Correio da Cidadania

Classes e luta de classes: a burguesia

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Um dos aspectos intrigantes da análise das classes sociais no Brasil consiste na pequena atenção dada ao estudo da burguesia. Jessé Souza, por exemplo, a chama tanto de classes altas, cuja reprodução teria no capital econômico seu elemento principal na luta por recursos sociais escassos, quanto de classes do privilégio, exploradoras do exército de pessoas batalhadoras, disponíveis a fazer de quase tudo.

 

Ainda segundo ele, é o tempo roubado de outra classe que permite a essas classes altas, ou de privilégio, reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo daquelas classes privilegiadas. Como o pertencimento de classe nos esclareceria acerca do acesso, positiva ou negativamente, a qualquer tipo – material ou ideal – de recurso social escasso, toda sociedade moderna – apesar de injusta e desigual em proporção variável – teria de “parecer” igualitária e justa. Então, as justificativas que encobrem a desigualdade efetiva permitiriam a estrutura e legitimação de toda a ordem social.

 

Não deixa de ser extenuante o esforço para colocar conceitos novos em realidades que continuam vivas e possuem outros conceitos historicamente comprovados. O que é o exército de pessoas batalhadoras, senão o exército de força de trabalho desprovida de propriedade de meios de produção e empregada pelos proprietários de capital? Porque não especificar que a exploração dessas pessoas se dá através de uma relação de produção em que o tempo de trabalho realmente pago pela classe que é privilegiada por possuir aquela propriedade é inferior ao tempo de trabalho que o trabalhador entrega ao capitalista?

 

Repetindo: esse tempo é apropriado pelo simples fato de o capitalista ser proprietário dos meios de produção (edifícios, máquinas, matérias primas e outros insumos) e de recursos monetários que pode transformar em salários. O capitalista entrega seus meios de produção, momentaneamente, para que o trabalhador transforme a matéria prima em mercadorias, ou em produtos alienáveis. Esse tempo, legalmente, não é roubado. O capitalista, ou patrão, compra a força de trabalho por um determinado tempo estipulado em contrato, tendo em conta o custo socialmente necessário para o trabalhador se reproduzir como tal.

 

O segredo dessa exploração consiste em que o trabalhador produz o correspondente a esse custo num tempo bem menor do que o tempo estipulado em contrato. Assim, mesmo que o salário seja justo, isto é, corresponda ao tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução do trabalhador, o capitalista se apropria do tempo excedente, a chamada mais-valia.

 

Desse modo, apreciando o esforço de Jessé Souza, pode-se dizer que ele tentou inovar os conceitos, embora não haja nada qualitativamente diferente para mudá-los. O pior é que, tanto a burguesia, quanto a pequena-burguesia e a ralé, também podem ser consideradas batalhadoras. Além disso, rentistas parasitários e latifundiários de velho tipo podem fazer parte das classes altas ou classes do privilégio, sem necessariamente fazerem parte da burguesia exploradora do trabalhador assalariado.

 

Nesse sentido, Sonia Fleury tem certa razão em dizer, como Max Weber, que mesmo que a ordem social seja condicionada pela ordem econômica, ela produzirá códigos próprios que distinguirão as elites pelos hábitos exclusivos e não apenas pelo poder econômico. A sociologia de Pierre Bourdier também tinha como crivo, de acordo com Celia Kerstenetzky e Christiane Uchôa, o estilo de vida como marcador privilegiado. Se o “novo-riquismo” era ostentação e ruído, as novas “aristocracias” burguesas se pautariam agora pela discrição e sobriedade.

 

Embora tudo isso tenha um quê de verdade, não explica as características da atual burguesia brasileira, decorrentes de sua formação histórica. Essa burguesia começou a tomar corpo, nos anos 1910, com a aplicação de capitais comerciais e da renda fundiária para substituir as importações de produtos industriais paralisadas pela crise e pela guerra mundial.

 

Durante os anos 1920, essa burguesia industrial se manteve em banho-maria, para não atrapalhar as exportações de café. Nos anos 1930, ela se aliou aos latifundiários paulistas do café para impedir a política industrializante do Estado comandado por uma fração latifundiária sulista. E sabotou constantemente a política de paz social, a tal ponto de Vargas chamá-la de burra por não compreender que tal política visava conter uma possível revolução comunista no país.

 

Nos anos posteriores, à medida que assumiu o domínio do Estado, a burguesia brasileira, com exceções que confirmam a regra, sempre manteve firme associação com as burguesias europeia e norte-americana, jamais reivindicando um desenvolvimento autônomo. Além disso, jamais se empenhou na realização de uma reforma agrária que eliminasse o monopólio da terra pelos latifundiários e fosse capaz de constituir um amplo mercado rural de pequenas e médias unidades agrícolas capitalistas, a exemplo das farms norte-americanas.

