Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – economicismo e feudalismo

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A transição do escravismo para o feudalismo não foi igual em toda parte. Na Europa, por exemplo, os bárbaros germanos, normandos, francos, gauleses e outros possuíam uma economia, uma cultura e componentes simbólicos de vida social comunitária desenvolvida. Suas sociedades, em geral, quando se atiraram em ondas sobre os territórios ocupados pelos escravistas romanos em derrocada, desconheciam o escravismo. No entanto, quando se confrontaram com a transição clientelista romana e descobriram suas vantagens, assimilaram rapidamente tanto seus componentes simbólicos quanto suas formas econômicas, jogando no lixo da história seus antigos componentes simbólicos e sua economia comunitária.

 

O que levou os bárbaros a submergir no clientelismo feudal romano? O sistema econômico e social mais avançado e produtivo, ou os componentes simbólicos da nobreza feudal romana, gerados pelo novo sistema econômico e social? A “cegueira” de A Tolice... talvez não consiga responder a isso porque confunde sistema econômico e social com “estímulos econômicos” e porque considera que os “componentes simbólicos da vida econômica” são gerados independentemente da vida material, econômica e social.

 

A Tolice... tem razão, porém, quando identifica a existência de “diversas formas de economicismo”, com “gradações importantes”. Apesar disso, não enxerga sua própria gradação economicista ao concordar com Caio Prado Junior na localização da “colonização brasileira no horizonte da expansão do capitalismo comercial europeu”, confundindo a expansão mercantilista de parcelas do feudalismo europeu com o capitalismo.

 

Em outras palavras, reduz o capitalismo à sua dimensão monetária e comercial. Ou seja, à circulação. Desconsidera que o capitalismo é antes de tudo, um modo, ou um sistema, ecônomo e social, que inclui produção, circulação e distribuição, tendo por base a relação econômica e social entre proprietários de meios de produção e proprietários de força de trabalho, livres e, em geral, despossuídos de meios de produção.

 

Na época da colonização do Brasil por Portugal, no século 16, como já vimos em outros trechos, pode-se dizer que o capitalismo estava sendo impedido de nascer na China, enquanto estava crescendo como feto na barriga do feudalismo europeu. Na Inglaterra, desde o século 14, a nobreza latifundiária passara a expulsar os camponeses das terras feudais e comunitárias, introduzira relações monetárias de arrendamento do solo para a criação de ovelhas e criara uma massa vagabunda de seres humanos “livres”.

 

Paralelamente, as monarquias e os mercadores de Portugal, Espanha, Holanda, França e da própria Inglaterra, se lançaram, a partir do século 15, na aventura mercantilista de exploração e domínio colonial de novos territórios e povos. Com isso, realizaram uma brutal acumulação de riquezas saqueadas de povos africanos, asiáticos e americanos. Ou seja, criaram a massa de riqueza que, transformada em dinheiro, podia não só financiar o surgimento de novos meios de produção como, no caso da Inglaterra, comprar, pelo assalariamento, a força de trabalho da massa vagabunda criada pelo cercamento das terras. Foi esse processo associado que deu nascimento ao modo de produção, circulação e distribuição capitalista.

 

É evidente que se pode chamar os mercadores ou comerciantes das cidades, ou burgos, dos séculos 15, 16 e 17, de “burgueses”. Porém, os comerciantes, “burgueses” ou não, desses séculos só utilizavam a relação monetária no processo de circulação das mercadorias que eram produzidas pelo sistema feudal. Nesse sentido, só se diferenciavam dos comerciantes do período antigo, como Tales de Mileto e outros mercadores das cidades do Peloponeso e da Ásia Menor, que comerciavam com o Egito desde o século 6 antes de nossa era, porque as mercadorias destes eram produzidas por escravos.

 

Até o século 18, a massa de trabalhadores ingleses expropriados da propriedade de meios de produção permaneceu como vagabunda. Sua sobrevivência dependeu do assistencialismo das sucessivas Leis dos Pobres. Somente quando mercadores enriquecidos se transformaram, paulatinamente, em proprietários de meios de produção manufatureiros e começaram a comprar e a empregar força de trabalho nas manufaturas, em troca de salário, deu-se o nascimento da relação capitalista. Relação que estabeleceu uma nova forma de produção e reprodução do capital, e novas formas de circulação e distribuição desse capital, diferentes das formas predominantes no escravismo e no feudalismo.

 

A Tolice..., porém, desconsidera a natureza integrada e mutuamente contraditória, econômica (produtiva, circulante e distributiva) e social (relação entre classes específicas), de cada tipo de sociedade conhecido pela história humana. Com isso, retira da história o feudalismo como a formação social que sucedeu ao escravismo e na qual foi gestado o capitalismo. E conclui que o capitalismo comercial, que estranhamente adotou relações escravistas em sua colônia americana, estaria na raiz da história brasileira, sem qualquer resíduo feudal.

