Correio da Cidadania

Socialismo e mercado

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O professor Delfim Netto aproveitou sua página na Carta Capital de 10/04/16 para dar uma porretada no “abuso ideológico” da “teoria econômica” que procura “justificar a existência de um ‘equilíbrio geral’”.

 

Isto, para ele, “é o rigor mortis onde nada mais se mexe”. A suposta existência de “agentes absolutamente racionais”, ou de “mercados perfeitos”, que seriam “a única obra perfeita do homem” não deveria ser levada ao “relativismo absurdo que sugere que a atividade econômica é um jogo sem sentido, onde todo voluntarismo é permitido”.

 

Por outro lado, ele também reiterou que “o sucesso civilizatório dos países que usaram o sufrágio universal”, juntamente com “políticas sociais e econômicas compatíveis com o conhecimento acumulado pelos economistas”, seria “tão distinto do miserável fracasso dos países que os desrespeitaram (os países do “socialismo real” – nota minha), que devemos concordar que o melhor caminho é o percorrido pelos primeiros”.

 

Portanto, ainda segundo ele, “o que precisamos não é uma política de ‘esquerda’ ou de ‘direita’, mas de uma política que admita as duas, porque o contraditório que desperta a atenção e não a cólera é o instrumento de avanço da sociedade civilizada”.

 

Este apelo pela adoção do que poderíamos chamar de “caminho taoísta do meio”, no momento em que está em curso um golpe judicial e político de direita que visa liquidar a esquerda, ou sua parcela mais significativa, não deixa de ser salutar. No entanto, para defendê-lo, o professor Delfim Netto não precisava apelar para distorções sobre Lenin e sobre a história do socialismo.

 

Por exemplo, Lenin teria falado em “difíceis problemas da organização socialista”. Mas logo depois, para justificar sua crítica, Delfim Netto escreveu que “a história mostrou que os difíceis problemas da organização socialista centralizada eram muito mais difíceis do que supunha” aquele que ele considera “o mais preparado e hábil marxista”. Ou seja, num passe de mágica, “problemas de organização socialista” foram transformados em “problemas da organização socialista centralizada”, problemas bem distintos, como a história demonstrou.

 

Lenin não falou da “organização socialista centralizada” porque, logo após findar a guerra civil e a intervenção estrangeira que se seguiu à revolução de 1917, ele propôs e levou a cabo a Nova Política Econômica – NEP. Ou seja, uma política que levava em conta a necessidade do mercado para desenvolver a sociedade atrasada russa, na qual os produtores ainda não sabiam o que produzir e os consumidores mal haviam conquistado a liberdade de escolher o que precisavam para viver.

 

Nessas condições, embora tenha razão em afirmar que, “mesmo hoje, parte da ‘esquerda’ não chega sequer a entender o que isso significa”, Delfim Netto também parece não haver compreendido “o que isso significa”. Tanto uma “parte da esquerda” quanto ele não sabem porque a Nova Política Econômica de Lenin, que combinava planejamento de Estado e mercado, propriedade social e propriedade privada capitalista, foi substituída, em 1928, pela “organização socialista centralizada”.

 

Também parecem não saber que esse tipo de “organização socialista centralizada”, num primeiro momento, contribuiu decisivamente para a industrialização acelerada da URSS e para a vitória contra a invasão nazista. E muito menos sabem porque ela falhou, no período posterior, em evitar a “anarquia produzida pelo ‘planejamento’” e simplesmente ruiu.

 

Ambos parecem ignorar que o marxismo considera que a propriedade privada e o mercado foram avanços históricos indispensáveis para a humanidade, nas suas diversas etapas de desenvolvimento civilizatório, como o escravismo, o feudalismo e o capitalismo. O marxismo não tem dúvidas a esse respeito. Como não tem dúvidas de que essas categorias econômicas carregaram e carregam em seu seio contradições que tendem a chegar ao ápice com o capitalismo desenvolvido. Não com o capitalismo em geral, ou com o capitalismo pouco desenvolvido. Mas com o capitalismo altamente desenvolvido.

