas ao poder, os movimentos fascistas não conquistam o poder político como uma força armada apreende uma cidadela, por uma ação puramente externa a tomar, como um ataque militar. Se geralmente conseguem obter o poder por meios legais, o que não quer dizer sem derramamento de sangue, é porque essa conquista é preparada por todo um período histórico que pode ser referido pela expressão de fascistização.

É apenas ao final deste processo que o fascismo pode surgir – obviamente hoje sem dizer seu nome, e disfarçando seu projeto, dado o opróbrio universal que envolveu as palavras “fascismo” e “fascista” desde 1945, tanto como uma (falsa) alternativa para vários setores da população e como uma solução (real) para uma classe dominante politicamente pressionada. É então que, de um movimento essencialmente pequeno-burguês, pode tornar-se um verdadeiro movimento de massas, interclassista, ainda que o seu cerne sociológico, que o sustenta, continue a ser a pequena burguesia: pequenos trabalhadores independentes, profissões liberais, executivos médios.

Formas de fascistização

A fascistização se expressa de múltiplas maneiras, através de uma ampla variedade de “sintomas mórbidos” (para usar a expressão de Gramsci novamente), mas dois vetores principais podem ser destacados: o endurecimento autoritário do Estado e a ascensão do racismo. Se a primeira evidentemente tem como principal campo de expressão os aparatos repressivos do Estado (com este ator específico de fascistização constituído pelos sindicatos de policiais), não devemos esquecer a responsabilidade primária dos líderes políticos, no caso francês de Sarkozy e Hortefeux a Macron e Castaner via Hollande e Valls (PS). E se a violência policial faz parte da longa história do Estado e da polícia, é a crise da hegemonia, ou seja, o enfraquecimento político da burguesia, que a torna cada vez mais dependente de sua polícia, o que aumenta a força, mas também a autonomia, desta última (*7): o ministro do Interior não tende mais a conduzir e controlar a polícia, mas a defendê-la a todo custo, aumentando seus recursos etc.

A ascensão do racismo também combina a longa história do Estado francês, um antigo poder imperial no qual a opressão colonial e racial ocupou – e continua ocupando – um lugar central, e a curta história do campo político. Diante da crise de hegemonia, a extrema direita e setores da direita – no entendimento de que essas forças políticas representam distintas frações de classe – têm o projeto de solidificar um bloco branco, capaz de trazer uma forma de compromisso social para uma base étnico-racial, por uma política de despejo sistemático de não-brancos ou, em outras palavras, de preferência racial.

Além disso, ao enfatizar constantemente o perigo que os migrantes e as mulheres muçulmanas representariam para a ordem pública, mas também para a integridade cultural da “Nação”, essas forças justificam a licença concedida às forças policiais nos bairros de imigração e contra as mulheres migrantes, o aumento da repressão aos movimentos sociais, em uma palavra, o autoritarismo estatal.

Assim, podemos falar, nas palavras do escritor e líder negro Aimé Césaire – de um enselvajamento, processo de selvageria – da classe dominante, que aparece acima de tudo através de práticas e dispositivos de repressão dirigidos primeiro contra as minorias étnico-raciais e depois contra as mobilizações sociais (coletes amarelos, sindicatos, antirracistas, antifascistas, ambientalistas etc.). Mas a selvageria também está surgindo, cada vez mais comum, na forma de declarações públicas (imagine o que é dito em privado...).

Pensamos neste ex-ministro da Educação Nacional e intelectual onipresente da mídia, neste caso Luc Ferry, conclamando a polícia a “usar suas armas” contra os coletes amarelos; pense neste enxame de ideólogos, Zemmour sendo apenas a árvore que esconde a floresta, que fez da mídia e da islamofobia editorial uma indústria florescente.

Continua

Parte 1

Parte 2

Ugo Palheta é professor de sociologia na Universidade de Lille. Autor, entre outros livros, de La possibilité du fascisme (La Découverte, Paris, 2018).
Traduzido por Lidia Codo
Publicado originalmente na revista eletrônica Contretemps; e retirado de A Terra é Redonda.

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