 

O feudalismo, porém, teve um papel importante na evolução de grande parte das sociedades humanas. Em algumas regiões da Ásia, ele evoluiu do escravismo por volta dos séculos 1 e 2 antes de nossa era. Na Europa, isso só ocorreu entre os séculos 9 e 10 de nossa era, cerca de mil anos depois da Ásia. No modo feudal de produção, circulação e distribuição, a relação escravista foi substituída pela relação clientelista, na qual o trabalhador agrícola passou a pertencer não mais ao proprietário fundiário, mas à gleba em que trabalhava.

 

As glebas eram unidades produtivas de uma extensão maior, um feudo, tendo à frente um nobre, ou um senhor feudal. Dependendo do tamanho do feudo, ele podia eventualmente ser subdividido em feudos menores, cedidos por seu senhor feudal a senhores feudais de linhagem nobre inferior. Portanto, a estrutura feudal gerou uma estrutura idêntica na nobreza dominante. A relação econômica, social e política entre os nobres feudais era de vassalagem dos inferiores aos superiores, todos devendo vassalagem ao rei ou imperador, chefe do Estado feudal.

 

Essa relação, porém, não era tranquila, havendo disputas sangrentas de diferentes tipos entre os senhores feudais, o que incluía os reis ou imperadores. Havia conflitos em torno do domínio das áreas territoriais, dos tributos cobrados pelos cessionários de feudos, do direito de trânsito, assim como em torno das sucessões feudais e reais. Afora o fato de que os conflitos pela submissão de outros reinos (na verdade, mais territórios feudais) marcaram fortemente a história do período feudal, ou medieval.

 

Na base da estrutura feudal, gerando a riqueza que fluía através da malha de vassalagem de uns senhores feudais em relação aos outros, estavam os camponeses e os artesãos subordinados às glebas. Embora proprietários de seus meios de produção, e livres para organizar sua própria produção, os trabalhadores estavam amarrados às glebas e tinham que cumprir “obrigações” de vassalagem em relação a seus senhores. Isso incluía, como já vimos, a entrega de uma parte de sua produção (meia, terça etc.), o trabalho em serviços de propriedade do senhor (corveia), a participação na defesa do feudo, e algumas outras que variavam, a depender das imposições arbitrárias do senhor feudal.

 

De qualquer modo, o feudalismo promoveu um desenvolvimento mais intenso da agricultura e da pecuária, assim como do artesanato. E, embora o comércio, ou a troca de mercadorias, tenha quase fenecido nos processos de transição do escravismo para o feudalismo, o posterior desenvolvimento da agricultura, da pecuária e do artesanato, e a consequente criação de excedentes, levou o comércio, tanto terrestre quanto marítimo, a renascer.

 

Criaram-se burgos ou cidades que funcionavam como centros comerciais, levando ao surgimento de classes comerciantes ricas em vários reinos. Assim, as classes que se relacionavam no interior dos reinos feudais não se limitavam aos senhores e camponeses. Incluíam também os mercadores, ou comerciantes, como classe intermediária.

 

Os componentes simbólicos do feudalismo preservaram, em certa medida, componentes herdados do escravismo. O ócio escravocrata, que abominava o trabalho como ação de seres inferiores, foi mantido pela nobreza. A religião foi transformada em instrumento de dominação, não só dos camponeses de cada reino, mas também de outros povos e religiões. Na Europa, os cristianismos católico e ortodoxo desempenharam papel ideológico predominante na consolidação e manutenção do feudalismo, e nas suas tentativas de estender-se pelo Oriente Médio. Na China, Índia, Japão e outras regiões asiáticas, esse papel foi compartilhado por vertentes neo-confucionistas, védicas, budistas e xintoístas.

 

Nessas condições, retirar toda e qualquer influência feudal do processo de colonização do Brasil, iniciado nos primórdios do século 16, a pretexto dessa colonização situar-se no “horizonte da expansão do capitalismo comercial europeu”, é o mesmo que tampar o sol com peneira. É verdade que, em sentido contrário, alguns pensadores marxistas deram caráter absoluto à influência feudal. Desdenharam a influência escravista e minimizaram a posterior influência capitalista.

 

Mas isso não pode levar à aceitação de que a colonização do Brasil por Portugal foi realizada no “horizonte de expansão do capitalismo”, bem antes que o capitalismo houvesse surgido como modo de produção, circulação e distribuição. Mesmo porque isso impede que se examine a singularidade das relações de produção dominantes no Brasil após a libertação dos escravos. Relações que pouco tinham de capitalistas.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista.

 

 

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