Correio da Cidadania

Ainda as confusões globais

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Depois de assistir pela TV à viagem do presidente Trump à reunião com os líderes de países de predominância islâmica, ao encontro dele com lideranças da OTAN e com um papa flagrantemente descontente, não deixa de ser estranho que alguns pensadores considerem os BRICS, a China e a Rússia como os principais “grupos” ou “polos” presentes no cenário mundial. Para criar uma confusão ainda maior, tais pensadores afirmam que o grupo dos BRICS teria se esfacelado pelo “ataque do sistema financeiro”. Na prática, segundo pensam, no mundo sobrariam os grupos da China e da Rússia.
 
O grupo da China seria constituído pelos “países de sua área de influência”, num momento fazendo o jogo do sistema financeiro, noutro apoiando a Rússia. No confronto ao sistema financeiro restariam a Rússia e países de sua área de influência, além do Irã, Coreia do Norte e países identificados como “bolivarianos”.

Esses membros do terceiro “grupo” seriam objeto de constantes ataques, seja através de “movimentos políticos e populares financiados pelo sistema financeiro, seja através da divulgação de todo tipo de mentiras pelos veículos de comunicação de massa, ou por meio da subvenção e suborno de sindicatos e associações empresariais”.
 
Portanto, em síntese, para alguns desses pensadores, a luta do dia a dia se travaria “entre o sistema financeiro e a Rússia”. Esta aparece, inclusive, como suspeita de influir nas eleições norte-americanas, nas quais o sistema financeiro teria sido “derrotado”, e de interferir nas eleições francesas, onde o sistema financeiro teria saído vencedor com seu “empregado” Macron.
 
Para outros, porém, a China seria a personificação do “globalismo”, isto é, dos “globalismos em geral” e do “globalismo multipolar não financeiro” em particular. Isto ocorreria porque seria na Ásia do Pacífico que as “transnacionais financeiras globais” e “universais” conviveriam nas economias emergentes, marcando a escala do “umbral de poder mundial” do “Universalismo / Globalismo”. Tal escala mostraria a “magnitude de poder” na qual “se produz e se realiza poder e valor”. Seria o espaço mais provável a triunfar no conflito interno entre as duas frações de capital financeiro, conflito aguçado pelo projeto “nacionalista industrialista” de Trump.
 
Nessa sarabanda de conceitos que mais parecem serpentinas e confetes de carnaval, há alguns pontos de convergência entre tais correntes de pensamento. Enxergam a Rússia e a China, sem dizer exatamente por que, como as pontas de lança de um “mundo multipolar”. Em tal mundo não haveria “subordinação de umas nações por outras, nem a subsunção de todas as nações a um Estado global”.

Se a Rússia e a China reivindicam algo para um mundo multipolar, este algo seria precisamente a “soberania nacional”, reivindicada pelo papa Francisco, no nível espiritual, como a condição para o “respeito de cada religião pela outra e a convivência ecumênica entre as mesmas”. Desse modo, as “duas concepções” (multipolaridade e humanismo ecumênico) se reforçariam, embora o “humanismo ecumênico” não apareça como um grupo.
 
Nas condições de um mundo multipolar e humanista ecumênico, reiteram nossos pensadores, “o processo de acumulação de capital” não teria vida longa diante da “Nova Rota da Seda”, uma “espécie de projeto desenvolvimentista produtivo em escala mundial a partir das periferias”. Esta seria “uma saída, ao menos temporária”, em que haveria “lugar para todos os capitais, mesmo dos EUA e com os quais Trump poderia entrar”.

“A grande pergunta” que fazem é se, “uma vez concluídas as grandes obras de infraestrutura nos EUA e das Rotas da Seda”, tais investimentos desencadeariam ou não um “novo ciclo de reprodução do capital”. Os autores das teses acima acreditam que “o cenário mais provável é que não desencadearão” e que, “em vista disso, a transição ao pós-capitalismo estará em processo”.
 
Erroneamente, não consideram que a multipolaridade se tornou uma realidade a partir do próprio processo de globalização, à medida que o capital, empurrado pela elevação da produtividade e pela centralização, e acossado pela tendência de queda da taxa de lucro, teve que aplicar uma dupla política de exportação de capitais. De um lado, a neoliberal, de especulação financeira, desindustrialização e saque das riquezas dos países que se subordinaram ao Consenso se Washington (Argentina, Brasil, Grécia etc.).

De outro, a de relocalização de plantas industriais segmentadas e/ou completas dos países centrais (EUA, Inglaterra etc.) para industrializar países de mão de obra barata (China, Índia, Vietnã, Tailândia etc.), passando a acumular capital através da apropriação de uma parte do produto interno bruto desses países, mas se desindustrializando.
 
Em termos gerais, esse duplo processo, embora intensificando a centralização do capital nas potências capitalistas centrais, conduziu ao declínio econômico e político de algumas delas, em especial dos Estados Unidos e da Inglaterra, e à emergência de novas potências capitalistas e de socialismo de mercado, especialmente Rússia, Índia e China. A unipolaridade norte-americana teve que se confrontar, cada vez mais, com a multipolaridade em todos os campos das relações internacionais entre as nações. O próprio termo indica uma situação de inúmeros polos, ou grupos, embora alguns tenham obtido destaque, como o G8 (agora G7), a UE, a OTAN, os BRICS, o Grupo de Shanghai, a Unasul, os Bolivarianos...
 
Nos Brics participam Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, sendo cedo e contraditório dizer que tal “grupo” se esfacelou pelo “ataque do sistema financeiro” (ocorrido no Brasil), ao mesmo tempo em que Rússia e China aparecem como “cabeças” de grupos de suas “áreas de influência”. Também tem pouca consistência supor que a China faz jogo duplo (apoio ao sistema financeiro ou à Rússia), enquanto apenas a Rússia e os Bolivarianos seriam alvos permanentes de ataques políticos do sistema financeiro.
 
Na verdade, a crescente multipolaridade exige que todas as nações façam certo “jogo duplo”, seja nas relações com as corporações transnacionais, seja nas relações com as demais nações, tendo em conta que o capital, em suas formas financeira, industrial, comercial e de serviços está em todas elas. Um dos problemas de tal processo é que, enquanto as grandes potências capitalistas ainda não conseguiram superar sua crise, com crescimentos econômicos insignificantes, alguns dos membros dos Brics, especialmente Índia e China, continuam crescendo a taxas anuais superiores a 6% ao ano. O que leva a outro problema: correntes sociais e políticas de algumas grandes potências, especialmente EUA, Inglaterra e França, enxergam na guerra o remédio para sair da crise e ingressar num novo processo de desenvolvimento do capital. Trump é apenas a voz mais poderosa dessas correntes globais, embora aparente pretender apenas um “nacionalismo industrializante”.

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Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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