Correio da Cidadania

Do nirvana ao inferno pelas mãos do grande capital

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Abaixo, um episódio descrito no início do livro “A Ordem do Dia”, de Eric Vuillard, recém-lançado no Brasil.

Havia vinte e quatro deles. Gustav Krupp, magnata da indústria pesada, estava lá. Em suas palavras, aquela reunião representa “o nirvana da indústria e das finanças”.

Hermann Goering, presidente do parlamento alemão, entra na sala sorrindo.

As eleições acontecerão em 5 de março. As vinte e quatro esfinges ouvem atentamente. "A próxima campanha eleitoral é decisiva", diz. “Devemos pôr um fim à instabilidade do regime; atividade econômica requer calma e firmeza”.

Os vinte e quatro cavalheiros concordam com a cabeça, religiosamente.

E se o partido nazista obtiver a maioria, acrescenta Goering, essas eleições serão as últimas nos próximos dez anos. Talvez, acrescenta com uma risada, nos próximos cem anos. Um movimento de aprovação cruzou a audiência.

O novo chanceler finalmente entrou na sala. Hitler estava sorrindo, descontraído. Seu discurso durou meia hora:

...era necessário acabar com um regime fraco, remover a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa.

Mas fazer campanha eleitoral exige dinheiro.

Era 20 de fevereiro de 1933. Nessa reunião foi selado um pacto com os nazistas. Para os Krupps, os Opels, os Siemens apenas um episódio bastante comum da vida empresarial. Uma simples e banal arrecadação de fundos.

Entre os presentes, Schnitzler, Witzleben, Schmitt, Finck, Rosterg. Ou melhor, BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken...

Hoje, são nossos automóveis, lavadoras, produtos químicos, seguros, baterias, elevadores, eletrodomésticos...

Diante da ascensão nazista permaneceram “impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular nos portões do inferno”.

Na sala de jantar, cadáveres dos campos de concentração

Outro trecho do livro “A Ordem do Dia”, de Eric Vuillard, recém-lançado no Brasil.

Na primavera de 1944, Gustav Krupp jantava em seu luxuoso palácio na Villa Hügel, onde sempre viveu com sua família.

De repente, o velho patriarca da indústria pesada alemã se levantou. Esticou um dedo longo e fino em direção ao fundo da sala, logo atrás do filho e murmurou: "Mas quem são todas essas pessoas?"

O que ele viu, emergindo lentamente das sombras, foram dezenas de milhares de cadáveres, trabalhadores forçados que a SS havia fornecido para suas fábricas. Eles surgiram do nada.

A guerra tinha sido lucrativa para grandes capitalistas como Krupp. E uma das fontes desses lucros era a exploração do trabalho dos prisioneiros de campos de concentração.

A Bayer fez uso da mão de obra que os nazistas lhe disponibilizaram em Mauthausen. A BMW fez o mesmo em Dachau, Papenburg, Sachsenhausen, Natzweiler-Struthof e Buchenwald. A Daimler em Schirmeck. A IG Farben em Dora-Mittelbau, Gross-Rosen, Sachsenhausen, Buchenwald, Ravensbrück, Dachau, Mauthausen. Também operou uma fábrica gigantesca em Auschwitz: a IG Auschwitz, cujo nome aparecia no organograma da empresa sem o menor pudor. A Agfa recrutava trabalho escravo em Dachau. A Shell em Neuengamme. A Schneider em Buchenwald. A Telefunken em Gross-Rosen e a Siemens em Buchenwald, Flossenbürg, Neuengamme, Ravensbrück, Sachsenhausen, Gross-Rosen e Auschwitz. Todas fizeram uso dessa mão de obra de custo tão baixo.

Mas essas enormes corporações não são monstros antediluvianos. Não são criaturas que desapareceram nos anos cinquenta. Elas ainda existem. Suas fortunas são imensas.

Por isso, os cadáveres continuam no fundo da sala. E não surgiram do nada.

Sergio Domingues é servidor público federal.
Blog: Pílulas Diárias, de onde o texto foi retirado.

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