 

Na verdade, da segunda metade dos anos 1960 em diante preferiu a reforma conservadora do regime militar, que transformou os latifúndios em grandes unidades capitalistas agrárias, e expulsou dezenas de milhões de camponeses para constituir a força de trabalho assalariada do desenvolvimento capitalista de então.

 

Seu conservadorismo e seu reacionarismo, que se refletem nos aparatos do Estado, são os principais entraves à consolidação da democracia e ao avanço prático dos direitos econômicos, sociais, culturais e políticos no Brasil, apesar dos avanços formais em parte da legislação. O sistema repressivo como único sistema válido para tratar o povo é algo entranhado na cultura burguesa. Basta notar os exemplos atuais de choque de segurança, choque de ordem e choque de pacificação, adotados por diferentes governos municipais e estaduais, nos quais as forças policiais, ao invés das políticas de desenvolvimento econômico, social e cultural, são o componente fundamental.

 

É verdade, como diz Lúcia Cortes da Costa, que ao final da década de 1980, a luta pela ampliação dos direitos de cidadania revelou a histórica desigualdade promovida pelo processo de industrialização que se deu no modelo concentrador de rendas e de propriedade. Porém, talvez fosse mais adequado caracterizar essa desigualdade histórica de modo mais preciso. Ela foi promovida pelo desenvolvimento capitalista, industrial, agrário, comercial, financeiro e de serviços.

 

Nesse processo, uma pequena minoria de um milhão ou pouco mais de famílias, algo em torno de 0,4% da população, concentrou mais de 40% de toda a renda nacional, assim como algo em torno de 70% de todas as terras e de todas as riquezas.

 

Embora nem toda essa burguesia tenha o estilo do “novo-riquismo”, a enormidade de sua riqueza acumulada pode ser medida por dados tornados públicos em 1994, pela insuspeita revista Veja. Segundo a Receita Federal, existiriam no Brasil 36 mil pessoas com patrimônio superior a um milhão de dólares. Desse universo, que representa menos do que 0,02% da população, apenas 460 pessoas possuíam um patrimônio superior a 19 milhões de dólares. O patrimônio médio dessa nata da burguesia brasileira girava em torno de 58 milhões de dólares, enquanto Moyses Safra, proprietário do banco de mesmo nome, detinha um patrimônio de 764 milhões de dólares.

 

Como, em geral, os membros da burguesia possuem mil e uma formas para burlar o fisco e diluir seu patrimônio por outras denominações, é quase certo que seu patrimônio empresarial deveria ser bem superior aos mais de 26 bilhões de dólares detidos por 460 burgueses. Não é difícil, com isso, ter uma ideia do verdadeiro fosso existente não só entre essa classe social e a classe dos trabalhadores assalariados, mas também entre ela e a pequena-burguesia. Recursos escassos só existem do lado de cá, enquanto do lado de lá sobram.

 

É verdade que, no restante dos anos 1990, quando os representantes da fração financeira da burguesia assumiram a testa do Estado, os 36 mil detentores de patrimônios acima de um milhão de dólares sofreram um processo de devastação patrimonial, capaz de incentivar a mobilidade social tanto para fora da burguesia quanto para seus níveis mais elevados. É provável que seu número tenha decaído, enquanto o patrimônio dos restantes tenha aumentado, como em geral tem ocorrido nos diversos tipos de crise que abalam constantemente a formação social capitalista.

 

Para piorar, a parte da antiga burguesia que se salvou da devastação neoliberal acostumou-se, além de todos os seus defeitos anteriores, a ganhar dinheiro através da especulação financeira, do rentismo. Ela não admite ter lucros inferiores aos proporcionados por juros altos. Nessas condições, numa economia monopolizada como a brasileira, e deixada ao livre arbítrio do mercado, ela tende a ser um empecilho ao pleno desenvolvimento das forças produtivas.

 

Do ponto de vista da luta de classes, essas características da burguesia, num país como o Brasil, em que as forças produtivas ainda não se desenvolveram plenamente, constituem um problema considerável para a conformação de qualquer projeto de sociedade de transição do capitalismo para o socialismo. Isto é algo pouco tratado pelos analistas das classes sociais. Por um lado, como força social, a burguesia brasileira ainda é uma necessidade histórica para o desenvolvimento das forças produtivas. Por outro, ela só desempenhará esse papel se tiver um Estado com força suficiente para lhe impor o papel que não pretende cumprir por livre vontade.

 

 

Leia mais:

 

Classes e luta de classes: o início

Classes e luta de classes: patriarcado e escravismo

Classes e luta de classes: feudalismo

Classes e luta de classes: mercantilismo

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Classes e luta de classes: expansão capitalista

Classes e luta de classes: questões de análise

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Classes e luta de classes: as mudanças de 2013

Classes e luta de classes: desafios para 2014

 

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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