 

Em seu desenvolvimento, o capitalismo tende para um tal nível científico, tecnológico e de produtividade que não mais necessitará do trabalho humano vivo. Com isso, tende a criar num polo social uma concentração e centralização imensa de riqueza (hoje, menos de 70 trilionários já possuem uma riqueza equivalente à renda de alguns bilhões de habitantes do planeta). E, no polo social oposto, a empilhar uma crescente massa de desempregados e miseráveis. Dizendo de outro modo: à medida que o capitalismo se desenvolve, ele tende a eliminar a capacidade de consumo que conforma o mercado. É o próprio capitalismo que tende a matar o mercado, sua galinha de ovos de ouro.

 

Por entender isso, Lenin chegou a supor que não viveria para ver o momento em que os trabalhadores pudessem superar aquela contradição interna do capitalismo e instituir uma “organização socialista” em que o mercado já se tornara, pela própria ação do capital, uma excrescência. No entanto, como a história é useira e vezeira em criar situações que se chocam contra seu próprio funcionamento lógico, a revolução na Rússia se adiantou no tempo, por incapacidade da própria burguesia russa, e colocou a “esquerda” e os marxistas russos e do resto do mundo diante de algo não previsto.

 

Nada muito diferente do que ocorreu com a “esquerda” burguesa em sua luta contra a “direita” feudal para estabelecer a “liberdade” do mercado. O sufrágio universal não fazia parte daquela “liberdade” e só foi arrancado através de uma luta árdua dos “de baixo” e da “esquerda” durante mais de um século. Basta lembrar que muitos países “civilizados” só concederam o direito de voto às mulheres no século 20.

 

“Políticas sociais e econômicas compatíveis com o conhecimento acumulado pelos economistas” em geral só se tornaram realidade parcial em algumas grandes potências europeias às custas da exploração colonial. E só se tornaram “políticas de bem-estar social”, nessas potências e nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, como contraponto à “expansão socialista”. No resto do mundo, incluído o Brasil, o capitalismo avançou misturado a formas atrasadas de utilização e exploração da mão-de-obra, mantendo uma desigualdade abjeta.

 

O “miserável fracasso dos países” que desrespeitaram o sufrágio universal teve por base o não entendimento, pela “parte da esquerda” que chegara ao poder, da premissa marxista de que a “organização socialista” depende do grau de desenvolvimento das forças produtivas sociais. Portanto, em países atrasados, mesmo medianamente como é o caso do Brasil, a “organização socialista” precisa combinar, como fez a NEP de Lenin, boa dose de capitalismo com boa dose de intervenção do Estado.

 

No entanto, para chegar a tanto, infelizmente não seja possível aplicar “uma política que admita”, como pretende o professor Delfim Netto, a ‘esquerda’ e a ‘direita’. É verdade que “o contraditório que desperta a atenção e não a cólera é o instrumento de avanço da sociedade civilizada”. No entanto, a ‘direita’ brasileira, subjugada e patrocinada por forças financeiras internacionais, não admite sequer políticas de inclusão social. O que dizer de políticas soberanas de industrialização, de proibição de monopólios e oligopólios para garantir a concorrência no mercado, de comércio internacional múltiplo, de integração regional independente etc. etc.?

 

Apesar do que pensa “parte da esquerda”, o problema brasileiro reside na parcela da “direita” que detém as rédeas e a propriedade da economia, da mídia e de instrumentos fundamentais do Estado. Enquanto essa direita se sentir agredida pelo fato de os pobres melhorarem de vida e parecerem (só parecerem) haver encurtado as desigualdades econômicas, sociais e culturais, será difícil que o sufrágio universal garanta a existência de uma sociedade civilizada em nosso país.

 

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

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